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terça-feira, 15 de junho de 2021

ÉVORA, OS EUROS REDONDOS E O TURISMO ...



711 - ÉVORA, OS EUROS REDONDOS E O TURISMO


E pronto ! Já me lembro ! Às vezes basta um pequeno empurrão para que a memória retome o seu carreiro, os neurónios e as conexões têm destas coisas, em redor do poço o meu pai descascava uma tangerina, do meu irmão mais novo népia, não me recordo, mas o mais velho segurava um envelope grande e volumoso que a embaixada da Rodésia, actual Zimbaué, lhe enviara com vasta, completa e belíssima informação sobre o Parque Nacional de Matobo*, que ele dissera querer visitar, ludibriando a embaixada, essa e muitas outras, que caindo no logro o enchiam, para deleite do meu pai, de belas fotos de países e lugares onde a imaginação os levava. Não havia net é certo, mas havia muita fantasia e originalidade nos modos de contornar os limites que a pobreza material ditava.

 

Pois foi precisamente uma fotografia inserida numa dessas revistas que me chamou a atenção, um grupo de banhistas, qual delas a mais bronzeada, algumas negras esculturais, não sei se zulus, fulas  ou bantas, e a legenda respectiva, a que na altura nem dei a devida importância mas que mais tarde, fazendo contas de cabeça e somando dois mais dois.

 

A legenda da foto dizia nem mais nem menos que isto;

 

“Mulher boa e melancia grande ninguém come sozinho” 

 

Mas desvio-me do essencial, a questão do turismo em Évora, as suas vantagens e desvantagens, a ilusão criada, e a necessidade de se pensar em formas de tornar o nosso turismo efectivamente nosso, isto é, dele não retirarmos somente a fama mas também o proveito.

 

Falo de surtos turísticos que paradisíacas praias, lugares, cidades e países experimentam, e de como esse boom em alguns casos ao invés de os enriquecer os arruinou, de tudo me lembro como se fosse hoje, até das bundinhas. Hoje custa-me a crer como foi possível uma dessas revistas apresentar tal artigo e tais fotos, tanta a censura actual, como certamente ninguém desconhecerá.

 

Mas apresentou, e eu jamais o esqueci, nem esqueci o facto de que nem tudo que parece é. Grosso modo o vanguardista artigo mostrava e demonstrava como o dinheiro só aparentemente existe e enriquece os países e cidades onde o turismo agita a economia, tal como acontece com Évora.

 

Quanto à riqueza supostamente criada pelo tal desenvolvimento turístico não só nem aparecia como desaparecia tal como um boomerang volta à mão que o lançou ou uma moeda que caia no chão rola e rebola descrevendo um círculo até tombar no sítio onde começara a rolar. O mecanismo, ou o fenómeno como era descrito na revista funcionava assim;

 

Milhares, ou centenas de milhares de turistas adquiriam ou pagavam na origem os respectivos pacotes de férias ou de fim-de-semana.

 

Nas estâncias, cidades de férias, como Évora, deixam no máximo uns trocos numas bicas, nuns gelados, ou numas coca-colas, na maioria das vezes nem na diversão nocturna apostarão nem nos aperitivos ou cocktails. Gastarão na sua curta estada só e provavelmente algum dinheiro de bolso, em postais ilustrados, numas pilhas ou cartões de memória para máquinas fotográficas, nuns maços de cigarrets, num isqueiro com uma bela imagem do Templo de Diana, numa qualquer recordação não muito cara do handcraft local para levar à mamã à amiga ou ao amigo, umas chinelas maded handcork, uma miniatura da fonte das Portas de Moura, um chapeuzinho preto com uma foice e um ramo de espigas, um grupinho em barro representando os cantadores de cante alentejano, talvez um capote no inverno e pronto, estão o fim-de-semana ou as férias feitas.

 

Claro que os hotéis que os albergam sempre têm despesas, com luz, com água, com o aprovisionamento da cozinha, do bar, mas raras unidades hoteleiras pertencem a gentes da terra, normalmente são pertença de cadeias internacionais cujo dono se desconhece e estará algures na Arábia, nos USA, na Rússia ou na África do Sul ou noutro sítio qualquer. Agora digam-me lá, será que todos os hotéis instalados entre nós têm cá o seu domicilio fiscal ? Ou terão a fiscalidade radicada na GB, França, Luxemburgo, ou Holanda ?

 

 Qual será então o nosso beneficio para além dos parcos e indiferenciados postos de trabalho como barmans, gente para a copa e cozinha, para os quartos, limpeza, recepção, a fim de ocuparem os lugares de que vos falei atrás ?

 

Mas p’lo contrário seremos nós a custear as despesas com arranjos nos gastos das calçadas e outras infra-estruturas cuja manutenção, reparação ou reposição nos caberá a nós pagar, como caberá pagar e abrir estradas e ruas e ruelas e acessos e viadutos e colmatar os estragos que esses turistas façam na cidade. Para já em Lisboa estão a facturar os italianos que se fartaram de para lá vender tuck-tucks …

 

Ora ficando o dinheiro dos pacotes logo na origem, ou se pago por cartão de crédito aterra logo numa conta em Lisboa, Porto, Luxemburgo, Bruxelas ou Amesterdão, só por mero acaso a parte de leão ficará entre nós. Isto quando não sucede o hotel dessa cadeia, se apesar de tudo tiver lucros, ser chamado a contribuir e suportar os custos de investimento da casa mãe dessa cadeia hoteleira no seu país de origem, forma sagaz e encapotada de para lá transferir os lucros, apresentando posteriormente prejuízos e muito licitamente escapando-se a ser taxado local e fiscalmente, e quiçá provavelmente candidatar-se a receber subsídios aqui, nossos. 

 

Os Euros ou poucos euros do pé-de-meia, redondos que são acabam rebolando sempre no sentido da partida, da origem, da casa mãe, poucos ou nenhuns atingem o ponto de chegada, no caso nós, Évora, pois é raro que esses hotéis reinvistam nos locais que exploram até à medula e a que se agarram como lapas.

 

Por cá o dinheirinho da luz vai para os chinocas, o da água para os amigos do Mário Lino que deu a volta ao Zé do Cano, ou deu a volta ou deu comissões, isto sou eu feito má-língua, claro que não passa de uma aleivosia minha, de uma suposição de mau gosto, pois toda a gente sabe não haver o mínimo de provas em que se fundamente esta afirmação. No fundo a questão do boom turístico em Évora e no Alentejo é saber-se quem ganha com ele.

 

Por enquanto sopeiras, recepcionistas, ajudantes de copa e cozinha, empregados de mesa, seguranças e barmans têm o futuro assegurado, pedreiros, serventes, canalizadores e electricistas também têm feito uns biscates, porém são essas as profissões que por agora o radioso futuro do turismo nos oferece, mais que isso o tempo o dirá…

 

Festeje-se então, pelo menos enquanto houver quem saiba como usufruir dos fundos europeus, não podemos criticar quem tem olho, afinal os da terra também podem concorrer a eles e se o não fazem será porque não querem, ainda há pouco uma amiga me perguntava o que seria a democracia num mundo dominado por imbecis… 


Um mero problema de consciências ou de olhos que se não abrem  ?  E surge daí a necessidade de se pensar em formas de tornar o nosso turismo efectivamente nosso, isto é, dele não retirarmos somente a fama mas também o proveito.


E depois interrogam-se por não haver dinheiro suficiente para tapar os muitos buracos que temos um pouco por todo o lado ? 

 Pensem nisso. 


 * http://www.dobrarfronteiras.com/colinas-matobo/

 

Uma curiosidade; http://www.dn.pt/dinheiro/interior/verao-de-recordes-no-turismo-nao-criou-emprego-4953968.html

Também pode ler acerca deste tema: 

https://mentcapto.blogspot.com/2016/03/328-turismo-alentejo-dolares-redondos.html

NOTA. SE GOSTASTE PARTILHA ESTE TEXTO COM AS TUAS AMIZADES, AJUDA-AS NA ANÁLISE CRÍTICA, A ESCLARECER POSIÇÕES E CLARIFICAR ASSUNTOS. 


terça-feira, 30 de março de 2021

680 - ÉVORA, TARTAN, MARCHAR MARCHAR... * (Texto de 06/11/2000)

 


  


TARTAN,   MARCHAR  MARCHAR *


Texto Publicado no Diário do Sul em 06/11/2000


 Para ser sincero esta crónica não devia ter sido escrita por mim, mas por um colega de escrita que infelizmente não conheço, e que nas páginas deste diário, de forma regular e nas páginas de desporto, nem sempre falando de desporto, tem contudo a virtualidade de captar o quotidiano de uma forma que admiro.

 As suas crónicas estão invulgarmente eivadas de uma ironia salutar, não mordaz, que de forma simples mas objectiva provam a sua capacidade de ver o que o rodeia tal qual a objectiva de uma máquina fotográfica.

 Recheadas de realismo diria eu, e se algumas tenho perdido, noutras tenho tido a oportunidade de verificar a realidade que não só capta mas que transpira através da escrita.

 Refiro-me a Mário Simões, procurem ler as suas palavras, sempre na secção de desporto, mas, e felizmente, nem sempre ao desporto dedicadas. Diria mesmo que mais as aprecio quanto mais do desporto se afastam, como se obedecessem a uma lógica que o obriga a mostrar a alma, mais que a cumprir a função de cronista desportivo.

 Mas perguntar-me-ão chegados a este ponto, que tem a ver o Mário Simões com a nossa conversa de hoje, ao que eu responderei que nada mais nada menos que uma espera no barbeiro em dia de chuva fraca. Realmente, e enquanto no barbeiro chegava a minha vez de levar umas tesouradas, admirei-me com um jovem dos seus dezasseis, dezassete anos, que em camisola de manga curta, mau grado o tempo frio e chuvoso que se fazia sentir, esperava como eu que o barbeiro caísse das nuvens.

 Claro que lhe perguntei se toda aquela leveza de vestuário era promessa ou mostra de virilidade, mas não, nem uma coisa nem outra, simplesmente vinha directo dos treinos que fizera no descampado próximo, para pegar a sua vez na loja das tesouradas.

 Praticava atletismo, com gosto e empenho, salvo erro nos Dianas, tendo a conversa derivado para a falta de uma pista de tartan em Évora, onde nem uma simples pista de atletismo os jovens têm à disposição, e ao que fiquei a saber por ele, até já se contentava com uma descoberta e exterior como a de Beja, lamentado-se pelo facto de que desde que há anos atrás abraçara o atletismo, ouvia falar em promessas de polidesportivos e complexos desportivos em que não acreditava já.

 Tendo-me reconhecido como cronista deste diário logo ali aproveitou para me levar a tornar público o seu desgosto e desilusão, que, como afirmou, grassavam entre muitos dos seus companheiros dessa e de outras modalidades, sem condições para a prática tão sã do desporto, que entre outros méritos conhecidos de todos, ocupa salutarmente a juventude e a afasta do fatalismo das drogas e de outras adições ou dependências igualmente nefastas...

 Para a idade que tinha passou-me bem os tópicos do sermão, e foi aí que me lembrei do Mário Simões, este era um caso de vida e desporto, tão ao seu jeito e tão ao seu gosto, e que eu por mais que me esforce, sei não saber tratá-lo como ele o trataria, eu desenrasco-me, ele teria conseguido fazer deste caso um caso a valer, o que aliado aos conhecimentos que tem de desporto, da sua prática a das condições em que se processa, seriam certamente mais proveitosas as suas palavras que as minhas.

 Contudo procurei não desiludir o nosso jovem atleta, ele saberá bem que a força de vontade também tem o seu valor nos méritos que como desportista venha a alcançar. É evidente que com condições outro galo cantaria, e certamente mais jovens se entregariam de alma e coração à salutar prática desportiva, e com um pouco de fé pode até ser que os seus filhos, ou netos, venham a desfrutar dos tão prometidos quanto apregoados equipamentos desportivos. Eu espero há anos por uma biblioteca e ainda não desesperei, conto viver pelo menos mais trinta ou quarenta anos, pelo que acredito que a mesma seja erguida ainda no meu tempo.

 No entretanto vou dando uns saltos ali a Vendas Novas, que proporcionalmente ao seu tamanho tem uma belíssima biblioteca, que equivaleria a todo o nosso Rossio de S. Brás, biblioteca que, curiosamente, tem livros, livros em que podemos mexer, e até ler ou trazer para casa. Conhecem uma biblioteca assim na nossa terra ? quem nos dera !

 Que os jovens não desesperem é o que lhes peço, alguma coisa há-de mudar nesta cidade, e ainda que mais nada mude, mudaremos nós, lá chegará o dia em que eu não terei olhos para ler, nem o meu atleta pernas para correr, aí certamente poderemos olhar para trás e ver o que esteve mal, mas como será tarde, o melhor é começarmos a ver já por que não bate a bota com a perdigota, e emendar a tempo o que estiver mal, está na nossa mão, só na nossa mão, entendemo-nos ?

 

Acabei agora de saber os resultados da participação dos nossos atletas nos jogos Paraolímpicos de Sidney, orgulhosos, trouxeram-nos ouro e prata em medalhas que nos honram, e se atentarmos que lhes falta muito mais que condições para treinos a rigor, mais uma razão para não desfalecermos à primeira contrariedade. É que na vida tudo são dificuldades e contrariedades, se não nos habituarmos a superá-las agora, então quando ?

 

* NOTA ACTUAL - Ah !  MAS HÁ MAIS QUE DIZER SOBRE A PISTA DE TARTAN, uma vez que lhe “roubaram” um corredor, impedindo que haja ali provas internacionais, impedindo que ali sejam homologados Records, impedindo que camionetas de desportistas e turistas venham a Évora assistir às provas internacionais de gabarito que ali não poderão ter lugar. Penso que a culpa coube ao   IPDJ que terá querido poupar uns tostões na obra porém, obra com tanta fiscalização e licenciamentos, é caso para perguntar quem mais pactuou com tamanho erro ??


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

304 - ÉVORA, ATENTADO TERRORISTA ...............


Em boa verdade ninguém sabe dizer com exactidão donde eles apareceram, eles o grupo, e pelo que foi apurado não seriam mais de meia dúzia. Todos de kispos enormes e escuros, vestimenta precoce para a época, mas ninguém estranhou, habituados que estamos a ver aparecer excursões turísticas eclécticas, até esquimós em pleno verão.

Não esqueçamos que estou tentando reconstituir minuciosamente os acontecimentos com base nas informações colhidas, que embora escassas e contraditórias nessa manhã, se vieram a mostrar numerosas e coincidentes na sua plural ambiguidade. Já lá vão uns cinco meses mas a memória não irá falhar-me, tenho o meu canhenho de apontamentos.

Ao certo ninguém parece saber por ou qual o lado por onde perpetraram o acesso à praça do Geraldo, inda que tudo leve a crer ter sido subindo a Rª da República ou descendo a 5 de Outubro ou da Selaria, digo isto por o agente em frente ao Banco de Portugal ter sido o primeiro a cair e fruto das primeiras contradições. Uns que ele tombou sem um pio e nem se terá dado conta de quem o degolou, outros que embora de boca abafada terá dado luta ao atacante que só dificilmente o subjugou, coisa a que não foi alheia a superioridade do armamento e superior pujança física do agressor. Esta é a versão que corre na esquadra e entre os agentes, o respectivo sindicato já aproveitou o ensejo para lembrar que há mais de dois anos reclama novas pistolas invocando como obsoleto o modelo que equipava o agente barbaramente assassinado (e todos os outros).

De certo apenas se sabe que o agente nem teve tempo de lançar a mão ao coldre e que sangrou como um cordeiro pascal, caído na calçada frente ao Banco de Portugal, o que dá relevo à heroicidade e ao patriotismo do seu sacrifício. 


A segunda vitima desta brutal agressão foi um infeliz e colateral acaso, trata-se de Estevão Horácio, setenta e dois anos, agente reformado e que por ali atalhava caminho vindo do mercado em direcção a casa. A mulher ainda lhe gritou:

- Não te metas Horácio !!

Mas o bom do Horácio ao ver o colega caído no chão e sangrando, não se conteve e espumando de raiva atirou-se de peito aberto ao meliante enquanto respondia à mulher:

- O dever primeiro o dever primeiro...

o terrorista, segundo testemunhos não confirmados, simplesmente terá desencravado o facalhão da goela do agente que atacara, erguido a mão e esperado e aguentado que o precipitado Horácio nele tivesse enfiado a proeminente barriga. Estevão Horácio ainda terá tido um último pensamento para a devota esposa e balbuciado:

- Ai Ester e agora ?

Ficou cadáver no mesmíssimo instante e no local onde tombou, nem terá sequer sangrado.

O resto é por demais sabido de todos. Ter-se-ão dirigido ao centro do tabuleiro da praça onde as esplanadas cheias àquela hora foram um alvo fácil, o matraquear das metralhadoras nem foi de monta, diz quem ouviu. Gente no outro extremo da praça junto à igreja de Stº Antão ou vinda da Rª João de Deus nem se terá apercebido dos tiros, que começaram exactamente ao meio dia, apenas viram o estardalhaço dos corpos, mesas e cadeiras pelo ar, tendo ficado por largos momentos expectante quanto ao motivo do estranho alarido e confusão.

Segundo testemunho não corroborado de Luís Martins, mais conhecido por Beato Salú, depois da matança, que levaram a efeito na maior das calmas, um deles ter-se-á aproximado da agência de Turismo local e disparado uma rajada contra quem de dentro se encostava aos vidros das portadas para ver o espectáculo e atirado uma granada, que os peritos vieram a classificar de ofensiva, e que não deixou vivo nenhum dos curiosos funcionários que no minuto anterior haviam sobrevivido à rajada que estilhaçara as vidraças por, no calor da bizarra cena, esta ter sido disparada demasiado alta, alegaram os mesmos peritos.

Ainda segundo Luís Martins, que especado no meio do tabuleiro aguardava expectante o que se seguiria, um dos elementos do grupo de presumíveis meliantes ter-lhe-á perguntado onde se situava a igreja de Stº. Antão, ao que ele respondeu com um gesto designando e apontando o edifício no outro extremo da praça, para onde os então alegados autores do atentado se dirigiram, armas ainda fumegando, o que não deixou de nos explicar o citado e surpreendido Luís Martins, por acaso o tipo de pessoa a quem nada surpreendia.

Segundo apurado, dezenas de telefonemas terão sido efectuados para os serviços de assistência que, inicial e compreensivelmente, tentaram de inicio canalizar as chamadas para destinos mais competentes dado o elevado numero de feridos que lhes era reportado, ao que há a acrescentar a precipitação, a ignorância e a falta de protocolo e meticulosidade de quem a partir de Évora efectuava as chamadas, confundindo durante bastante tempo os técnicos e agentes de serviço do outro lado da linha, repentinamente bombardeados com pedidos de auxilio em catadupa, o que os desestabilizava e arrancava ao remanso das rotinas protocolares, essas sim propiciadoras do bom andamento e encaminhamento das solicitações dos cidadãos, objecto, motivo e dedicação dos serviços de atendimento, como é bem sabido de todos nós.

Depois de umas trinta a cinquenta sobressaltadas chamadas, inclusivamente reportando mortos às paletes, os serviços de atendimento e assistência aperceberam-se finalmente que algo de irregular acontecera na Praça do Geraldo, e logo fizeram destacar ambulâncias, carros de apoio e um piquete que, equipado com as novas t-shirts de manga curta do fardamento de verão, se pôs a caminho acessando a dita praça pela Rª Nova, que desemboca à lateral da igreja, igreja que os alegados infiéis já tinham visitado. O designado piquete desembocou na praça precisamente no momento em que os supostos meliantes acabavam de banquetear-se com vários bules de chá, para o que intimidaram uma aterrorizada funcionária da Cozinha de Stº Humberto, obrigando-a a servi-los, e carregavam numa carrinha Citroen Berlingo fechada, pintada com motivos e cores de uma florista, à qual ninguém se lembrou de tirar a matricula, carregavam nela dizia eu, mochilas, armamento, kispos, e máscaras ou gorros passa montanhas.

Ao ver o piquete um deles, calmamente, abriu de novo uma das mochilas ou sacos de onde, segundo testemunhas e a reconstituição levada a cabo posteriormente, com recurso a uma equipa multidisciplinar onde não faltaram artistas, inclusive de teatro, capitaneados pela Sandra e pelo José Fonseca, naturais daqui e que prometeram levar à cena o incidente e conceder-lhe a conveniente abordagem plástica. Mas, retomando os factos, o suposto terrorista retirou uma pequena metralhadora com a qual disparou sobre o grupo de agentes mal este desembocou na praça e se preparava para sacar dos coldres as suas armas, ferindo dois deles e deixando outros tantos estendidos no empedrado, os restantes dispersaram rua acima, sabe-se hoje que em direcção à esquadra, que aquilo afinal era coisa séria e a pedir outro tipo de intervenção e de armamento pesado.

Uma carrinha policial Mitsubishi caixa aberta que descera a rua da Selaria teve igual tratamento, e o vidro do para brisas, tal qual os vidros das montras da papelaria Nazareth, adjacente, foram completamente estilhaçados, tendo os agentes na fuga e marcha atrás encetada atropelado mortalmente dois curiosos, um deles esmagado contra a esquina da Alcárcova de Baixo, fora estas duas vitimas não houve outras dignas de registo a assinalar, nem entre os agentes da autoridade.

Isto é, em súmula, o melhor que consegui apurar sobre o bárbaro atentado e incidente, se vos não deixo mais e melhor informação tal se deve ao facto de a investigação ser omissa num ou noutro aspecto, apesar de profundamente levada a cabo, ou por ter a mesma sido nalguns aspectos inconclusiva. A titulo de exemplo direi que após um momento inicial (e emocional há que assinalar), em que todos tinham plena certeza de ter visto os presumíveis terroristas e nitidamente identificado os mesmos sem qualquer sombra de dúvida, primeiro como árabes, depois como ciganos, e por fim como pretos, se concluiu pela maioria de testemunhos serem os ditos cujos de raça branca, caucasianos, alguns deles louros, alguns baixos, outros nem tanto, testemunhos de todo ao arrepio de quem os catalogava de gigantes, de núbios, e até de marroquinos.

A verdade é que ao certo ninguém sabe como eram ou quem eram, apesar de se terem passeado e demorado na praça com toda a desfaçatez, e nem isso já interessar, visto o terrível incidente ter catapultado o nome da cidade para os noticiários e páginas dos maiores jornais mundiais e o fluxo de turistas atingir picos impensáveis quatro meses atrás. Há quem diga ter sido o melhor que aconteceu à cidade, quem afirme nem terem os setenta e sete mortos sido um preço elevado tendo em conta os benefícios colhidos, tanto mais que noventa por cento das vítimas eram gente de fora. Nos vários serviços do estado vive-se um arrebatamento e entusiasmo como não se via há anos e não há repartição que não esteja genuinamente sedenta de indeferir um ou outro projecto, qualquer que ele seja.

Nos últimos três meses deram entrada nos competentes serviços mais de vinte solicitações para grandes investimentos, entre os quais mais de treze novos hotéis, não considerando projectos de menores dimensões. Um departamento universitário, em parceria com o Grupo PorÉvora, descobriu numa investigação histórica levada a efeito sobre um incunábulo existente na Biblioteca Pública da cidade e sobre o qual pendiam estudos vai para vinte cinco anos, apurou que já há quinhentos anos a.C. e sob o jugo romano, Cartagineses, Fenícios, ou Árabes tinham levado a efeito idêntico atentado, comprovado pelas ossadas encontradas junto à cerca velha e no lugar para onde depois foram chutados os judeus, hoje judiaria, e compreendida entre as ruas Do Raimundo e de Alconchel, actual rua Serpa Pinto. A cidade vive momentos como não vivia há muitas décadas, novas lojas sendo abertas todos os dias, e até a Guilda de comércios e ofícios, cujas direcções nunca primaram pela inteligência, se vê agora disputada com a exigência de participação de todos.

Não há fome que não dê em fartura, há males que vêm por bem, Deus escreve direito por linhas tortas, e Alá talvez um dia nos diga quem, como e porquê aquela gente nos entrou portas adentro.

Até lá, gozemos o momento…

https://www.facebook.com/Turismoevora/?fref=ts




domingo, 29 de novembro de 2015

291 - “ PÁSSAROS DE POETA “ .................................



Naturalmente não entendi a coisa senão passados dois ou três anos, a coisa era a termodinâmica, ainda que por esses dias já estivesse familiarizado com a Tabela Periódica e pela mão da Drª Escária Santos me entretivesse, nos entretivéssemos todos, encerrados nas catacumbas do laboratório de Físico-química de Santa Clara, experimentando alavancas e fulcros, planos inclinados e inércias, soluto, solução e saturação, e através da observação de fenómenos de sublimação entrando sorrateiramente nas propriedades da matéria, dos líquidos, sólidos e gasosos, tudo coisas que contudo não ajudavam no imediato a entender o Mestre Paulino, debruçado sobre uma chapa de cobre aquecida, falando sozinho, pois era assim que falava comigo;

- Entendes Humberto ?

- Percebes Humberto ?

Ele abanando a cabeça, eu de olhos postos no relógio ao fundo da oficina temendo se esgotasse o tempo do feriado e a campainha tocasse a qualquer minuto, abeirado da ombreira espiando a eclosão alquímica de um qualquer “Pássaro do poeta”, nascimento que nunca deixava de me impressionar.

Foi assim que passados uns anos, talvez menos, talvez mais, entendi as propriedades ideais do cobre, um bom condutor de electricidade e calor, cujos efeitos se replicavam ou reflectiam nas cores, digo tintas que ele aplicava na placa, mais liquidas ou menos liquidas, devo dizer densas não é ? E no modo como naquele tabuleiro mágico, fosse ele redondo, quadrado ou rectangular se aglutinavam ou dispersavam as pinceladas, como átomos numa molécula, perdão, como protões, electrões, neutrões e positrões em redor do núcleo do átomo, para ser mais exacto, que isto da Físico-química não é o cadinho de fusão da pedra filosofal mas método de ciência certa e não nos podemos dar ao luxo de divagar sob pena do resultado, ou produto final, não apresentar os atributos, elementos ou propriedades por nós esperadas.

A minha constância a vê-lo sempre que tinha um feriado fosse ele de duas horas ou apenas de uma, e a familiaridade que com ele granjeei mercê da minha ocupação aos fins-de-semana como marçano da “Urbana” do senhor Amado, e aqui devo abrir um parêntesis de dupla intencionalidade, a primeira aproveitando a pergunta da minha amiga Mariazinha que desejava saber se na exposição haveria “Passarinhas”, e a segunda para recordar Mestre Paulino que certo sábado, ou domingo, enquanto eu embrulhava artesanato variado, incluindo quadros seus para ir levar aos CTT, ao recoveiro e ao estafeta Semião, já não recordo bem, lembro apenas que tinham como destino França Itália, GB e USA, lembro dizia eu, Mestre Paulino com muita brejeirice matreira engatilhada ter disparado para o magnata e senhor Amado:

- Ouve lá ó passarão, conta lá como foi que deitaste as garras àquela passarinha ?

E o deitar as garras era nem mais nem menos que alusão soez ao facto do senhor Amado ter montado casa a uma senhora jovem, a quem mantinha, pois nessa altura o handcraft dava para tudo e todos. Quanto a mim, ao ouvir o dislate enfronhei-me nas encomendas fingindo nem ter ouvido nadinha, visto a jovem senhora em questão ser minha tia. Pelo canto do olho vi sua excelência o educadíssimo senhor Amado, surpreendidíssimo, esbugalhar os olhos a Mestre Paulino, enquanto esticava e apontava o queixo na minha direcção, em silêncio, como quem diz; porra Paulino está ali o sobrinho dela foda-se.

Esclareço que a Urbana* era uma grande loja de artesanato ali à Praça do Giraldo e a dois passos do café Arcada, onde Mestre Paulino também expunha e vendia os seus pássaros e outras metamorfoses da cidade. Desse convívio adianto-vos, nasceram os convites para as festas da “Trave” * e a possibilidade de um acompanhamento muito mais próximo da sua obra que, contudo, não aproveitei cabalmente, em especial no período da minha juventude entre os dezasseis e os dezassete anos, período em que a vida me foi deveras agitada, não podendo esquecer nela o acontecimento inolvidável que foi o 25A, o qual me agitaria, sublevaria e excitaria sobremaneira a adolescência que se ia.

Quando me ocorreu que Mestre Paulino poderia ter tido a intenção de inocular em mim o bichinho da pintura era demasiado tarde e já dera outro rumo à minha existência. A admiração pelos “Pássaros do Poeta” ficou-me porém para sempre, foi magia que me tocou, recorrendo à linguagem da arte diria ter sido expressão que me impressionou, ou impressão que em mim se expressou, se recorrendo ao ponto de vista da Físico-química diria ter sido condição que me alterou.

Os “Pássaros do Poeta” eram e são de uma beleza a que ninguém ficará indiferente, em boa hora alguém se lembrou de os propagandear e sobretudo alguém ousou dar-lhe continuidade, corpo, matéria, existência, expressão. Voltando a eles e às “Passarinhas”, prendeu-me a atenção o anúncio da exposição, pois de imediato uma miríade de razões me acudiu ao cérebro, naturalmente poder de novo extasiar-me ou regalar-me ante a saudosa riqueza cromática das composições, cuja magia tantas horas me prendera encostado à ombreira da oficina da Rua do Alfeirão, o que me mergulhou numa década prodigiosa e na recordação das festas na Trave * na entrada no mundo adulto, nos braços e abraços da Luisinha, que conheci num bailarico ainda antes do incontornável 25A, no PREC, na aprendizagem de palavras novas, e na dificuldade e no tempo que demorei a soletrar correctamente a palavra solidariedade. Com Mestre Paulino cedo aprendi o conceito boémio de Rive Gauche, enquanto em casa repetia o disco de Georges Moustaki, “Avril au Portugal” **. Ricos tempos.

Entre as razões que me alegraram quanto à expectativa de voltar a ver os “Pássaros do Poeta” encontra-se o facto, nada despiciendo, aliás para mim o vero e primordial facto de saber se a nova e pré anunciada proposta de co-laboração inter-geracional conseguiria re-criar, re-inventar novas formas de continuidade que lograssem o re-surgimento de tão peculiar passarada, como anunciava a pintora Maria Caxuxa, que durante a visita tive oportunidade de conhecer e com ela travar interessante diálogo. As minhas dúvidas fundamentavam-se na capacidade dela saber, conseguir, e estar à altura de tamanha responsabilidade, à altura do Mestre, um enorme desafio. Não digo que fosse impossível dar continuidade ao Mestre, mas seria obra certamente muito difícil já que o problema se colocaria não tanto em imitar ou falsificar a Sua pintura, os Seus “motivos”, mas antes em dar-Lhe continuidade, o que implicaria perceber, entender o espirito dos “Pássaros” e do Mestre, significaria captar e sobretudo reproduzir a alma e a magia, o ânimo e âmago desse poeta que foi o Mestre Paulino Ramos.

Mais que tudo, foi essa curiosidade que me levou à igreja de S. Vicente, avaliar, aquilatar o propagandeado e publicitado, ver com os meus olhos o desfecho desse desmedido desafio, ou se tudo não passaria de prosápia e vontade de facturar com base em prestigio obtido no passado e no apelido do Mestre. Por isso mal entrei na igreja precipitei-me na busca da nova “passarada”, que é como quem diz na busca das novas composições pictóricas, desejoso de as comparar com as verdadeiras, com as verídicas, ímpeto que me foi sendo travado na justa e exacta medida em que me debati com dificuldade em distinguir as “novas” das “velhas”, tendo cedido completamente quando para as diferenciar, destrinçar, tive que recorrer aos óculos de ver ao perto e à leitura dos pequenos textos que acompanhavam cada uma das composições.

Parabéns à Maria Caxuxa, por ter conseguido o inimaginável, captar o espírito do mestre, captar o espirito dos “Pássaros do Poeta”, dar nova vida aos pássaros, e parabéns à minha amiga Mariazinha que não deixa de ter razão e a quem responderei sim, também lá havia “Passarinhas”, aliás a partir de agora passará a haver muitas mais “Passarinhas da Poetisa” neste nosso mundo da arte.

Parabéns também à “Associação” cujo bom desempenho tem enriquecido a igreja de S. Vicente, a vida da cidade, os artistas e os amantes da arte, facto que justifica por si só que deveria pensar numa reestruturação à altura das responsabilidades a que se propõe, diga-se que apesar do trabalho positivo até agora. Reestruturação que lhe retirasse o caracter de carolice ou voluntariado em que parece movimentar-se, com claro prejuízo para os artistas, para os visitantes e naturalmente para si mesma. Recordo que com a exposição de José Cachatra *** cometera erro de palmatória na apresentação de tendência do citado pintor, e desta vez houve para com Mestre Paulino e descendentes desconsideraçãoa redacção do texto da apresentação da exposição dava-o como vivo. Ninguém merecia isto, é hora dos voluntários cederem o lugar a profissionais, ou estes, se entrados pela porta do cavalo, isto é com cunha, cederem o lugar ao mérito e a quem por concurso se mostre capaz e digno da missão. Obrigado.

Nota: as fotos  foram roubadas ao meu amigo Joaquim Alberto Lourinho Carrapato :D 



quinta-feira, 30 de julho de 2015

261 - CUTILEIRO ..........................................................


Afinal quem vai ganhar ? O ambiente que já se vive na pré campanha mais parece de festa, e claro que nós melhor até que no reino da Dinamarca, pelo que acho ser impossível desgraça maior, contudo confiemos, inda que seja de toda a prudência manter um olho no burro e outro no cigano, ou no árabe, ou no romeno, no ucraniano, no vadio, no drogado, no desempregado, no preto, and so on…

O céu está limpo, as nuvens negras desapareceram, a manhã aqueceu e a esplanada ficou agradável, bebo uma bica para me reconfortar da Exposição do amigo João Cutileiro, “Árvores do Conhecimento Com Alguns Frutos”, à Igreja de S. Vicente, de onde acabei de sair e na qual nem cinco minutos me demorei, espera o artista  que o fruto da dita lhe vá parar às mãos, está bem está ...

Cinco ou seis árvores de pedra, coisa pequena, coisa miúda, e tal qual o publicitado, produto de mãos hábeis e da mente rica criativa e lúcida de Cutileiro, por aí nada a dizer, nem da montagem, cuidada como sempre, nem sei se alguém faria melhor com o pouco que lhe meteram nas mãos, parabéns portanto à organização, pois o que me deixou meditando no artístico Cutileiro foi o seu estado de espirito, o que me conduz a outro desvio colateral nesta conversa, os parabéns à Associação Cultural Colecção B, que o soube cooptar, sabido ser Cutileiro um artista de peso, e de regime, um artista que sempre fez trabalhos essencialmente para determinado partido, obras grandes e melhor pagas. Lembro o designado “Falo”, um amontoado de pedregulhos ao cimo do Parque Eduardo VII e que um tal partido alegadamente terá pago bem, perdão, um partido não, supostamente a CML pagou, suponho que bem e a tempo e horas. Bem mais próximo de nós, temos o “Arco do Triunfo” ali às Portas do Raimundo, que deve ter sido pago a peso, sendo precisamente a questão do peso, peso institucional enquanto mandatário de campanhas e não só, o que verdadeiramente me atira para uma outra vereda colateral…

Os tempos vão maus, só cortes, as instituições públicas contam os tostões e o artístico amigo Cutileiro tem um estaleiro para gerir, armazéns, matérias-primas, gruas, monta-cargas, energia, combustíveis, rendas, provavelmente vencimentos já que acolhe lá uma catrefada de vocações que não acredito vivam somente do ar, portanto há que diversificar a oferta, descobrir-lhe novos nichos, torná-la acessível a outros espaços, a outras bolsas mais moderadas que os cofres ou contas bancárias de quaisquer municípios amigos, torna-la menos volumosa, e pesada, a fim de caber numa entrada, numa sala, na caixa de uma carrinha, na mala de um carro, ou até capaz de ser levada embrulhada debaixo do braço. Um novo conceito de arte ao portador e ao domicílio, um impulso no binómio da produtividade versus rentabilidade.

Portanto parabéns às produções Colecção B, que o cooptaram e parabéns ao amigo Cutileiro que teve visão para prever a quebra no mercado da arte e soube magistralmente delinear com a antecedência necessária e exigida uma estratégia salvífica (peditório para o qual já dei), de que a exposição que visitei é um genial instrumento, multiplicado em S. Bento de Cástris e a multiplicar em centos de sítios, assim os Deuses lhe propiciem longa vida, inspiração e compradores porque é aí que bate o galho, já que falávamos de árvores e jardins e todos sabemos que a cavalo dado não se olha o dente.

E por falar em cavalos, o amigo Cutileiro, e outros, que tirem o cavalinho da chuva pois os tempos estão mudando e não voltarão atrás, se bem que continuemos promovendo, homenageando, louvando e premiando precisamente os mesmos, precisamente aqueles que nos trouxeram até aqui, até este buraco onde soçobramos com merda até ao pescoço, lamento muito o amigo Cutileiro e outros, mas as pessoas não comem pedras, tal como não comem TGV’s disse o outro, que hora a hora se contradiz e nem sabe o que diz…







sexta-feira, 19 de junho de 2015

248 - CACHATRA EM S. VICENTE …………………


              Não me recordo já como era aquela canção do J.M. Branco, ou do Fausto... louco ou marinheiro... lólarélóli... Mas procurá-la-ei e colocarei aqui o link, fica jurado. Assim confuso me senti ante a restrita mas rica colecção de pinturas de José Cachatra (1933-1974), o esquecido, enlouquecido, extrovertido, exuberante, doutor, aviador e pintor José Carlos Cachatra,  de Borba mas eborense claro, o indizível, o maldito, o inexplicável, o inclassificável e, por acréscimo ou silenciamento, o inominável.

Já por três vezes visitei esta exposição, (no primeiro dia praticamente só metera o pé na porta) e nem me cansei, há pormenores que nos ocupam uma eternidade a entender. E será que os entendi ? No mínimo conjecturei, o que não deixa de ser uma prerrogativa ou intenção de qualquer artista ou autor, julgo.

Mas não nos afastemos do tema, e para rimar, é pena, é pena que as composições não estejam datadas, porque seria mais fácil entender, ou não, se os diferentes períodos da sua tão curta vida se reflectiram, e de que modo, na pintura e nas opções temáticas e cromáticas que fez. Aproveito porém para deixar eu também os meus agradecimentos aos proprietários das obras, e a todos aqueles que de alguma forma intervieram nesta linda exposição.

Uma coisa é certa, o tema Alentejo quase monopoliza as obras expostas, motivos, paisagens, gentes, e, segundo creio o grosso das obras conhecidas. O que sabemos é que o período vivido em Évora foi dos mais produtivos da sua curta mas profícua e atribulada carreira.

Atentei nos pormenores disse-vos há pouco, na firmeza e domínio do pincel, na inclinação progressão e certeza das pinceladas, em cuja direcção não vislumbrei a mínima hesitação. Casos há em que, ao invés de cerda, ou de espátula, se terá servido dos dedos, o que nos aparece nítido numa pequena composição (talvez 30X20cm, nº PP01 nas imagens que vos cedo) em que até a unha parece ter sido utilizada e, aqui sim, embora em pequeníssima dimensão, hipotéticamente com recurso a uma técnica de Pollock, designada "action painting". Sabe-se que Pollock executava obras gigantescas, saltando para o meio das telas e pintando do interior para o exterior, neste aspecto o catálogo da exposição apresenta alguma ligeireza, ao não ter sido dado a verificar ou rever por autoridade na matéria, induzindo em erro o visitante mais incauto ao comparar a técnica de Cachatra ao "dripping" de Pollock, o que constitui erro grosseiro, o "dripping" é uma técnica de gotejamento ou salpico da tela pelo pincel com a qual nenhuma obra nesta exposição de José Cachatra nos autoriza a fazer tal afirmação ou comparação.

Cachatra modernista ? Sim, claro, mas de um modernismo muito próprio, nele se nota abertamente uma aversão à tradição com a adopção clara de novas formas e fórmulas de expressão a que não terá sido alheia a extinta e brevíssima "Orpheu", (surgida em 1915 mas da qual só se publicaram 2 números), revista que subverteu e durante muito tempo influenciou artistas e autores portugueses em cujo círculo o nosso homem, embora arriscando afirmá-lo, decerto privou. 

           Quase sem excepção as suas figuras, os seus motivos, são fruto das novas correntes já firmadas na Europa, e desenvolvidos num traço estilizado mas nunca deixando de ser firme, o que nos prova uma mão segura, um domínio genuíno da arte e da palete, até naqueles quadros em que, não um "sfumato" mas uma indefinida penumbra anima os contornos. Expressão de estado de alma ? Embora artista seguro surgem-nos por vezes composições suas cujo jogo cromático nos apresenta propositadamente tons esbatidos, a par de outras em cores mais vivas, casos em que me atreveria mesmo a falar de cores limitada ou condicionadamente exuberantes, em Cachatra o deslumbramento nunca nos advém das cores, antes das formas, (exemplo de Flores, na minha designação).

Embora vasta, à volta de cinquenta quadros expostos, acredito que a ausência de muitas obras por dispersão ou desconhecimento delas, não nos permitem que, exclusivamente com base nestas, possamos classificar ou catalogar levianamente o autor. As "poucas" obras expostas mostram-nos uma amplitude temática rica, de onde sobressaem grupos que pela sua afinidade estilística ou cromática, ou técnica, se isolam dos demais, ou antes sobressaem dos demais, já que algumas telas não fazem de modo algum jus à personalidade conhecida do pintor, reservada, e, segundo se conhece, de um dramatismo que o conhecimento precoce e interiorizado de uma morte prematura acelerou, pois a doença e a instabilidade, sabemo-lo, foi uma sua constante e cruz.

Cachatra reproduz Picasso (1881-1973) e o cubismo, com os seus Palhaços Músicos, e Les demoiselles d'Avignon e os seus nus, ou Paul Cézanne (1839-1906) e Les Grands Baigneuses, Cachatra foi um modernista, viveu como um modernista, conviveu com modernistas na sua fase Lisboeta, e eu apostaria ter frequentado tertúlias e partilhado a companhia de outros modernistas portugueses hoje muito conhecidos. A sua pintura no-lo diz, que inclusive muito se assemelha à de alguns pintores europeus, especialmentes franceses, que por pouco não foram também seus contemporâneos.

O nosso homem foi estudante de Belas Artes, foi estudante trabalhador, boémio, professor, oficial da Força Aérea, pintor... Cachatra terá sido, a crer nalgumas telas mais exuberantes, um "bon vivant", um "play boy", um homem com a vida cheia, preenchida, até de problemas creio, a sua saída tumultuosa do liceu de Évora, em confronto com o reitor (homem do regime), faz com que o considere um inadaptado à bonomia e pasmaceira do Alentejo, mais concretamente de Évora, cidade onde, parafraseando salvo erro Vergílio Ferreira, quem tivesse menos de quatrocentos porcos ou mais que a quarta classe não seria gente fiável nem para levar a sério. Sabemos que Vergílio Ferreira deu por essa época aulas no mesmo liceu, mas penso que Cachatra terá leccionado entre 63 e 65, Vergílio Ferreira andara por aqui somente meia dúzia de anos antes, entre 45 e 48. Teria sido engraçada a sua simultaneidade e convívio, que temas lhes teriam açambarcado as conversas e a camaradagem ?

Foi por esses anos que Cachatra recusou ser reintegrado como tenente na Força Aérea, coarctando a continuidade ou curso de uma carreira militar que interrompera, porquê ? Inconformismo e recusa do regime Salazarista ? A guerra ultramarina irrompera feroz em 61...

Não esqueçamos que Humberto Delgado, general nomeado em 59 Director-Geral da Aeronáutica, posteriormente oposicionista, fora perseguido, em 59 exilado, e posteriormente assassinado a 13 de Fevereiro desse ano de 65. A atitude de Cachatra teria sido de insurgência ? Subversão ? Recordemos a veia "modernista" e por acréscimo "futurista" de José Cachatra, e os aviões, os quais eram nesse período histórico as máquinas futuristas por excelência, que o terá levado a abandoná-las ?  Igualmente por esses anos Henrique Galvão, mais precisamente em 1961, organizara e comandara o assalto ao paquete Santa Maria, numa tentativa de provocar uma crise política contra o regime de Salazar e desse modo acicatando os meios oposicionistas, onde decerto Cachatra se moveria, e então efervescentes.

São estes episódios de rebeldia que me autorizam a arriscar afirmar que muito singelamente poderão testemunhá-lo, ou pelo menos assim nos autorizam, a inscreve-lo como um independente, ou portador de um pensamento libertário, ou mais que isso, um independentista formado e empedernido, um sólido ponto referencial de coerência na aparente volatilidade da sua agitada vida.

Seria o antinacionalismo dele, ou nele, que talvez expliquem a sua faceta irreverente, ou anárquica, demolidora de cânones, é sabido que as correntes neo-realistas nasceram daí, da recusa da sobranceria e da exploração ou escravização do homem. O neo-realismo de Cachatra é sobretudo alentejano, pois noutras suas composições não é visível esta corrente, nessas outras está bem vincado o tal impressionismo e proto cubismo órfico que a brochura bem cita, o abstraccionismo e o expressionismo, tudo movimentos, tendências e correntes que nitidamente grassaram igualmente entre outros que lhe foram contemporâneos e com quem terá sido impossível não se ter cruzado em tertúlias e debates.

José Carlos Cachatra dar-me-ia, se o quisesse, pano para mangas, e torna-se tentador um seu estudo sincrónico / diacrónico abrangendo contemporaneidades suas como Almada Negreiros (1893-1970), Júlio Pomar (1926 -…), Júlio Resende (1917-2011), Fausto Sampaio (1893-1956), Dordio Gomes (1890-1976), Manuel Cargaleiro (1927-…), Nadir Afonso (1920-2013), Helena Vieira da Silva (1908-1992), António Charrua (1925-2008), António Palolo (1946-2000) e Paulino Ramos (1923-1999) os dois últimos autodidactas,  e muitos outros, todos eles imbuídos desse espirito de uma época que tudo revolucionara e até já enterrara muitos dos seus principais debutantes e intervenientes, quer a nível europeu quer mundial.

Contudo todavia mas porém a vidinha está má, difícil, e nem me pagam para isso, portanto deixo a oportunidade a quem queira desenvolver sobre o tema quaisquer teses de mestrado ou doutoramento, a gente nova e cheia de garra, acreditem que não brinco.

Infelizmente Cachatra morreu meia dúzia de dias antes do bambúrrio de 25 de Abril de 74, deve ter sido homem de esperanças, felizmente para ele morreu com elas, nós certamente morreremos desiludidos. 

P.S. – Deixo uma nota breve, o desejo que daqui a 50 anos não estejamos de igual forma a tentar adivinhar, ou compor, a vida e percurso de Marcelino Bravo, é eborense, e ainda é vivo).
                                                         PP 01
                                                      FLORES
                                             PALHAÇOS MÚSICOS
                                             




                                                        ÉVORA