" Pelo S. Martinho, vai á
adega e prova o vinho "...
Convidado por amigos para a festa
do S. Martinho, apressei-me a adquirir a parte que me caberia no bodo ao santo,
bodo que pagaríamos entre todos.
Levantara-me preguiçosamente
tarde no sábado anterior, por a noite de sexta ter sido intensa, e, coçando as
ramelas, rumei ao tão badalado mercado da reforma agrária, ali às Corunheiras,
mercado que pensara ter acabado, como aliás se acabaram tantos direitos
adquiridos e promessas prometidas pelo 25 de Abril, e hoje não mais que ilusões
para enganar os papalvos.
Ainda recordo os tempos áureos do
Rossio de S. Braz pleno de tractores, bancas, quintaneiros e agricultores
desses tempos memoráveis em que, a par dos produtos genuinamente hortícolas, se
adquiriam muitos mais frescos e hortaliças, e bem mais baratos pela dispensa do
intermediário, vulgarmente apelidado de reaccionário, especulador e fascista,
ou simplesmente de facho.
Hoje, Belmiros e cª são
empresários encadernados e condecorados, exemplos maiores e internacionalizados
da distribuição organizada, num país que se lhes devia entregar de vez e de
bandeja, ao invés da bagunçada em que parlamentos e parlamentozinhos, cheios de
boas intenções, nos metem a cada dia que passa.
Encontrei às Corunheiras não um
rossio mas um terrado, e se teimam chamar mercado da reforma agrária aquilo,
hão-de explicar-me por que, tantos anos após as riquezas prometidas, me
encontro cada vez mais pobre. PPC tinha razão, iríamos empobrecer, eu é que,
crente e parvo como sempre, nunca julgara que tanto....
Contudo avancei decidido a não
aparecer de mãos abanando na festa do S. Martinho. E para ser franco terei que
admitir ter-me deliciado mais com o inusitado passeio que com as compras
efectuadas.
Adquiri na casca umas magnificas
castanhas de Marvão, mais atraído pela embalagem plástica em que vinham, e cujo
logótipo, uma espanhola colorida gritando “olé” e ensaiando um passe de
qualquer moda Andaluza me seduziu, que pelo aspecto das ditas, até porque,
misturadas no braseiro com as demais por outros levadas, nem cheguei a saber se
as bichosas eram as minhas.
Exultei com as variedades de
feijão, branco, castanho, manteiga, encarnado, catarino, frade, preto, todas
bem arrumadinhas em higiénicos alguidares de plástico e vendidas por casais que
anteriormente conhecera de fábricas, lojas e escritórios da cidade e entretanto
falidos, agora honrosa e forçadamente arrancados à sua zona de conforto e
reciclados em quintaneiros de ocasião, aos quais apenas faltavam as mãos
rugosas e calejadas da minha lembrança sobre as gentes ligadas à terra.
Mas aceitei o facto, combalido
mas aceitei, todos temos ou têm direito às novas oportunidades que diariamente
se nos abrem.
Delirei com a visão de cebolas e
cabeças de alhos entrançadas, as quais me lembraram a Lúcia dos meus tempos de
adolescente e do bairro da Comenda, amor que me fora roubado pelo Inácio Granja
e par que nunca mais vi desde esses tempos tão remotos. Será que ela ainda usa as tranças
até à cintura e pelas quais em tempos idos eu me perdera ?
Não sei se pela Lúcia, se das
cebolas, dei com os olhos rasos de lágrimas, de tal modo que me apressei a
disfarçar mirando as clementinas das quintas dos arredores, também elas
enfeitadas com a tal espanhola do “olé”, que aliás estava por todo o lado, das
peras às romãs e dióspiros, o que, misturado com os clamores das gentes, me
lembrou mais os mercados da Jordânia, do Iraque, da Síria e de Marrocos, (esses
sim, verdadeiramente genuínos, sem espanholas nem embalagens acusando vácuo, e
muito menos o luxo de multicoloridos alguidares plásticos), que recordações dos
mercados da Ribeira ou do Bolhão...
Adorei a imagem de alguns
pseudo-intelectuais da nossa praça, de cestinha de verga abarrotando de
produtos pseudo-biológicos e calçando alpargatas muito “in”, bamboleando-se
para se desviarem da populaça suada, de ar casto e sério mas giríssimos.
É de gente assim que aquele
mercado precisa, compram muito e dão-lhe um ar chiquérrimo que nem um
mercadinho que visitei em Bruxelas juntinho ao edifício da UE alguma vez
logrará alcançar.
Mas para que não digam que estou
a ser faccioso, garanto-vos que me apliquei a sério numa de integração social
no dito cujo, tanto que até compras fiz a dois jovens maricas, (pelo menos
assim me pareceram e eu gosto de ser vero e honesto nas minhas apreciações e
opiniões) e lindos nas suas camisolas cavadas, em pleno Novembro ,
umas taras de homens, músculos e tatuagens à mostra, uma delas muito
sensibilizadora, apelando ternamente ao “amor de pai”, no bracinho do lado do
coração, contrastando com uma outra, mais máscula, um dragão vomitando corações
de fogo, no ombro direito...
Fiquei impressionadíssimo !
E tão empático que não me fui sem
lhes comprar uns queijinhos alentejanos, muito bem embalados e com um selo de
garantia lindo, prateado, com a palavra “Mérida” gravada em relevo e em
itálico.
Tudo tinham tão bem acondicionado
num balcão frigorífico que nem a ASAE se atreveria a questionar, a menos que
embirrasse com a EDP pela falta de corrente no lugar.
Claro que vim de lá embevecido,
como poderão calcular, tão embevecido que fui incapaz de não mandar uns
olhinhos de carneiro mal morto a uma quintaneira camponesa e afogueada com os
ramos de crisântemos que não tinha mãos a medir e a vender, e me presenteou com
a visão miraculosa de dois seios criados no campo e que, aposto, deleitavam
qualquer um que se chegasse à sua banca, contudo, todavia, mas porém só devia
ter aqueles e decerto já guardados para algum cliente mais madrugador, pelo que
me atravessou com tal olhar que dei as compras por terminadas e fui à minha
vida com os olhos orbitando e encalhando em tudo que eram espias a segurar as
barracas, até me estatelar no chão, para minha vergonha, e risota de toda a
gente.
O S. Martinho correu melhor que
as torneiras nos garrafões de água-pé e, se querem saber, as arranhadelas que
tenho no queixo e no nariz devem-se a ter encalhado num copo deixado por ali ao
acaso, mas essa é outra história que talvez um dia vos conte.
E o vosso S. Martinho ?
Como foi ?
Como correu ?