Olhou-me demorada e
ternamente. Eu retribui o carinho passando-lhe a mão pela cabeça, de arrepio,
coisa que sei não gostar. Uma provocação portanto. Retraiu-se um pouco, fugiu
ao meu gesto e ajeitou-se melhor no sofá onde desde o almoço se estendera ao
comprido. Tem uma propensão nata para a mandriice, então aos fins-de-semana,
dias em que estamos todos em casa, até para comer tem preguiça e vai fazê-lo
quase a dormir já.
Perdoo-lhe a preguiça
nesses dias. É que não gosto, quando arregaço as mangas e me atiro a algumas
das actividades que cabem às “domésticas” e com as quais embirro solenemente,
que se atravessem à minha frente e me quebrem o ritmo. Contudo acho que se não
for eu a diligenciá-las ninguém as fará melhor. Sempre detestei essas
actividades, tenho mais e melhor com que me entreter, ocupar o tempo, com muito
mais proveito para mim e para os outros. Mas tem que ser.
O barulho do aspirador
é incómodo, dá uma volta no sofá, esconde a cabeça e as orelhas, buscando
ignorar-me e ao frenesim que arrasto, cujo tumulto sabe ser somente uma questão
de minutos. Por outras palavras, torce-me o nariz. Essa coisa dos olhares
ternos vai bem desde que não incomodemos. A ternura, como vêem também tem
limites e condições. Não me chateies que eu faço o mesmo e ainda te pago com
algumas meiguices. E eu julgando essa ternura ilimitada e incondicional.
Estamos sempre
aprendendo. Modelamo-nos é o que é, adaptamo-nos às situações como os náufragos
se adaptam às bóias e coletes salva-vidas.
O aspirador lá se vai
esforçando, como um asmático. Espreito à janela, na paragem do autocarro uma
velha fala sozinha. Eu pensando sozinha. Crianças pobres brincam umas com as
outras, como eu quando pequena. Saltam à corda, brigam-se, apaziguam-se.
Bate-me o coração por vê-las, sinto-me cansada, deve ser deste tempo, carregado
de humidade. Aproximo-me da janela, os vidros embaciados, desenho um círculo
com a mão e espreito. Oiço o aspirador, há muito tempo sorvendo desacompanhado,
distraído, distraída eu, oiço o relógio da sala, olho as horas, recomeço a
azáfama. Dizem que os chineses vêem as horas nos olhos dos gatos.
Contemplo o meu reflexo
na janela, o círculo como um espelho, pareço uma mulher resignada, não o sou,
somente detesto estas lides perfidamente repetitivas. E a preguiça estirada no
sofá como uma ofensa, um ultraje a mim mesma dirigido e eu, parva, voltei a
passar-lhe a mão pela cabeça e de novo fui presenteada com igual indiferença.
É dia ainda, trovoadas
e sombras da noite espiam-me por essa janela. A chuva na intimidade dos vidros
mostra-me os brilhos da rua, inundada de água. O meu olhar torna-se silêncio,
relembro promessas neste tempo lento de horizontes parcos e toma-me uma saudade
imensa das palavras, de sons, de vozes quebrando o quebranto e tomando-me de
assalto os sentidos.
O tempo e os sentidos,
os mesmos que nos escondem na alma paixões de ontem, de hoje e de agora. O
corpo confessamo-lo quando a hora chega. Querendo o desejo faz das palavras
silêncio e limite do que permanece, como as águas límpidas do mar oceano. Os
gestos como reflexo dos sentidos, e em cada pensamento o amor que nem o corpo
nem a alma querem esquecer.
Penso nalgumas árvores
que o Outono pinta de vermelho quente e recomeço as lides pondo fim ao vogar do
espírito. No ardor de terminar lavo-me de fantasias, meditação e imaginação,
medos, fobias e taras.
Afago-lhe de novo a
cabeça, eriça o pelo, arqueia o dorso, salta para o chão, roça-me as pernas e
solta um miar curto e baixo. Já sei o que quer. Esta minha gata é um
espectáculo, só lhe falta falar !