terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

570 - NÃO, NÃO DISSE…By Maria Luísa Baião *


O que eu não disse, por pudor ou cortesia, o que eu não disse. Quanta emoção calei em mim, pensando que a vergonha me tolhesse. Perdeu-se com a maturidade esse pudor, por isso me sinto agora um rio sem delta que águas mil algo prendesse.

Que encantador ver-me agora assim liberta de mim mesma, sendo eu própria, passando para o papel cada ideia que me ocorra, libertar-me de quanto possa antes que morra.

Ter siso demasiado, calar o insustentável, peou-me muitos anos, foi fardo intolerável, incomensurável desatino, agora fragmentos de tormentos infligidos porquanto sensuais coisas calei, gemidos de quanto não contei não calo mais. A memória, a memória, que travessura nossa calá-la, como se fosse possível guardar cada estória, resguardar quanto foi sofrido, temer cada passo dado ou grito erguido. Quanto não ganho agora atirando ao vento cada pedaço vivido, cada momento, cada encantamento.

Bem aqui no meu peito guardo com jeito todo o amor lembrado, momentos sublimes que agora desvendo p’ra vos dar, inda que de novo nada digam, nada que não tenhais também p’ra segredar. Só por calar-me minha solidão acrescentei, fiz por esquecer beijos, carícias, delícias que agora quero relembrar.

Lembrar noites sob o luar, tanto de perder-me quanto de me dar. Desperta, sonhando, quantos sonhos construí, quanto fui feliz, quantos despertares em ti, quais momentos sem sentidos que jamais quero ver perdidos.

Quanto sou feliz.

Quantos momentos calamos? Um dia, um ano uma vida? A alma não quer segredos, não quer trabalhos tamanhos. Ter uma vida é cantá-la. Cada canto da memória guarda um beijo, um encanto que agora rememoro pois não quero viver num pranto. E cada muda lembrança faz lembrar eternidades das vezes que com mestria se trocavam quentes abraços p’ra aquecer as coxas frias.

Serenidade, harmonia, o que era impetuosidade, o que era tudo o que cria, é hoje alegre folia, experiência da idade. O que era breve e em quantidade, volveu calma terna, suave e alegre amenidade, quão doce cumplicidade.

Meus sonhos, já sonhados e ainda por sonhar, trazem sorrisos despertos que nunca deixo de espreitar como a um livro entreaberto. Nele leio hoje a ternura dos momentos de candura com que esculpia a doçura emanada da chama pura dos tempos de adolescente. Que lembranças desses tempos, enlaçavas os meus dedos, eu cobria-te de beijos de que guardamos segredos. Muito dei, muito me deste, bem sei que soubeste e leste nos meus olhos prazenteiros, quanto de bem nos sabiam esses momentos brejeiros.
 
Tacteei os teus cabelos, desvelos mil, tu foste Abril, foste caril, e eu guardei, de polichinelo, com elos dos meus cabelos segredos em amor forjados. Duelos de amor que, confia, não cochicharei ao prelo.

Se eu pudesse formular em cada dia um novo voto, o que eu mais prezava obter, era a certeza certezinha desse teu amor devoto. E se manhoso faltasses a esta minha bizarria, rogaria a uma fada que te lançasse uma praga, que mais nenhuma Maria te desse alegrias minhas. Exultas, se sem pagar transgredimos, fados, loucuras e mimos. Momentos em que nada faz sentido, donde depois nos levantamos com o ego bem erguido.

Já me conheces de cor, percorres calmo e sem pressas os caminhos do amor, desbravado, a desbravar, e eu, com tantos sonhos sonhados quantos os sonhos por sonhar, perco o norte ao planeta ainda muito antes da meta. Vem-te… aconchegar em mim. O peito em ebulição, a tensão acelerada, derretes-me, c’o odor que exalas, tocas-me, eleito, o coração. Acordamos, quedo-me apaziguada, elevo-me sem pudor, e vagueio num mar de odores fruto deste nosso amor.

Acendi o candeeiro, mal sabia ser já dia ! Saboreámos a vida, correu seiva, soltaram-se olhares por sobre mares navegados esta, uma e outra vez. Quem me dera sempre assim fosse, agora sei que nesses dias de que fazemos veras noites, noites de que fazemos dias, não são quimeras nem vãs as manhãs, os pôr-do-sol, eu e tu, os caminhos de abrasar que na certa já sabemos irem desaguar no mar.

Não vemos luas, nem sóis, vemos galáxias, e depois…

Se não crê, então experimente, não dói…
  

* By Maria Luísa Baião,‎ escrito Segunda-feira, ‎28‎ de ‎Novembro‎ de ‎2005, ‏‎pelas 14:12 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.





segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

569 - BONSAI, A ÁRVORE -ANÃ… by Luísa Baião *


Quando determinado facto entra na nossa vida é impossível de imediato conjecturar, projectar, prever ou antecipar até que ponto, como, de que modo ou maneira, quantitativa ou qualitativamente irá afectar-nos ou influenciar os nossos destinos.

Entre as muitas coisas com que o meu filho, a minha nora e netinha me prendaram no Natal passado incluo, por inesperado, um Bonsai, uma daquelas árvores japonesas em vaso cuja finalidade é mantê-la parecida com uma árvore comum, mas sempre em miniatura.

Lembro-me bem de, no entusiasmo do momento, apenas me ter acudido à memória a originalidade da coisa. Uma árvore-anã, que original, etc e tal, sorrisos, beijos, agradecimentos, trocas, votos de felicidade e prosperidade, a ceia, a cabeça pesada, o sono dos justos. Tal e cal por esta ordem.

Arrumado o Bonsai no sítio mais indicado da sala, dele somente me lembro quando o vejo, ou durante a ronda às flores ou na hora de estender carpetes e tapetes na janela e dar ar à casa. Só hoje, volvido quase ou mais de um mês, o Bonsai me trouxe ou conduziu àquele estado de meditação oriental que é suposto induzir em nós se nos cabe apaziguar uma alma, a nossa ou a de outrem.

Isto porque me acodem presentemente preocupações que não imaginara agora que, mau grado a minha dedicação à fauna e flora caseiras, o Bon-Sai está com folhas amarelas. Que fazer ? Falar-lhe ? Acarinhá-lo ? Dar-lhe mais sombra ou mais luz ? Água não ! O meu filho bem me recomendou que facilmente se “afogavam” ! Mas que ideia estapafúrdia teria sido aquela da oferta do Bonsai ? Não escolhemos as prendas inocentemente não é ? Sobretudo tratando-se de um Bonsai ! Que é visto como uma terapia em que a pessoa cuida da árvore e por indução de si mesma. Será como que uma extensão da jardinagem. Ter-me-á o meu filho julgado necessitada de algo que me acalmasse ? Vai daí uma preocupação que me preenchesse os dias que, a ser válido o argumento, seriam vazios, aborrecidos, capazes de (ou na mente dele já) criarem em mim alguma apatia, aborrecimento, desencanto pelo viver, frustração, doença, morte, para não descartar qualquer hipótese possível.

 Bom, mas se assim foi, o melhor é preparar-me para que qualquer dia me trate com a mesura própria de uma neurótica ou hipocondríaca. Vai mal a coisa. Já não estou a ver bem o Bonsai. Por outro lado temos ou devemos ser condescendentes e dar a todos o benefício da dúvida. Será que a árvore-anã me foi oferecida por motivos completamente contrários ? Mas vá lá saber-se ! Serei para ele uma mãe que difunde calma e harmonia ? Tranquilidade, bom senso e empatia ? Fico na dúvida mas, a ser assim, quem melhor que a mãe a pessoa indicada para tratar o que merece mais atenção e cuidados que uma menina de colo ?

Difícil de deslindar este mistério, pois se para ele tenho sido simultaneamente dura e dócil, forte e frágil, complacente e impositiva, calma e agressiva, só dependendo o meu estado de alma das trapalhadas em que se metia, ou das alegrias que me trazia para casa, ou dava.

Mas não será a educação isso? Uma mistura bem doseada e caldeada com um pouco de tudo q.b. para restabelecer o equilíbrio das coisas, ganhar e dar confiança, carácter, personalidade, auto-estima e segurança a um ser em formação e que exige muito mais decerto que todos os cuidados com que possamos contemplar, dedicar, dar a um Bonsai ?

Não vou dizer-lhe nada, nem esperar que veja as folhas amarelecidas da árvore-anã, não. Seria deselegante da minha parte. Mas com a vida ocupada como tenho, onde arranjar tempo, mais tempo que aquele que agora dedico à sua original prenda ? Será que terei que comprar um daqueles livros sobre a “Arte do Bonsai”, ou um qualquer outro sobre filosofias orientais e meditação transcendental ? Acabarei fazendo yoga ? Na ! Vou mas é esperar que alguma amiga ou amigo lhe chamem a atenção para estas linhas e aguardar que me apareça em casa, resoluto, disposto a resolver o problema que me angustia e disturba a existência, já que foi ele que mo arranjou !

 * By Maria Luísa Baião,‎ escrito em ‎19‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2007, ‎pelas 09:51h, provavelmente  publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.

   

568 - LAMENTO O LYNCE ‎by Maria Luísa Baião * ...

              

...... “ Naquele dia encontrei o Lynce inerte no caminho de terra que dá acesso ao monte, focinho numa poça minúscula de sangue, o ar tranquilo de quem nunca soube o mundo uma miséria ” ....... (António Saias in Diário do Sul) ......

Ora ali estava um texto que era mais que um alinhavado de palavras, antes um rego ou um sulco bem cavado por onde corria o sentimento. Reparem, “corria”, não se escoava, corria, difundia-se, espalhava-se, disseminava-se, vertia-se, derramava-se, propagava-se, e tocava-nos, mesmo que aparentemente nada tivéssemos que ver com aquilo.

Não foi tanto a morte do Lynce que lamentei, ou me tocou, o que lastimei e me tocou foi o saber ou descobrir um sentimento em tal escondido. Escondido? Bem, não me parece, antes expresso, corajosamente expresso, como um pranto, talvez um grito acusando a presença de uma sensibilidade humilde, tímida, retraída ou púdica, simultaneamente recatada e timorata, mas tão verdadeira como nos nossos dias ninguém imaginaria ser possível existir ainda sobre a terra.

Custa-me que quem se apelida “um qualquer maduro da Igrejinha”, como que se culpabilize pela sua vera sensibilidade, coisa já tão rara, tão fora de moda, tão abstrusa nestes tempos de desenvolvimento económico ou tecnológico que tudo prometem sem que nada assegurem.

Não aponto as tuas palavras em caderninhos amigo, guarda-factos lhes chamas, guardo-as semanalmente no coração, qual bálsamo de aroma único e singular que me faz sentir menos só num mundo tão cheio de gente quanto de egoísmo. Iremos um dia levantar barreiras ao longo do Algarve, estacas pontiagudas, de aço frio, arame farpado, minas, ninhos de metralhadoras? Que loucuras colocou o mundo em movimento? Quem resiste ainda, quem arrisca ser, mostrar-se, abrir-se, expor-se ?

O mundo, pegando nas tuas palavras, devia partilhar alegrias e angústias, não loucuras, geopolíticas ou estratégicas, meras tácticas ou manobras de diversão que nos desviam do essencial, mas pequenas loucuras diárias que nos alimentem a vida e quebrem a rotineira. Que coragem a tua Saias, para contares ao mundo as tuas dores. Quantas não calamos por nem ter a quem as contar, por não haver a quem as possamos contar, quantas não calamos nós ?

Não sei o que me atingiu, me tocou, talvez o facto de ter uma gatinha, mas quero que saibam, da Vidigueira a Sines, de Grândola a Vila Nova de Mil Fontes, que, como tu, sentiria uma dor enorme se a perdesse. E é isso que me faz sentir humana, não os pontos de desconto no híper, nem as senhas premiadas nos postos de gasolina ou a promoção dos champôs anticaspa. Uma amiga, um familiar, uma gata ou um cão. Acredito na vida, sobretudo na tua vida, quão ficcionada quanto errante, é isso a vida, isso é vida, isso é que é a vida.

Quando lês és muito de quem escreve, eu quando escrevo sou muito de quem leio, e, como tu, exalto quando descubro alguém como nós. Não sou dada a metafísicas nem tenho grandes angústias existenciais, quanto às convicções, creio em Deus e só desejo ser feliz, que me deixem ser feliz.

Também nada me toca se a bolsa sobe ou desce, a minha bolsa sempre foi parca, e nem perco tempo a discutir décimas nem sofro de varicela. O que me vale é ser uma mulher cheia de saúde (?). Como a ti preocupa-me a harmonia da minha terra, a iminente extinção das abetardas e dos burricos. Lamento o Lynce, como lamento tanta miséria que grassa, a astenia que nos tolhe, o mundo, o meu, o teu, o de todos.

A vida é feita de pequenas coisas, pequenos nadas dizem os poetas, não sou poetiza mas vejo-lhes a alma.

Sê feliz Saias, e não deplores as tuas pequenas grandes dores, é isso que nos humaniza, nos diferencia, que faz com que tantas vezes ponhamos os outros em primeiro lugar, tanto querer dar quanto receber.

Por que não são tantos outros homens como tu, sensíveis até nas pequenas coisas, porquê ? Por quê tanta compulsão, sobrançaria e arrogância, tanta insensibilidade, soberba e desprezo ? Que medos escondem tanta jactância, que vergonhas ocultam a sua petulância e presunção, que vaidades mostram ? Quem são afinal vá-se lá saber.

Quantos fingem, disfarçam, dissimulam, enganam, falseiam, ou simulam o que não são ? Até ver-te.

* By Luísa Baião,‎ escrito em 14‎ de ‎Setembro‎ de ‎2006, pelas ‏‎09:42h e publicado no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, provavelmente nos dias seguintes.  

sábado, 2 de fevereiro de 2019

567 - PERIGOSO E INFAMÁVEL ANEL DE FOGO...

           

É-me muito difícil ficar calado, é-me difícil ouvi-los e é ainda mais difícil conter-me ou contestá-los, tão-pouco contrariá-los.

Custa-me, tanto mais quanto o silêncio a que sou obrigado colide com o meu modo de ser, extrovertido, participativo, e nada reservado mas, nesta concreta situação calo-me, contenho-me. Existe um compromisso que não posso desrespeitar, assinei, dei a minha palavra, jurei, portanto sobre esta temática em particular bico calado, o silêncio é de ouro e quebrá-lo poderá mesmo custar-me em extremo, em último grau, um tiro bem no meio dos olhos, ou acordar morto numa valeta qualquer sem saber como fui ali parar.

Há coisas com as quais não se pode brincar. Eles tagarelam, batem com o punho na mesa, a mão no peito, viram, afiançam, juram, eu remato que viram mas não enxergaram, ou enxergaram mas não compreenderam.

Bem sei que passaram quase quarenta anos, e os trinta anos da praxe, do contrato, há muito foram ultrapassados mas, uma cláusula alarga esse prazo, essa imposição, essa obrigação, essa libertação, até me ser dada claramente autorização e essas, se bem que pedida já ha meia dúzia de anos, quer ao nosso Ministério da Defesa quer aos correspondentes homólogos em Luanda e em Pretória, não chegaram ainda. O exercício “ALCORA” fazia e faz sentir ainda as suas repercussões e o silêncio era também ele uma das suas muitas e especiais peculiaridades, todas elas desconhecidas do grande público.

Por isso eu me calava, sabendo que uma morte é uma morte e mesmo apenas uma sendo demasiada, mas não esquecendo quantas foram evitadas, e foram-no muitas mais, não podendo eu sequer dizer quanto devemos a esses mortos, quanto as suas mortes valeram, quanto contaram, quão gigantesco foi o seu sacrifício. Porém em paralelo calando igualmente a diminuta dimensão das guerras discutidas àquela mesa, das suas pequenas tragédias, dos seus pequenos sacrifícios, evitando diminui-los, denegri-los, amesquinhá-los ou desprezar o seu sacrifício, a sua participação ou contributo. Vá lá gente adivinhar como as nossas palavras serão recebidas ou entendidas, o melhor é nem arriscar.

A verdade é que só o todo conta, casos individuais não passam disso mesmo, de individuais, e não contam para os resultados nem para as estatísticas. O bem maior alcançado foi o de todos, é sempre o de todos, é sempre a única coisa que conta embora nem sempre a mais beneficiada ou a que melhor aproveite os resultados, quaisquer resultados. Seja como for só o todo faz história, e como fazer perceber isso a cada um deles, a cada um destes homens, a cada um destes soldados em redor desta mesa ?

Foi ali que eles sofreram, Angola, Moçambique, Guiné. Mas não foi ali o cenário maior da história viva. O cenário maior era desenhado nos bastidores, e eles, ainda que o não creiam, nunca passaram de simples marionetas de quem no mundo puxava os cordelinhos. Carne para canhão. Robertinhos lhes chamaria, mas vá lá um homem dizer-lhes isso, portanto o melhor será calar-me, ouvi-los e calar-me, assumir e calar, estão a perceber-me ? Entendam-me, pois no contexto da guerra fria não deixámos contudo aquecer as coisas.

O cenário maior era tal qual lhe chamei, maior, isso mesmo, maior, e circulava-os, circundava-os, rodeava-os, cercava-os como um anel de fogo que ninguém queria ver em chamas. Sim, olhai o mapa e pensai por um momento num anel tocando Angola, Moçambique e Guiné, atentai em cada um dos países no interior desse anel, todos eles em ebulição, agora atentai nos que estão no exterior mas próximos desse perímetro, todos eles passíveis de visões incendiárias se o anel pegar fogo, portanto é isso mesmo, foi disso que tratámos, de evitar o fogo, evitar o incêndio, o seu deflagrar, o seu alastrar.

Não fomos militares, não fomos guerreiros, fomos bombeiros de uma causa maior, e ganhámos, lutámos e vencemos, a África austral não se incendiou, não virou um outro Vietname, o fogo foi contido, os estragos contidos, os danos colaterais evitados, o desastre foi confinado. O preço ? Treze anos de sacrifício e mais de 8000 mortos só dos nossos, um pequeno preço para um tão alto resultado, mesmo sabendo como se sabe que uma morte, uma só, uma apenas que seja já é demais.
  
O projecto Alcora, de que fazíamos parte, em que nos integrámos, a que, como habitual e em segredo, sorrateira e rapidamente aderimos sem dar cavaco à nação, ao país, ao povo, mais não foi que um compromisso, um complot aquecendo- nos as costas mas destapando-nos os pés, um compromisso com um presente que antes de o ser era já passado, um passado conservador, estático, a busca de uma resposta a perguntas que ninguém ousava fazer, a compulsão para uma solução constituída p'lo menor dos males quando a epidemia era já impossível de conter, confinar ou enfrentar.

Alcora de seu nome, foi mais um exercício, um teste, uma experiência, uma conspiração a que aderimos repartindo, tripartindo esforços, procurando-se coordená-los a fim de ser alcançado um mesmo objectivo cujas regras observámos e envolviam para além de nós a África do Sul e a Rodésia. Alcora não foi a designação duma qualquer operação militar secreta de que Portugal tenha feito parte, foi uma tentativa de dominar o conflito colonial e fazer frente à luta dos povos indígenas articulando posições contra essas lutas de libertação. Neste exercício as relações de Portugal com esses países atingiram uma profundidade considerável, tratou-se de países com os quais Marcelo Caetano esteve em vias de articular a independência unilateral de Angola, uma independência branca, declaração que esteve preparada para ser feita na fortaleza de Massangano a 15 de agosto de 1974, Dia de Nossa Senhora da Assunção, padroeira de Luanda. *

A manobra/jogada politica criaria as bases de um governo presidido por uma personalidade negra, provavelmente Jonas Savimbi, mantendo-se administração branca e o status quo anterior à declaração de independência unilateral. **

Naturalmente a malta não acreditou em nenhuma palavra das que eu disse, nem o forte argumento por mim apresentado para que consultassem as obras em causa os demoveu e eu, com idêntica naturalidade abandonei a mesa e abati-os ao efectivo deixando-os a falar sozinhos. É dos livros, é sabido que quando somos novos tendemos a fazer amigos por precisarmos de aceitação, de integração, de afirmação no seio do grupo, do clã, mas depois de experientes e com a minha idade, diria que depois de "matarmos o pai" a nossa afirmação se faz lutando e impondo as nossas ideias, mesmo que seja necessário abater amigos, é uma outra forma de afirmação... O mesmo objectivo estratégias diferentes… Curiosa a vida...

              

* Para mais clareza consultar o livro “Alcora, O Acordo Secreto Do Colonialismo”, Editora Objectiva, de Carlos Matos Gomes.

** In “As Voltas Do Passado, A Guerra Colonial E As Lutas De Libertação”, organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, Edições da Tinta-da-China, página 290.




quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

566 - LIDES DOMÉSTICAS, By Maria Luísa Baião *



Olhou-me demorada e ternamente. Eu retribui o carinho passando-lhe a mão pela cabeça, de arrepio, coisa que sei não gostar. Uma provocação portanto. Retraiu-se um pouco, fugiu ao meu gesto e ajeitou-se melhor no sofá onde desde o almoço se estendera ao comprido. Tem uma propensão nata para a mandriice, então aos fins-de-semana, dias em que estamos todos em casa, até para comer tem preguiça e vai fazê-lo quase a dormir já.

Perdoo-lhe a preguiça nesses dias. É que não gosto, quando arregaço as mangas e me atiro a algumas das actividades que cabem às “domésticas” e com as quais embirro solenemente, que se atravessem à minha frente e me quebrem o ritmo. Contudo acho que se não for eu a diligenciá-las ninguém as fará melhor. Sempre detestei essas actividades, tenho mais e melhor com que me entreter, ocupar o tempo, com muito mais proveito para mim e para os outros. Mas tem que ser.

O barulho do aspirador é incómodo, dá uma volta no sofá, esconde a cabeça e as orelhas, buscando ignorar-me e ao frenesim que arrasto, cujo tumulto sabe ser somente uma questão de minutos. Por outras palavras, torce-me o nariz. Essa coisa dos olhares ternos vai bem desde que não incomodemos. A ternura, como vêem também tem limites e condições. Não me chateies que eu faço o mesmo e ainda te pago com algumas meiguices. E eu julgando essa ternura ilimitada e incondicional.

Estamos sempre aprendendo. Modelamo-nos é o que é, adaptamo-nos às situações como os náufragos se adaptam às bóias e coletes salva-vidas.

O aspirador lá se vai esforçando, como um asmático. Espreito à janela, na paragem do autocarro uma velha fala sozinha. Eu pensando sozinha. Crianças pobres brincam umas com as outras, como eu quando pequena. Saltam à corda, brigam-se, apaziguam-se. Bate-me o coração por vê-las, sinto-me cansada, deve ser deste tempo, carregado de humidade. Aproximo-me da janela, os vidros embaciados, desenho um círculo com a mão e espreito. Oiço o aspirador, há muito tempo sorvendo desacompanhado, distraído, distraída eu, oiço o relógio da sala, olho as horas, recomeço a azáfama. Dizem que os chineses vêem as horas nos olhos dos gatos.

Contemplo o meu reflexo na janela, o círculo como um espelho, pareço uma mulher resignada, não o sou, somente detesto estas lides perfidamente repetitivas. E a preguiça estirada no sofá como uma ofensa, um ultraje a mim mesma dirigido e eu, parva, voltei a passar-lhe a mão pela cabeça e de novo fui presenteada com igual indiferença.

É dia ainda, trovoadas e sombras da noite espiam-me por essa janela. A chuva na intimidade dos vidros mostra-me os brilhos da rua, inundada de água. O meu olhar torna-se silêncio, relembro promessas neste tempo lento de horizontes parcos e toma-me uma saudade imensa das palavras, de sons, de vozes quebrando o quebranto e tomando-me de assalto os sentidos.

O tempo e os sentidos, os mesmos que nos escondem na alma paixões de ontem, de hoje e de agora. O corpo confessamo-lo quando a hora chega. Querendo o desejo faz das palavras silêncio e limite do que permanece, como as águas límpidas do mar oceano. Os gestos como reflexo dos sentidos, e em cada pensamento o amor que nem o corpo nem a alma querem esquecer.

Penso nalgumas árvores que o Outono pinta de vermelho quente e recomeço as lides pondo fim ao vogar do espírito. No ardor de terminar lavo-me de fantasias, meditação e imaginação, medos, fobias e taras.

Afago-lhe de novo a cabeça, eriça o pelo, arqueia o dorso, salta para o chão, roça-me as pernas e solta um miar curto e baixo. Já sei o que quer. Esta minha gata é um espectáculo, só lhe falta falar !

NOTA: * By Maria Luísa Baião,‎ escrito segunda-feira, ‎30‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006, ‏‎pelas 12:22h e provavelmente publicado no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER nos dias seguintes.