...... “ Naquele
dia encontrei o Lynce inerte no caminho de terra que dá acesso ao monte,
focinho numa poça minúscula de sangue, o ar tranquilo de quem nunca soube o
mundo uma miséria ” ....... (António Saias in Diário do Sul) ......
Ora
ali estava um texto que era mais que um alinhavado de palavras, antes um rego ou um
sulco bem cavado por onde corria o sentimento. Reparem, “corria”, não se escoava,
corria, difundia-se, espalhava-se, disseminava-se, vertia-se, derramava-se, propagava-se,
e tocava-nos, mesmo que aparentemente nada tivéssemos que ver com aquilo.
Não
foi tanto a morte do Lynce que lamentei, ou me tocou, o que lastimei e me tocou foi
o saber ou descobrir um sentimento em tal escondido. Escondido? Bem, não me
parece, antes expresso, corajosamente expresso, como um pranto, talvez um grito
acusando a presença de uma sensibilidade humilde, tímida, retraída ou púdica,
simultaneamente recatada e timorata, mas tão verdadeira como nos nossos dias
ninguém imaginaria ser possível existir ainda sobre a terra.
Custa-me
que quem se apelida “um qualquer maduro da Igrejinha”, como que se culpabilize
pela sua vera sensibilidade, coisa já tão rara, tão fora de moda, tão abstrusa
nestes tempos de desenvolvimento económico ou tecnológico que tudo prometem sem
que nada assegurem.
Não
aponto as tuas palavras em caderninhos amigo, guarda-factos lhes chamas, guardo-as
semanalmente no coração, qual bálsamo de aroma único e singular que me faz
sentir menos só num mundo tão cheio de gente quanto de egoísmo. Iremos um dia
levantar barreiras ao longo do Algarve, estacas pontiagudas, de aço frio, arame
farpado, minas, ninhos de metralhadoras? Que loucuras colocou o mundo em
movimento? Quem resiste ainda, quem arrisca ser, mostrar-se, abrir-se, expor-se
?
O
mundo, pegando nas tuas palavras, devia partilhar alegrias e angústias, não
loucuras, geopolíticas ou estratégicas, meras tácticas ou manobras de diversão
que nos desviam do essencial, mas pequenas loucuras diárias que nos alimentem a
vida e quebrem a rotineira. Que coragem a tua Saias, para contares ao mundo as
tuas dores. Quantas não calamos por nem ter a quem as contar, por não haver a quem
as possamos contar, quantas não calamos nós ?
Não
sei o que me atingiu, me tocou, talvez o facto de ter uma gatinha, mas quero
que saibam, da Vidigueira a Sines, de Grândola a Vila Nova de Mil Fontes, que,
como tu, sentiria uma dor enorme se a perdesse. E é isso que me faz sentir
humana, não os pontos de desconto no híper, nem as senhas premiadas nos postos
de gasolina ou a promoção dos champôs anticaspa. Uma amiga, um familiar, uma
gata ou um cão. Acredito na vida, sobretudo na tua vida, quão ficcionada quanto
errante, é isso a vida, isso é vida, isso é que é a vida.
Quando
lês és muito de quem escreve, eu quando escrevo sou muito de quem leio, e, como
tu, exalto quando descubro alguém como nós. Não sou dada a metafísicas nem
tenho grandes angústias existenciais, quanto às convicções, creio em Deus e só
desejo ser feliz, que me deixem ser feliz.
Também
nada me toca se a bolsa sobe ou desce, a minha bolsa sempre foi parca, e nem
perco tempo a discutir décimas nem sofro de varicela. O que me vale é ser uma
mulher cheia de saúde (?). Como a ti preocupa-me a harmonia da minha terra, a
iminente extinção das abetardas e dos burricos. Lamento o Lynce, como lamento
tanta miséria que grassa, a astenia que nos tolhe, o mundo, o meu, o teu, o de
todos.
A
vida é feita de pequenas coisas, pequenos nadas dizem os poetas, não sou
poetiza mas vejo-lhes a alma.
Sê
feliz Saias, e não deplores as tuas pequenas grandes dores, é isso que nos
humaniza, nos diferencia, que faz com que tantas vezes ponhamos os outros em
primeiro lugar, tanto querer dar quanto receber.
Por
que não são tantos outros homens como tu, sensíveis até nas pequenas coisas,
porquê ? Por quê tanta compulsão, sobrançaria e arrogância, tanta
insensibilidade, soberba e desprezo ? Que medos escondem tanta jactância, que
vergonhas ocultam a sua petulância e presunção, que vaidades mostram ? Quem são
afinal vá-se lá saber.
Quantos
fingem, disfarçam, dissimulam, enganam, falseiam, ou simulam o que não são ?
Até ver-te.