quarta-feira, 12 de outubro de 2011

92 - UMA DOR ASSIM........................




Àquela hora a festa estava animada.

“Noite Africana”, mais de uma centena de estudantes universitários das nossas antigas províncias ultramarinas, numa proporção de cem negros para trinta brancos e idêntica nas mulheres para os homens pois elas estão por toda a parte e a conquistar tudo.

Ouviam-se músicas de África, entornavam-se caipirinhas do Brasil, para a malta daquelas bandas, escoava-se cerveja da nossa, a coisa tava mesmo mais animada que o costume.

Não bebi em excesso, nunca bebo aliás, talvez por isso mais lúcido e com o olhar mais arguto, dei com ele estirado meio debaixo do improvisado palco, cerveja entornada, ele entornado, baba e ranho confundindo-se-lhe com as lágrimas que ao escorrerem lhe marcavam sulcos “cavados” cara tisnada abaixo.

Conheci-o logo, como eu era um dos frequentadores assíduos daquelas tertúlias e meu amigo, como eu normalmente um homem feliz, sempre animado e animando os outros. Não naquela noite. Nem parecia ele, desbragado, ignoro mesmo se não mijado, orgíaco, perverso, choroso, pesaroso, ferido nos sentimentos, melindrado com o mundo, ofendido, tudo isso lhe vi nos olhos baços de toldados que lhe deixavam ver a alma em turbilhão.

- Que coisa Gilberto! Que se passa contigo amigo ?

E ele nada. Mirou-me, como se eu o culpado das suas mágoas, logrou num gesto brusco entornar-me a cerveja que tinha na mão e se lhe derramou por cima, mais empapado ou encharcado tendo ficado, num gesto que, mais que hostilizar procurava certamente afastar-me.

Calei-me. Dobrei as pernas, agachei-me para melhor o ouvir no balbuciar lamuriento que iniciou mas foi inútil. Entendê-lo não era matéria fácil.

Ébrio, gaguejando da embriaguez, somente palavras soltas e bem poucas lhe consegui apanhar, como quem, no ar, num gesto reflexo e rápido apanha um mosquito, uma borboleta da luz, uma mosca em movimento.

-  Tudo cinismo, …foi uma cínica…

E lá ia calando ou falando entre dentes, intercalando no discurso erróneo frases perceptíveis com outras que não apanhei de todo.

- “ Vive de ilusões, vive numa ilusão é o que é ! ”

E voltava a calar-se, a manter ou a continuar perorando uma ladainha só para ele com sentido.

–  Fui usado, usou-me, traiu-me, traição ! 

E as palavras continuavam a soltar-se-lhe com tanta coerência quanta a que existe nas bolinhas de sabão sopradas ao ar pelas crianças.

- Para que lhe servi eu afinal ? 

Cinismo, tudo aquilo era oportunismo e cinismo.

Eu franzi o cenho. Quem o teria usado ? De quem o cinismo ? Quem o ou a oportunista ? Que traição ? Usado como e para quê ? Babou-se de novo mas deixou acender-se-lhe no rosto um mar de lágrimas. Nem me atrevi a perguntar-lhe se queria uma cerveja, tratado até demais estava ele, fui metendo umas frases soltas, umas palavras por outras para tentar cerzir-lhe o discurso ininteligível, mas foi chão que não deu uvas.

- E o Porto, o Porto há-de se outro engano, como foi o de Guimarães .
Estaria falando de futebol ? Eu sabia-o Sportinguista, mas nunca o vira lamentar tão pouco o seu clube, quanto mais outros !

– O Guimarães pois ! Foi a Guimarães ver o D. Afonso Henriques ! Dois dias de penosa viajem para ver D. Afonso Henriques, e Braga ! 
Pois ! Braga por um canudo !

E eu cada vez mais intrigado com a coisa. Peguei-lhe num braço, sacudiu-me, nem estava em condições de levantar-se, contudo consegui que ficasse numa posição mais cómoda e até que evitasse vir a sufocar no próprio vómito caso tal lhe acontecesse.

Agradeceu-me com um brigado Baião, és um amigão dos verdadeiros.

– Sou mais um Gilberto, tens tantos amigo ! 

Não queres vir sentar-te ao pé da malta ?

– Não ! Deixa-me só porra ! Deixa-me só que eu ainda sou verdadeiro ! Nem preciso de libertação ! Qual libertação nem qual c……..(pi) Mas quem é que a prendia f………..? Alguma vez a prendi ? Tu conheces-me Baião, alguma vez prendi alguém ? Alguma vez te menti ? Ou a alguém ? Não merecia isto amigo ! Eu não merecia, condicionamentos, condicionamentos uma merda, não condiciono ninguém ! 

Não prendo ninguém ! E quando digo que tenho sentimentos tenho mesmo ! Porra para isto tudo pá ! Porra pa tudo isto amigo Baião ! Ela que fique lá com a sua libertação e a sua liberdade ou o caraças pá ! Mentiras, foram tudo mentiras, sempre mentiras, sempre ilusões, eu nunca tive ilusões, ela sim, vive nelas, delas e para elas. Bom proveito lhe façam, se é mal que se cure o médico que a ature ! Ai e atura sim ! E de que maneira ! E eu que acreditei quando a ouvi estou feliz só porque te encontrei ! E agora ? Agora quem sabe, talvez um dia eu aprenda a esquecer, não sou velho, velho é quem vive do passado, de recordações, não quero, talvez custe a esquecer mas não quero.

- É o meu dia de anos Baião, é tempo de ganhar juízo. A vida é mesmo assim, quando se pensa que se conquistou é que se perde. Verdade amigo, tou triste, muito triste, nem tudo é como desejamos. Parece castigo, parece a solidão querendo acabar comigo. 

Sou forte, vou recuperar, tenho que recuperar, tenho que demonstrar alegria, até quando não a tenho né amigo ? Ser forte é calar quando o ideal seria gritar a todos a minha angústia.

– E calou-se, calou-se tão repentinamente quanto tinha começado aquela lengalenga doída, os olhos fecharam-se-lhe adormecendo de vez.

Dobrei-lhe o blusão em almofada e coloquei-lho debaixo da cabeça suada, fiz-me á vida e á festa meditabundo mas sem o perder de vista, uma dor daquelas não podia ser deixada ao acaso.