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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

571 - IR AO FUNDO E VOLTAR ... By Luísa Baião*


Quanto vale a vida, me interrogo às vezes, se tantas só cuida de nos ocupar com sofrimento, por isso me vedes raros dias coberta de tristeza. Não temo da fortuna a roda, logro os anos, o duro fado que não desejo ao mais desesperado ser.

Tudo nesta cidade me enfada, contrariedades, confusão, mágoas, o tempo adiado. Para aqui fico esmorecida, por vezes em segredo, de tal modo muda e queda que nem de mim dou sentido. Quem me atenua mágoas destas, quem me lima as arestas do meu ser que eu já não posso mais, cheia que estou de tanta coisa que calo agora.

Quando confronto a idade avançando, penso no horror do tempo incerto a que a vida me convida. O bem se acaba, o mal piora, ou raízes lança e eu anseio pela mudança que retardo, enquanto aguardo, a ver se a esta sorte mudo o norte. Deus está comigo, Ele tem dons soberanos, arrasta-me, lançando sobre mim sua virtude de modo que eu a viver venha, afortunada.

Se um divino raio o peito me rompesse e dentro dele visse o meu tormento, decerto de mim se condoeria, decerto contentamento me daria. Tem-me crescido no peito tal angústia que pouca coisa no mundo me alivia, excelsos momentos de harmonia não chegam para esquecer o sofrimento. Resta-me a esperança e é tal a minha sorte, que encontro a vida e engano a morte.

Estimo a natureza, a vida, embora receie perdê-la, mas não pertenço aqueles que só crêem feliz um descontente quando se parte deste mundo. Não aceito quanto infeliz sou e me parece às vezes, que até o Céu me escuta sem agrado.

No meu semblante a gentileza, nos modos e no falar a destreza, no espírito a infalível (?) medicina que as vidas dilata e contra a qual tantas nos revoltamos em atitude ingrata.

Suja, velha, negra, arvorando a foice, faiscando, tu que tudo destruis, tudo arruínas, vai-te ! Não chegou ainda a minha hora ! Vai-te, não és tu quem está inscrita em minha sina ! Do alto do monte Santo contemplo com piedade um esplendor de fé cobrindo a cidade. Tudo aquilo me inquieta e uma vez mais parte, que não volte, que não tente, ao sofrimento tornar-me indiferente. Tudo que neste mundo me inquiete, adeus. A vossa melodia não me interessa, passou já o tempo de sofrer, agora é tempo de ventura, de alento, de aliviar esta carga, a vós me mostrar ingrata pois não sereis vós na certa quem me mata.

Verão, se é que o não viram já com espanto, que do meu e só meu tormento e sentimento não dou já qualquer testemunho público. Nem íntimo pranto. Que cante, me sussurra o espírito em surdina, que dance, cicia a meus ouvidos, que toque me dizem os braços sonhando cingir um violão. Sinto comigo o génio como companhia. Um raio de sol poisa a meus pés, me assedia, terno, qual mensageiro celeste, parecendo perguntar-me;

- Como pudeste ?

Sim, como pude perder a esperança ? A fé ? Como pude olvidar a consciência ? Como pude fazer-lhe frente, resistência ? À vida que brota efervescente ?

Quando contemplo o pulsar da vida no bulício desta aldeia global a céu aberto, afortunada e gentil me fico em paz. Navegasse eu o mar e a tudo sem temor resistiria, assim, se se acabasse o meu tormento, de todos os outros males zombaria.

E então agora, sinto-me por cima das estrelas, olho a Terra em baixo e logo penso que muito daquilo a que atendemos não passa de triste minudência. Respiro fundo, dou força a esta chama acesa no meu peito. Cedo à Divina Glória, ao amor, à vida !

Vou dançar, ao café, ao teatro, ao musical, vou, vou, vou... Fazer da vida um jogo de paciência.


* Publicado no Diário do Sul por Maria Luísa Baião‎ em 18-05-2001, rubrica "KOTA DE MULHER".

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

94 - PORQUÊ AQUELE MENINO ?.............................



Vi-o. Não sei se por prodígio sobrenatural ou fenómeno do destino, mas vi-o. A mesma carinha redonda, a mesma franja, ainda parecendo escorrida pela água, os mesmos olhos azuis profundos que tanto me haviam chocado.

Era ele, era ele sem a mais pequena duvida !

Era ele sim, mas já sem aquele ar de paz que sossega os cadáveres para que não mortifiquem em demasia os presentes.

E ao vê-lo, vi-me a mim mesmo, nesse dia fatídico que jamais me acudira à memória nem mesmo, quando, esporadicamente, desfolho velhos álbuns de família e me revejo, com dez ou onze anos, talvez nem tantos, no meio de uma histórica bicicleta, rodeado pelos meus manos, e na qual o mais velho realizava prodígios acrobáticos, tais como conduzir de costas quilómetros sem fim, connosco à pendura, numa foto feliz, ocasionalmente tirada minutos antes da tragédia.

Num atropelo revi instantaneamente toda essa quarta-feira de cinzas, o passeio, as inúmeras pessoas presentes na Albufeira do menino “D’Oiro”, as apreensões de meu pai que, apesar de menino me não passaram despercebidas e por isso não nos tinha acompanhado.

A recente mudança para a cidade, o encargo com um casebre cuja renda eu depreendia muitas vezes multiplicada pela insignificância do que lhe custava o palacete em que na minha terra vivíamos, o futuro dos filhos, as distâncias que, nesta cidade, então para todos enormes se comparadas com a vizinhança a que na aldeia tudo distava de nós, assustavam.

Era ele sim, mas como possível estar a vê-lo, tão bem o recordar, com quase quarenta anos de diferença, ele o mesmo rapazinho inocente que naquele dia não entendeu, como eu não entendi, as palavras sucção e morte, eu, hoje um homem maduro, em nada crente no que a magias, feitiços, encantamentos e a almas do outro mundo diz respeito ?

Que mistério o colocava ali, perante mim, e qual o motivo ?

E nessa tarde malfadada, as minhas tias, porque enfermeiras, confirmando a desesperança de horas de trabalho dos bombeiros, do desespero das sirenes, da impaciência dos polícias, da apreensão da multidão, dos rogos da família desse menino agora aqui perante mim.

Céptico, mirei-o e remirei-o várias vezes, um brinquedo na mão, o mesmo cabelo alourado, só nos calções divergia porque agora os não trazia.

Uma senhora loura acercou-se dele sorrateiramente, rodeou-o com os braços, beijou-o terna e demoradamente, mimou-o, e, pela mão, o levou com ela dali, deixando-me só com os meus pensamentos que, num ápice desbobinaram pela minha mente dezenas e dezenas de anos.

Então a mesma carência dos mimos maternais que nunca tive e desde pequenino sofri, a violência desesperada e frustrada de meu pai ante as decepções que lhe dei, as muitas saudades dos meus irmãos, que a vida colocou longe de mim, a dolorosa falta de intimidade entre nós e que o viver sempre ergueu como obstáculo, as apreensões de meu pai connosco, as de tantos pais que no momento presente se confundem quanto àquilo que pensaram ser certezas, e hoje se culpam pelo futuro que lhes é negado e aos filhos, a dor crestante dos momentos em que meu único filho quase me morria nos braços, o terror de um cancro que nos anos 98 acometeu a Luísa,  (repetiu em 2010) todas e tantas atribulações pelas quais passei, passámos, e solidificaram na minha família laços indestrutíveis que vicissitude alguma desfará.

Durante metade da vida desconstruí medos, complexos, traumas, inibições. Minhas amigas, Ana e Maria compreender-me-ão.

Certamente derivado de tudo isto entreguei-me devotadamente à amizade, à felicidade, ao amor e, confesso, não ter dado por perdido nem um minuto sequer desde então. Do que não tive fiz forças, do nada, ambição, das frustrações vividas e superadas as motivações que me animam, do vazio uma aura de empatia que a todos envolva.

Um carácter vincado, uma personalidade forte, uma disponibilidade sempre presente, uma entrega, uma certeza para os que em mim apostam.

Talvez nunca saiba os motivos pelos quais, tão próximo do Natal, aquele menino me visitou, talvez para me lembrar que o amor, a amizade, a solidariedade, sejam as únicas coisas que vale a pena ter presentes, sempre presentes.

Haverá verdade no facto de serem ínvios os caminhos do Senhor?

Tenho agora mais um motivo para crer que sim.