Vi-o. Não sei
se por prodígio sobrenatural ou fenómeno do destino, mas vi-o. A mesma carinha
redonda, a mesma franja, ainda parecendo escorrida pela água, os mesmos olhos
azuis profundos que tanto me haviam chocado.
Era ele, era
ele sem a mais pequena duvida !
Era ele sim,
mas já sem aquele ar de paz que sossega os cadáveres para que não mortifiquem
em demasia os presentes.
E ao vê-lo,
vi-me a mim mesmo, nesse dia fatídico que jamais me acudira à memória nem
mesmo, quando, esporadicamente, desfolho velhos álbuns de família e me revejo,
com dez ou onze anos, talvez nem tantos, no meio de uma histórica bicicleta,
rodeado pelos meus manos, e na qual o mais velho realizava prodígios
acrobáticos, tais como conduzir de costas quilómetros sem fim, connosco à
pendura, numa foto feliz, ocasionalmente tirada minutos antes da tragédia.
Num atropelo
revi instantaneamente toda essa quarta-feira de cinzas, o passeio, as inúmeras
pessoas presentes na Albufeira do menino “D’Oiro”, as apreensões de meu pai
que, apesar de menino me não passaram despercebidas e por isso não nos tinha
acompanhado.
A recente
mudança para a cidade, o encargo com um casebre cuja renda eu depreendia muitas
vezes multiplicada pela insignificância do que lhe custava o palacete em que na
minha terra vivíamos, o futuro dos filhos, as distâncias que, nesta cidade,
então para todos enormes se comparadas com a vizinhança a que na aldeia tudo
distava de nós, assustavam.
Era ele sim,
mas como possível estar a vê-lo, tão bem o recordar, com quase quarenta anos de
diferença, ele o mesmo rapazinho inocente que naquele dia não entendeu, como eu
não entendi, as palavras sucção e morte, eu, hoje um homem maduro, em nada
crente no que a magias, feitiços, encantamentos e a almas do outro mundo diz
respeito ?
Que mistério
o colocava ali, perante mim, e qual o motivo ?
E nessa tarde
malfadada, as minhas tias, porque enfermeiras, confirmando a desesperança de
horas de trabalho dos bombeiros, do desespero das sirenes, da impaciência dos
polícias, da apreensão da multidão, dos rogos da família desse menino agora
aqui perante mim.
Céptico,
mirei-o e remirei-o várias vezes, um brinquedo na mão, o mesmo cabelo alourado,
só nos calções divergia porque agora os não trazia.
Uma senhora
loura acercou-se dele sorrateiramente, rodeou-o com os braços, beijou-o terna e
demoradamente, mimou-o, e, pela mão, o levou com ela dali, deixando-me só com
os meus pensamentos que, num ápice desbobinaram pela minha mente dezenas e
dezenas de anos.
Então a mesma
carência dos mimos maternais que nunca tive e desde pequenino sofri, a
violência desesperada e frustrada de meu pai ante as decepções que lhe dei, as muitas
saudades dos meus irmãos, que a vida colocou longe de mim, a dolorosa falta de
intimidade entre nós e que o viver sempre ergueu como obstáculo, as apreensões
de meu pai connosco, as de tantos pais que no momento presente se confundem
quanto àquilo que pensaram ser certezas, e hoje se culpam pelo futuro que lhes
é negado e aos filhos, a dor crestante dos momentos em que meu único filho
quase me morria nos braços, o terror de um cancro que nos anos 98 acometeu a
Luísa, (repetiu em 2010) todas e tantas atribulações pelas quais passei, passámos, e
solidificaram na minha família laços indestrutíveis que vicissitude alguma
desfará.
Durante
metade da vida desconstruí medos, complexos, traumas, inibições. Minhas amigas,
Ana e Maria compreender-me-ão.
Certamente
derivado de tudo isto entreguei-me devotadamente à amizade, à felicidade, ao
amor e, confesso, não ter dado por perdido nem um minuto sequer desde então. Do
que não tive fiz forças, do nada, ambição, das frustrações vividas e superadas
as motivações que me animam, do vazio uma aura de empatia que a todos envolva.
Um carácter
vincado, uma personalidade forte, uma disponibilidade sempre presente, uma
entrega, uma certeza para os que em mim apostam.
Talvez nunca
saiba os motivos pelos quais, tão próximo do Natal, aquele menino me visitou,
talvez para me lembrar que o amor, a amizade, a solidariedade, sejam as únicas
coisas que vale a pena ter presentes, sempre presentes.
Haverá
verdade no facto de serem ínvios os caminhos do Senhor?
Tenho agora
mais um motivo para crer que sim.