terça-feira, 13 de dezembro de 2011

95 - DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE AMOR ?

 


“Tínhamos aprendido que havia dores demasiado agudas, desgostos demasiado profundos, êxtases demasiado elevados, para poderem ser registados pelos nossos seres finitos.

Quando a emoção atingia o seu auge, a mente ficava sufocada; e a memória apagava-se até as circunstâncias regressarem à normalidade.

Uma tal exaltação do pensamento, embora deixasse o espírito vaguear à deriva e lhe conferisse permissão para vogar em estranhos ares, retirava-lhe o antigo domínio paciente sobre o corpo.

O corpo era demasiado grosseiro para sentir o auge dos nossos desgostos e das nossas alegrias. Por isso abandonávamo-lo como lixo; deixávamo-lo abaixo de nós, a marchar em frente, um simulacro dotado de respiração, ao seu próprio nível, sem assistência, sujeito a influências das quais, em tempos normais, os nossos instintos nos teriam feito fugir.

Os homens eram jovens e fortes; e a carne e o sangue quentes reclamavam inconscientemente um direito e atormentavam-lhes os ventres com estranhos desejos. As nossas privações e perigos acalmavam este ardor viril, num clima tão excessivo quanto se possa conceber. Não tínhamos lugares fechados onde pudéssemos ficar sozinhos, nem roupas espessas para ocultar a nossa natureza.

Em todas as coisas, o homem vivia ingenuamente com o homem.

O Árabe era, por natureza, continente; e o uso do casamento universal tinha praticamente abolido os caminhos irregulares nas suas tribos. As mulheres públicas das raras povoações que encontrámos durante os nossos meses de viagem não teriam chegado para nós, mesmo que a sua carne ocre tivesse sido digerível para um homem de gostos saudáveis.

Horrorizados por esse sórdido comércio, os nossos jovens começaram a satisfazer indiferentemente as poucas necessidades uns dos outros nos seus corpos limpos – um intercâmbio frio que, por comparação, parecia assexuado e até puro.

Posteriormente, alguns deles começaram a justificar este processo estéril, e juravam que dois amigos, estremecendo juntos sobre a areia macia, com os quentes membros íntimos no abraço supremo, encontravam aí, oculto na escuridão, um coeficiente sensual da paixão mental que soldava as nossas almas e espíritos num esforço ardente.

Vários deles, suportando a sede para castigar apetites que não conseguiam inteiramente evitar, sentiam um selvagem orgulho em degradar o corpo e ofereciam-se ferozmente para qualquer tarefa que prometesse sofrimento físico ou imundície...” pág. 30).*

“Incendiara a sua tenda... iam espancá-lo como castigo.

Se eu intercedesse seria libertado... Os dois rapazes andavam sempre metidos em sarilhos... ordenaram que fizesse do castigo deles um exemplo. A única coisa que poderia fazer por minha causa era permitir que partilhassem da sentença proferida...

Era um caso de afecto entre dois rapazes que a segregação das mulheres tornara inevitável. Essas amizades levavam muitas vezes a casos de amor quando homens de profundidade e força ultrapassavam os nossos conceitos carnais.

Quando inocentes, eram ardentes e desprovidos de vergonha. Se a sexualidade surgia, passavam a um relacionamento não espiritual, de aceitação mútua, como um casamento...

No dia seguinte... apareceram duas figuras curvadas, com o sofrimento nos olhos, mas sorrisos retorcidos nos lábios, que se dirigiram para mim, a coxear, e me saudaram. Era Daud e o seu apaixonado, Farraj; uma criatura bela, efeminada, de estrutura fina, com um rosto inocente e suaves olhos inundados de lágrimas...queriam ficar ao meu serviço...

Disse-lhes que não precisava deles, que era um homem simples que detestava ter criados em volta... Enquanto Daud, mais duro, se revoltava, Farraj foi ao encontro de Nasir e ajoelhou-se, suplicante, revelando naquele desejo quanto havia de feminino dentro de si.

Finalmente, a conselho de Nasir, fiquei com ambos, principalmente porque tinham um ar tão jovem e tão limpo.” ( pág. 248). *
 
* LAWRENCE, T. E. - OS SETE PILARES DA SABEDORIA, EUROPA – AMÉRICA - Mem Martins, Julho de 2000. ( Thomas Edward Lawrence, 1888-1935, militar e escritor, agente britânico nos países árabes do médio oriente cuja revolta alimentou entre 1916-1918, ficou conhecido como Lawrence of Arábia)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

94 - PORQUÊ AQUELE MENINO ?.............................



Vi-o. Não sei se por prodígio sobrenatural ou fenómeno do destino, mas vi-o. A mesma carinha redonda, a mesma franja, ainda parecendo escorrida pela água, os mesmos olhos azuis profundos que tanto me haviam chocado.

Era ele, era ele sem a mais pequena duvida !

Era ele sim, mas já sem aquele ar de paz que sossega os cadáveres para que não mortifiquem em demasia os presentes.

E ao vê-lo, vi-me a mim mesmo, nesse dia fatídico que jamais me acudira à memória nem mesmo, quando, esporadicamente, desfolho velhos álbuns de família e me revejo, com dez ou onze anos, talvez nem tantos, no meio de uma histórica bicicleta, rodeado pelos meus manos, e na qual o mais velho realizava prodígios acrobáticos, tais como conduzir de costas quilómetros sem fim, connosco à pendura, numa foto feliz, ocasionalmente tirada minutos antes da tragédia.

Num atropelo revi instantaneamente toda essa quarta-feira de cinzas, o passeio, as inúmeras pessoas presentes na Albufeira do menino “D’Oiro”, as apreensões de meu pai que, apesar de menino me não passaram despercebidas e por isso não nos tinha acompanhado.

A recente mudança para a cidade, o encargo com um casebre cuja renda eu depreendia muitas vezes multiplicada pela insignificância do que lhe custava o palacete em que na minha terra vivíamos, o futuro dos filhos, as distâncias que, nesta cidade, então para todos enormes se comparadas com a vizinhança a que na aldeia tudo distava de nós, assustavam.

Era ele sim, mas como possível estar a vê-lo, tão bem o recordar, com quase quarenta anos de diferença, ele o mesmo rapazinho inocente que naquele dia não entendeu, como eu não entendi, as palavras sucção e morte, eu, hoje um homem maduro, em nada crente no que a magias, feitiços, encantamentos e a almas do outro mundo diz respeito ?

Que mistério o colocava ali, perante mim, e qual o motivo ?

E nessa tarde malfadada, as minhas tias, porque enfermeiras, confirmando a desesperança de horas de trabalho dos bombeiros, do desespero das sirenes, da impaciência dos polícias, da apreensão da multidão, dos rogos da família desse menino agora aqui perante mim.

Céptico, mirei-o e remirei-o várias vezes, um brinquedo na mão, o mesmo cabelo alourado, só nos calções divergia porque agora os não trazia.

Uma senhora loura acercou-se dele sorrateiramente, rodeou-o com os braços, beijou-o terna e demoradamente, mimou-o, e, pela mão, o levou com ela dali, deixando-me só com os meus pensamentos que, num ápice desbobinaram pela minha mente dezenas e dezenas de anos.

Então a mesma carência dos mimos maternais que nunca tive e desde pequenino sofri, a violência desesperada e frustrada de meu pai ante as decepções que lhe dei, as muitas saudades dos meus irmãos, que a vida colocou longe de mim, a dolorosa falta de intimidade entre nós e que o viver sempre ergueu como obstáculo, as apreensões de meu pai connosco, as de tantos pais que no momento presente se confundem quanto àquilo que pensaram ser certezas, e hoje se culpam pelo futuro que lhes é negado e aos filhos, a dor crestante dos momentos em que meu único filho quase me morria nos braços, o terror de um cancro que nos anos 98 acometeu a Luísa,  (repetiu em 2010) todas e tantas atribulações pelas quais passei, passámos, e solidificaram na minha família laços indestrutíveis que vicissitude alguma desfará.

Durante metade da vida desconstruí medos, complexos, traumas, inibições. Minhas amigas, Ana e Maria compreender-me-ão.

Certamente derivado de tudo isto entreguei-me devotadamente à amizade, à felicidade, ao amor e, confesso, não ter dado por perdido nem um minuto sequer desde então. Do que não tive fiz forças, do nada, ambição, das frustrações vividas e superadas as motivações que me animam, do vazio uma aura de empatia que a todos envolva.

Um carácter vincado, uma personalidade forte, uma disponibilidade sempre presente, uma entrega, uma certeza para os que em mim apostam.

Talvez nunca saiba os motivos pelos quais, tão próximo do Natal, aquele menino me visitou, talvez para me lembrar que o amor, a amizade, a solidariedade, sejam as únicas coisas que vale a pena ter presentes, sempre presentes.

Haverá verdade no facto de serem ínvios os caminhos do Senhor?

Tenho agora mais um motivo para crer que sim.


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

93 - S. MARTINHO.......


                            
" Pelo S. Martinho, vai á adega e prova o vinho "...

Convidado por amigos para a festa do S. Martinho, apressei-me a adquirir a parte que me caberia no bodo ao santo, bodo que pagaríamos entre todos.

Levantara-me preguiçosamente tarde no sábado anterior, por a noite de sexta ter sido intensa, e, coçando as ramelas, rumei ao tão badalado mercado da reforma agrária, ali às Corunheiras, mercado que pensara ter acabado, como aliás se acabaram tantos direitos adquiridos e promessas prometidas pelo 25 de Abril, e hoje não mais que ilusões para enganar os papalvos.

Ainda recordo os tempos áureos do Rossio de S. Braz pleno de tractores, bancas, quintaneiros e agricultores desses tempos memoráveis em que, a par dos produtos genuinamente hortícolas, se adquiriam muitos mais frescos e hortaliças, e bem mais baratos pela dispensa do intermediário, vulgarmente apelidado de reaccionário, especulador e fascista, ou simplesmente de facho.

Hoje, Belmiros e cª são empresários encadernados e condecorados, exemplos maiores e internacionalizados da distribuição organizada, num país que se lhes devia entregar de vez e de bandeja, ao invés da bagunçada em que parlamentos e parlamentozinhos, cheios de boas intenções, nos metem a cada dia que passa.

Encontrei às Corunheiras não um rossio mas um terrado, e se teimam chamar mercado da reforma agrária aquilo, hão-de explicar-me por que, tantos anos após as riquezas prometidas, me encontro cada vez mais pobre. PPC tinha razão, iríamos empobrecer, eu é que, crente e parvo como sempre, nunca julgara que tanto....

Contudo avancei decidido a não aparecer de mãos abanando na festa do S. Martinho. E para ser franco terei que admitir ter-me deliciado mais com o inusitado passeio que com as compras efectuadas.

Adquiri na casca umas magnificas castanhas de Marvão, mais atraído pela embalagem plástica em que vinham, e cujo logótipo, uma espanhola colorida gritando “olé” e ensaiando um passe de qualquer moda Andaluza me seduziu, que pelo aspecto das ditas, até porque, misturadas no braseiro com as demais por outros levadas, nem cheguei a saber se as bichosas eram as minhas.

Exultei com as variedades de feijão, branco, castanho, manteiga, encarnado, catarino, frade, preto, todas bem arrumadinhas em higiénicos alguidares de plástico e vendidas por casais que anteriormente conhecera de fábricas, lojas e escritórios da cidade e entretanto falidos, agora honrosa e forçadamente arrancados à sua zona de conforto e reciclados em quintaneiros de ocasião, aos quais apenas faltavam as mãos rugosas e calejadas da minha lembrança sobre as gentes ligadas à terra.

Mas aceitei o facto, combalido mas aceitei, todos temos ou têm direito às novas oportunidades que diariamente se nos abrem.

Delirei com a visão de cebolas e cabeças de alhos entrançadas, as quais me lembraram a Lúcia dos meus tempos de adolescente e do bairro da Comenda, amor que me fora roubado pelo Inácio Granja e par que nunca mais vi desde esses tempos tão remotos. Será que ela ainda usa as tranças até à cintura e pelas quais em tempos idos eu me perdera ?

Não sei se pela Lúcia, se das cebolas, dei com os olhos rasos de lágrimas, de tal modo que me apressei a disfarçar mirando as clementinas das quintas dos arredores, também elas enfeitadas com a tal espanhola do “olé”, que aliás estava por todo o lado, das peras às romãs e dióspiros, o que, misturado com os clamores das gentes, me lembrou mais os mercados da Jordânia, do Iraque, da Síria e de Marrocos, (esses sim, verdadeiramente genuínos, sem espanholas nem embalagens acusando vácuo, e muito menos o luxo de multicoloridos alguidares plásticos), que recordações dos mercados da Ribeira ou do Bolhão...

Adorei a imagem de alguns pseudo-intelectuais da nossa praça, de cestinha de verga abarrotando de produtos pseudo-biológicos e calçando alpargatas muito “in”, bamboleando-se para se desviarem da populaça suada, de ar casto e sério mas giríssimos.

É de gente assim que aquele mercado precisa, compram muito e dão-lhe um ar chiquérrimo que nem um mercadinho que visitei em Bruxelas juntinho ao edifício da UE alguma vez logrará alcançar.

Mas para que não digam que estou a ser faccioso, garanto-vos que me apliquei a sério numa de integração social no dito cujo, tanto que até compras fiz a dois jovens maricas, (pelo menos assim me pareceram e eu gosto de ser vero e honesto nas minhas apreciações e opiniões) e lindos nas suas camisolas cavadas, em pleno Novembro, umas taras de homens, músculos e tatuagens à mostra, uma delas muito sensibilizadora, apelando ternamente ao “amor de pai”, no bracinho do lado do coração, contrastando com uma outra, mais máscula, um dragão vomitando corações de fogo, no ombro direito...

Fiquei impressionadíssimo !

E tão empático que não me fui sem lhes comprar uns queijinhos alentejanos, muito bem embalados e com um selo de garantia lindo, prateado, com a palavra “Mérida” gravada em relevo e em itálico.

Tudo tinham tão bem acondicionado num balcão frigorífico que nem a ASAE se atreveria a questionar, a menos que embirrasse com a EDP pela falta de corrente no lugar.

Claro que vim de lá embevecido, como poderão calcular, tão embevecido que fui incapaz de não mandar uns olhinhos de carneiro mal morto a uma quintaneira camponesa e afogueada com os ramos de crisântemos que não tinha mãos a medir e a vender, e me presenteou com a visão miraculosa de dois seios criados no campo e que, aposto, deleitavam qualquer um que se chegasse à sua banca, contudo, todavia, mas porém só devia ter aqueles e decerto já guardados para algum cliente mais madrugador, pelo que me atravessou com tal olhar que dei as compras por terminadas e fui à minha vida com os olhos orbitando e encalhando em tudo que eram espias a segurar as barracas, até me estatelar no chão, para minha vergonha, e risota de toda a gente.

O S. Martinho correu melhor que as torneiras nos garrafões de água-pé e, se querem saber, as arranhadelas que tenho no queixo e no nariz devem-se a ter encalhado num copo deixado por ali ao acaso, mas essa é outra história que talvez um dia vos conte.

E o vosso S. Martinho ?
Como foi ?
Como correu ?

Do meu nem me lembro !



quarta-feira, 12 de outubro de 2011

92 - UMA DOR ASSIM........................




Àquela hora a festa estava animada.

“Noite Africana”, mais de uma centena de estudantes universitários das nossas antigas províncias ultramarinas, numa proporção de cem negros para trinta brancos e idêntica nas mulheres para os homens pois elas estão por toda a parte e a conquistar tudo.

Ouviam-se músicas de África, entornavam-se caipirinhas do Brasil, para a malta daquelas bandas, escoava-se cerveja da nossa, a coisa tava mesmo mais animada que o costume.

Não bebi em excesso, nunca bebo aliás, talvez por isso mais lúcido e com o olhar mais arguto, dei com ele estirado meio debaixo do improvisado palco, cerveja entornada, ele entornado, baba e ranho confundindo-se-lhe com as lágrimas que ao escorrerem lhe marcavam sulcos “cavados” cara tisnada abaixo.

Conheci-o logo, como eu era um dos frequentadores assíduos daquelas tertúlias e meu amigo, como eu normalmente um homem feliz, sempre animado e animando os outros. Não naquela noite. Nem parecia ele, desbragado, ignoro mesmo se não mijado, orgíaco, perverso, choroso, pesaroso, ferido nos sentimentos, melindrado com o mundo, ofendido, tudo isso lhe vi nos olhos baços de toldados que lhe deixavam ver a alma em turbilhão.

- Que coisa Gilberto! Que se passa contigo amigo ?

E ele nada. Mirou-me, como se eu o culpado das suas mágoas, logrou num gesto brusco entornar-me a cerveja que tinha na mão e se lhe derramou por cima, mais empapado ou encharcado tendo ficado, num gesto que, mais que hostilizar procurava certamente afastar-me.

Calei-me. Dobrei as pernas, agachei-me para melhor o ouvir no balbuciar lamuriento que iniciou mas foi inútil. Entendê-lo não era matéria fácil.

Ébrio, gaguejando da embriaguez, somente palavras soltas e bem poucas lhe consegui apanhar, como quem, no ar, num gesto reflexo e rápido apanha um mosquito, uma borboleta da luz, uma mosca em movimento.

-  Tudo cinismo, …foi uma cínica…

E lá ia calando ou falando entre dentes, intercalando no discurso erróneo frases perceptíveis com outras que não apanhei de todo.

- “ Vive de ilusões, vive numa ilusão é o que é ! ”

E voltava a calar-se, a manter ou a continuar perorando uma ladainha só para ele com sentido.

–  Fui usado, usou-me, traiu-me, traição ! 

E as palavras continuavam a soltar-se-lhe com tanta coerência quanta a que existe nas bolinhas de sabão sopradas ao ar pelas crianças.

- Para que lhe servi eu afinal ? 

Cinismo, tudo aquilo era oportunismo e cinismo.

Eu franzi o cenho. Quem o teria usado ? De quem o cinismo ? Quem o ou a oportunista ? Que traição ? Usado como e para quê ? Babou-se de novo mas deixou acender-se-lhe no rosto um mar de lágrimas. Nem me atrevi a perguntar-lhe se queria uma cerveja, tratado até demais estava ele, fui metendo umas frases soltas, umas palavras por outras para tentar cerzir-lhe o discurso ininteligível, mas foi chão que não deu uvas.

- E o Porto, o Porto há-de se outro engano, como foi o de Guimarães .
Estaria falando de futebol ? Eu sabia-o Sportinguista, mas nunca o vira lamentar tão pouco o seu clube, quanto mais outros !

– O Guimarães pois ! Foi a Guimarães ver o D. Afonso Henriques ! Dois dias de penosa viajem para ver D. Afonso Henriques, e Braga ! 
Pois ! Braga por um canudo !

E eu cada vez mais intrigado com a coisa. Peguei-lhe num braço, sacudiu-me, nem estava em condições de levantar-se, contudo consegui que ficasse numa posição mais cómoda e até que evitasse vir a sufocar no próprio vómito caso tal lhe acontecesse.

Agradeceu-me com um brigado Baião, és um amigão dos verdadeiros.

– Sou mais um Gilberto, tens tantos amigo ! 

Não queres vir sentar-te ao pé da malta ?

– Não ! Deixa-me só porra ! Deixa-me só que eu ainda sou verdadeiro ! Nem preciso de libertação ! Qual libertação nem qual c……..(pi) Mas quem é que a prendia f………..? Alguma vez a prendi ? Tu conheces-me Baião, alguma vez prendi alguém ? Alguma vez te menti ? Ou a alguém ? Não merecia isto amigo ! Eu não merecia, condicionamentos, condicionamentos uma merda, não condiciono ninguém ! 

Não prendo ninguém ! E quando digo que tenho sentimentos tenho mesmo ! Porra para isto tudo pá ! Porra pa tudo isto amigo Baião ! Ela que fique lá com a sua libertação e a sua liberdade ou o caraças pá ! Mentiras, foram tudo mentiras, sempre mentiras, sempre ilusões, eu nunca tive ilusões, ela sim, vive nelas, delas e para elas. Bom proveito lhe façam, se é mal que se cure o médico que a ature ! Ai e atura sim ! E de que maneira ! E eu que acreditei quando a ouvi estou feliz só porque te encontrei ! E agora ? Agora quem sabe, talvez um dia eu aprenda a esquecer, não sou velho, velho é quem vive do passado, de recordações, não quero, talvez custe a esquecer mas não quero.

- É o meu dia de anos Baião, é tempo de ganhar juízo. A vida é mesmo assim, quando se pensa que se conquistou é que se perde. Verdade amigo, tou triste, muito triste, nem tudo é como desejamos. Parece castigo, parece a solidão querendo acabar comigo. 

Sou forte, vou recuperar, tenho que recuperar, tenho que demonstrar alegria, até quando não a tenho né amigo ? Ser forte é calar quando o ideal seria gritar a todos a minha angústia.

– E calou-se, calou-se tão repentinamente quanto tinha começado aquela lengalenga doída, os olhos fecharam-se-lhe adormecendo de vez.

Dobrei-lhe o blusão em almofada e coloquei-lho debaixo da cabeça suada, fiz-me á vida e á festa meditabundo mas sem o perder de vista, uma dor daquelas não podia ser deixada ao acaso.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

91 - Inch allah …



Já vira aquela cara em qualquer lado. Não como agora me aparecia, magra, macilenta e mais cavada ainda pela falta de cabelo, rapado à escovinha, feições um tudo-nada famintas, aliás comuns a tantos iraquianos que todos os dias me passavam pela frente.
Por muito que me esforçasse não lograva lembrar onde e em que condições vira já aquela cara. 
Karim Saleh, assim se chamava, encontrava-se connosco ou deambulava entre nós a todo o momento, sendo mais chegado ao grupo dos franceses, língua que melhor dominava por certo, pois esse factor era muitas vezes determinante na nossa escolha do lugar à mesa, do grupo de amigos, da zona da recepção do wall do hotel, em cujos sofás perdíamos (?) tanto tempo, ou de quaisquer outras atitudes por nós tomadas.
George, o americano simpático, como lhe chamávamos, já me havia pedido camisolas, calças ou ténis 41 que servissem a Karim, que só possuía a roupa em cima do corpo e que tudo perdera no rolo compressor da guerra.
Por qualquer razão que não lembro fiquei por saber o que quereria George dizer, ou que fatalidade caíra sobre Karim privando-o dos seus bens. Muito ou pouco, naquela situação todos tínhamos roupas em excesso para as necessidades, pois ali não havia lugar para fazer valer as modas, nem tempo ou oportunidade para isso.
Muitas vezes nos deitávamos vestidos, já que era habitual o sono resumir-se a muito pouco tempo e termos que nos levantar de rompante, quer para assistir a qualquer combate ou fogo de artifício, quer para nos abrigarmos se o caso a isso aconselhasse.
As roupas, o seu corte e colorido, ajudavam muitas vezes a que, no meio daquela babel, nos identificássemos uns aos outros com maior facilidade, mesmo ao longe.
Jean Jaqques viera um dia junto de mim com idêntico pedido, de modo que lhe disparei logo as minhas interrogações. Sim, tinha motivos para recordar Karim, respondeu-me com uma certeza certeira, viramo-lo na embaixada do Iraque em Damasco, era tunisino, vivia em Paris, onde não por acaso tinha a família, mulher e duas crianças pequenas, um casalinho. Deixara um bom emprego, era licenciado em económicas, tinha uma boa vida e carreira promissora.
Karim, como bom muçulmano, respondera aos apelos à guerra santa e apresentara-se como voluntário para lutar pelo Iraque. Como ele, que me lembre, havia na embaixada centenas de outros muçulmanos. Quinze dias depois Karim Saleh perdera tudo e pedia, entre nós, quem lhe pudesse dar uma ou outra peça e um par de sapatos.
Nunca privei com Karim, Jean Jaqques sim, e dele me dizia ser um indivíduo com uma cultura acima da média, com quem gostava de falar, que não era nenhum fanático da religião e cujas ideias filosóficas gostava de partilhar. Resumindo, tratava-se de um bom homem, coerente e crente, racionalista quanto bastasse, que precisamente por isso parecia ali deslocado, lutando por uma causa que nós sabíamos não se coadunar nem com a sua honestidade nem com a sua coerência.
Todavia os preceitos da religião islâmica falaram mais alto, Karim foi incapaz de negar ajuda a um outro muçulmano que lha havia pedido.
Hoje mesmo o vi em animada conversa com o Jean Jaqques na sala de refeições, a eles me dirigi, curioso de observar as referências que sobre si o meu amigo tinha tecido. Não tive tempo para isso, antes mesmo que eu me aproximasse Karim foi chamado por dois homens que nunca ali vira, pediu desculpa a Jean Jaqques pelo facto, alegou não demorar, logo acabariam a conversa e sumiu-se pela porta da cozinha com os seus acompanhantes.
Jean Jaqques contou-me então por que razão Karim nada tinha de seu, era um dos sobreviventes de fortes combates que tinham tido lugar dias antes em Karbala e opuseram o exército americano ao iraquiano, onde tinha sido incorporado com mais duas centenas de “fedayn”, sem submissão a qualquer tipo de treino, e a quem tinha sido dada somente uma farda e uma arma.
 Karim Saleh tinha sido por graça de Alá um dos dez únicos sobreviventes da ultima batalha pelo controle daquela cidade santa, vira morrer ao seu lado quase todos os companheiros voluntários nessa luta que nem era deles, vira coisas que decerto não iria esquecer, por muito que se esforce nesse sentido, iria ficar marcado para toda a vida.
Irá interrogar-se e repreender-se infinitamente por esse esforço vão ?
Jean Jaqques e eu esperámos igualmente em vão que Karim voltasse.
Jean J. resolveu, após imenso tempo volvido, ir bater à porta por onde Karim tinha levado sumiço, nada… apenas a ameaça de não ter nada que meter ali o nariz, e o aviso de que com aqueles homens não se brincava.
Nada mais era preciso para percebermos o que se tinha passado, os serviços secretos iraquianos, por razões desconhecidas e com resultados imprevistos tinham tomado conta de Karim Saleh.
 Receámos que acontecesse o pior ao nosso amigo, metemos as mãos nos bolsos e abalámos cabisbaixos remoendo o raio da situação e como poderíamos interceder positivamente nela.
Estávamos no Iraque, estávamos em guerra, nada seria, ou deveria ser surpresa para nós, ainda assim...
Ainda assim Karim saiu vivo da desventura, encontrámo-lo no dia seguinte.
Algumas das nossas impressões estavam correctas, os serviços secretos avisaram-no de que não deveria falar com ninguém sobre o que lhe sucedera em Karbala, sobretudo com estrangeiros, e, como o sabiam um homem culto, poliglota e com uma vivência no mundo ocidental, fizeram-lhe sentir que uma derrota não é o fim de uma guerra, a sua devoção à causa islâmica poderia ainda vir a ser posta à prova, até lá, muito juízo e bico calado.
 Quero crer contudo que estas insinuações, mais que a batalha feroz a que sobreviveu em Karbala, terão aberto os olhos ao nosso amigo Karim, cujas preocupações, espelhadas no facto de mirar tudo em redor enquanto falava connosco, lhe proporcionaram a certeza de estar envolvido numa engrenagem cuja grandeza e contornos nunca terá imaginado, para a qual não estaria muito voltado e da qual não veria maneira de se libertar.
Que Deus o ajude.  
Oxalá...
Inch allah … 

in Baião, Humberto - A Guerra no Iraque - Nossos Futuro - Évora - 2005