“Tínhamos aprendido que havia
dores demasiado agudas, desgostos demasiado profundos, êxtases demasiado
elevados, para poderem ser registados pelos nossos seres finitos.
Quando a emoção atingia o seu
auge, a mente ficava sufocada; e a memória apagava-se até as circunstâncias
regressarem à normalidade.
Uma tal exaltação do pensamento,
embora deixasse o espírito vaguear à deriva e lhe conferisse permissão para
vogar em estranhos ares, retirava-lhe o antigo domínio paciente sobre o corpo.
O corpo era demasiado grosseiro
para sentir o auge dos nossos desgostos e das nossas alegrias. Por isso
abandonávamo-lo como lixo; deixávamo-lo abaixo de nós, a marchar em frente, um
simulacro dotado de respiração, ao seu próprio nível, sem assistência, sujeito
a influências das quais, em tempos normais, os nossos instintos nos teriam
feito fugir.
Os homens eram jovens e fortes; e
a carne e o sangue quentes reclamavam inconscientemente um direito e
atormentavam-lhes os ventres com estranhos desejos. As nossas privações e
perigos acalmavam este ardor viril, num clima tão excessivo quanto se possa
conceber. Não tínhamos lugares fechados onde pudéssemos ficar sozinhos, nem
roupas espessas para ocultar a nossa natureza.
Em todas as coisas, o homem vivia
ingenuamente com o homem.
O Árabe era, por natureza,
continente; e o uso do casamento universal tinha praticamente abolido os
caminhos irregulares nas suas tribos. As mulheres públicas das raras povoações
que encontrámos durante os nossos meses de viagem não teriam chegado para nós,
mesmo que a sua carne ocre tivesse sido digerível para um homem de gostos
saudáveis.
Horrorizados por esse sórdido
comércio, os nossos jovens começaram a satisfazer indiferentemente as poucas
necessidades uns dos outros nos seus corpos limpos – um intercâmbio frio que,
por comparação, parecia assexuado e até puro.
Posteriormente, alguns deles
começaram a justificar este processo estéril, e juravam que dois amigos,
estremecendo juntos sobre a areia macia, com os quentes membros íntimos no
abraço supremo, encontravam aí, oculto na escuridão, um coeficiente sensual da
paixão mental que soldava as nossas almas e espíritos num esforço ardente.
Vários deles, suportando a sede
para castigar apetites que não conseguiam inteiramente evitar, sentiam um
selvagem orgulho em degradar o corpo e ofereciam-se ferozmente para qualquer
tarefa que prometesse sofrimento físico ou imundície...” pág. 30).*
“Incendiara a sua tenda... iam
espancá-lo como castigo.
Se eu intercedesse seria
libertado... Os dois rapazes andavam sempre metidos em sarilhos... ordenaram
que fizesse do castigo deles um exemplo. A única coisa que poderia fazer por
minha causa era permitir que partilhassem da sentença proferida...
Era um caso de afecto entre dois
rapazes que a segregação das mulheres tornara inevitável. Essas amizades
levavam muitas vezes a casos de amor quando homens de profundidade e força
ultrapassavam os nossos conceitos carnais.
Quando inocentes, eram ardentes e
desprovidos de vergonha. Se a sexualidade surgia, passavam a um relacionamento
não espiritual, de aceitação mútua, como um casamento...
No dia seguinte... apareceram
duas figuras curvadas, com o sofrimento nos olhos, mas sorrisos retorcidos nos
lábios, que se dirigiram para mim, a coxear, e me saudaram. Era Daud e o seu
apaixonado, Farraj; uma criatura bela, efeminada, de estrutura fina, com um
rosto inocente e suaves olhos inundados de lágrimas...queriam ficar ao meu
serviço...
Disse-lhes que não precisava
deles, que era um homem simples que detestava ter criados em volta... Enquanto Daud ,
mais duro, se revoltava, Farraj foi ao encontro de Nasir e ajoelhou-se,
suplicante, revelando naquele desejo quanto havia de feminino dentro de si.
Finalmente, a conselho de Nasir,
fiquei com ambos, principalmente porque tinham um ar tão jovem e tão limpo.” (
pág. 248). *
* LAWRENCE, T. E. - OS SETE PILARES DA SABEDORIA, EUROPA – AMÉRICA - Mem Martins, Julho de 2000. ( Thomas Edward Lawrence, 1888-1935, militar e escritor, agente britânico nos países árabes do médio oriente cuja revolta alimentou entre 1916-1918, ficou conhecido como Lawrence of Arábia)