terça-feira, 13 de dezembro de 2011

95 - DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE AMOR ?

 


“Tínhamos aprendido que havia dores demasiado agudas, desgostos demasiado profundos, êxtases demasiado elevados, para poderem ser registados pelos nossos seres finitos.

Quando a emoção atingia o seu auge, a mente ficava sufocada; e a memória apagava-se até as circunstâncias regressarem à normalidade.

Uma tal exaltação do pensamento, embora deixasse o espírito vaguear à deriva e lhe conferisse permissão para vogar em estranhos ares, retirava-lhe o antigo domínio paciente sobre o corpo.

O corpo era demasiado grosseiro para sentir o auge dos nossos desgostos e das nossas alegrias. Por isso abandonávamo-lo como lixo; deixávamo-lo abaixo de nós, a marchar em frente, um simulacro dotado de respiração, ao seu próprio nível, sem assistência, sujeito a influências das quais, em tempos normais, os nossos instintos nos teriam feito fugir.

Os homens eram jovens e fortes; e a carne e o sangue quentes reclamavam inconscientemente um direito e atormentavam-lhes os ventres com estranhos desejos. As nossas privações e perigos acalmavam este ardor viril, num clima tão excessivo quanto se possa conceber. Não tínhamos lugares fechados onde pudéssemos ficar sozinhos, nem roupas espessas para ocultar a nossa natureza.

Em todas as coisas, o homem vivia ingenuamente com o homem.

O Árabe era, por natureza, continente; e o uso do casamento universal tinha praticamente abolido os caminhos irregulares nas suas tribos. As mulheres públicas das raras povoações que encontrámos durante os nossos meses de viagem não teriam chegado para nós, mesmo que a sua carne ocre tivesse sido digerível para um homem de gostos saudáveis.

Horrorizados por esse sórdido comércio, os nossos jovens começaram a satisfazer indiferentemente as poucas necessidades uns dos outros nos seus corpos limpos – um intercâmbio frio que, por comparação, parecia assexuado e até puro.

Posteriormente, alguns deles começaram a justificar este processo estéril, e juravam que dois amigos, estremecendo juntos sobre a areia macia, com os quentes membros íntimos no abraço supremo, encontravam aí, oculto na escuridão, um coeficiente sensual da paixão mental que soldava as nossas almas e espíritos num esforço ardente.

Vários deles, suportando a sede para castigar apetites que não conseguiam inteiramente evitar, sentiam um selvagem orgulho em degradar o corpo e ofereciam-se ferozmente para qualquer tarefa que prometesse sofrimento físico ou imundície...” pág. 30).*

“Incendiara a sua tenda... iam espancá-lo como castigo.

Se eu intercedesse seria libertado... Os dois rapazes andavam sempre metidos em sarilhos... ordenaram que fizesse do castigo deles um exemplo. A única coisa que poderia fazer por minha causa era permitir que partilhassem da sentença proferida...

Era um caso de afecto entre dois rapazes que a segregação das mulheres tornara inevitável. Essas amizades levavam muitas vezes a casos de amor quando homens de profundidade e força ultrapassavam os nossos conceitos carnais.

Quando inocentes, eram ardentes e desprovidos de vergonha. Se a sexualidade surgia, passavam a um relacionamento não espiritual, de aceitação mútua, como um casamento...

No dia seguinte... apareceram duas figuras curvadas, com o sofrimento nos olhos, mas sorrisos retorcidos nos lábios, que se dirigiram para mim, a coxear, e me saudaram. Era Daud e o seu apaixonado, Farraj; uma criatura bela, efeminada, de estrutura fina, com um rosto inocente e suaves olhos inundados de lágrimas...queriam ficar ao meu serviço...

Disse-lhes que não precisava deles, que era um homem simples que detestava ter criados em volta... Enquanto Daud, mais duro, se revoltava, Farraj foi ao encontro de Nasir e ajoelhou-se, suplicante, revelando naquele desejo quanto havia de feminino dentro de si.

Finalmente, a conselho de Nasir, fiquei com ambos, principalmente porque tinham um ar tão jovem e tão limpo.” ( pág. 248). *
 
* LAWRENCE, T. E. - OS SETE PILARES DA SABEDORIA, EUROPA – AMÉRICA - Mem Martins, Julho de 2000. ( Thomas Edward Lawrence, 1888-1935, militar e escritor, agente britânico nos países árabes do médio oriente cuja revolta alimentou entre 1916-1918, ficou conhecido como Lawrence of Arábia)