segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

568 - LAMENTO O LYNCE ‎by Maria Luísa Baião * ...

              

...... “ Naquele dia encontrei o Lynce inerte no caminho de terra que dá acesso ao monte, focinho numa poça minúscula de sangue, o ar tranquilo de quem nunca soube o mundo uma miséria ” ....... (António Saias in Diário do Sul) ......

Ora ali estava um texto que era mais que um alinhavado de palavras, antes um rego ou um sulco bem cavado por onde corria o sentimento. Reparem, “corria”, não se escoava, corria, difundia-se, espalhava-se, disseminava-se, vertia-se, derramava-se, propagava-se, e tocava-nos, mesmo que aparentemente nada tivéssemos que ver com aquilo.

Não foi tanto a morte do Lynce que lamentei, ou me tocou, o que lastimei e me tocou foi o saber ou descobrir um sentimento em tal escondido. Escondido? Bem, não me parece, antes expresso, corajosamente expresso, como um pranto, talvez um grito acusando a presença de uma sensibilidade humilde, tímida, retraída ou púdica, simultaneamente recatada e timorata, mas tão verdadeira como nos nossos dias ninguém imaginaria ser possível existir ainda sobre a terra.

Custa-me que quem se apelida “um qualquer maduro da Igrejinha”, como que se culpabilize pela sua vera sensibilidade, coisa já tão rara, tão fora de moda, tão abstrusa nestes tempos de desenvolvimento económico ou tecnológico que tudo prometem sem que nada assegurem.

Não aponto as tuas palavras em caderninhos amigo, guarda-factos lhes chamas, guardo-as semanalmente no coração, qual bálsamo de aroma único e singular que me faz sentir menos só num mundo tão cheio de gente quanto de egoísmo. Iremos um dia levantar barreiras ao longo do Algarve, estacas pontiagudas, de aço frio, arame farpado, minas, ninhos de metralhadoras? Que loucuras colocou o mundo em movimento? Quem resiste ainda, quem arrisca ser, mostrar-se, abrir-se, expor-se ?

O mundo, pegando nas tuas palavras, devia partilhar alegrias e angústias, não loucuras, geopolíticas ou estratégicas, meras tácticas ou manobras de diversão que nos desviam do essencial, mas pequenas loucuras diárias que nos alimentem a vida e quebrem a rotineira. Que coragem a tua Saias, para contares ao mundo as tuas dores. Quantas não calamos por nem ter a quem as contar, por não haver a quem as possamos contar, quantas não calamos nós ?

Não sei o que me atingiu, me tocou, talvez o facto de ter uma gatinha, mas quero que saibam, da Vidigueira a Sines, de Grândola a Vila Nova de Mil Fontes, que, como tu, sentiria uma dor enorme se a perdesse. E é isso que me faz sentir humana, não os pontos de desconto no híper, nem as senhas premiadas nos postos de gasolina ou a promoção dos champôs anticaspa. Uma amiga, um familiar, uma gata ou um cão. Acredito na vida, sobretudo na tua vida, quão ficcionada quanto errante, é isso a vida, isso é vida, isso é que é a vida.

Quando lês és muito de quem escreve, eu quando escrevo sou muito de quem leio, e, como tu, exalto quando descubro alguém como nós. Não sou dada a metafísicas nem tenho grandes angústias existenciais, quanto às convicções, creio em Deus e só desejo ser feliz, que me deixem ser feliz.

Também nada me toca se a bolsa sobe ou desce, a minha bolsa sempre foi parca, e nem perco tempo a discutir décimas nem sofro de varicela. O que me vale é ser uma mulher cheia de saúde (?). Como a ti preocupa-me a harmonia da minha terra, a iminente extinção das abetardas e dos burricos. Lamento o Lynce, como lamento tanta miséria que grassa, a astenia que nos tolhe, o mundo, o meu, o teu, o de todos.

A vida é feita de pequenas coisas, pequenos nadas dizem os poetas, não sou poetiza mas vejo-lhes a alma.

Sê feliz Saias, e não deplores as tuas pequenas grandes dores, é isso que nos humaniza, nos diferencia, que faz com que tantas vezes ponhamos os outros em primeiro lugar, tanto querer dar quanto receber.

Por que não são tantos outros homens como tu, sensíveis até nas pequenas coisas, porquê ? Por quê tanta compulsão, sobrançaria e arrogância, tanta insensibilidade, soberba e desprezo ? Que medos escondem tanta jactância, que vergonhas ocultam a sua petulância e presunção, que vaidades mostram ? Quem são afinal vá-se lá saber.

Quantos fingem, disfarçam, dissimulam, enganam, falseiam, ou simulam o que não são ? Até ver-te.

* By Luísa Baião,‎ escrito em 14‎ de ‎Setembro‎ de ‎2006, pelas ‏‎09:42h e publicado no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, provavelmente nos dias seguintes.