quinta-feira, 17 de março de 2016

321 - UNHAS PARA TOCAR VIOLA ..........................



Olhar aquelas mãos tratadas, as unhas cuidadas de modo esmerado, compridas q.b., pintadas numa cor carregada e em mãos de dedos esguios, de pele branca, lisa, reflectindo os anos vividos e a viver, ou mais ou menos isso, suscita em mim, sempre, os pensamentos mais pecaminosos que imaginar nos seja permitido.

Natural ou inconscientemente fui-lhe complicando a satisfação dos meus pedidos, complicando nem será o termo, será mais correcto alegar sofisticação dos pedidos, o que a obrigava a manusear as mãos frente aos meus olhos durante muito mais tempo. Pegar na coisa, na coisa ou no coiso, no que quer que eu pedisse ou solicitasse, ou comprasse, e manuseá-la, ou manuseá-lo, buscar-lhe o jeito, medir-lhe mentalmente o tamanho, ajuizar das necessidades para o envolver, escolher um padrão condicente e cortar a folha correctamente, à medida, embrulhar com jeitinho, cuidadosamente, sem rugas no papel e, no final colocar-lhe um lacinho. Perfeito.

E, enquanto as mãos lhe buscam e apuram a perfeição, eu, deleitado, olho-as, a elas e, por cima dos óculos à dona dessas miraculosas mãos, reparo então como os cabelos lhe oscilam, ondulam como um pêndulo ao sabor dos movimentos das mãos, e os olhos, os olhos meu Deus, que quando pestanejam me fazem esquecer do que ali me levara e dou por mim pedindo o jornal na padaria, papo-secos na farmácia, aspirinas na florista ou pão na livraria. Distraído pego em tudo aquilo preparando-me para abalar sem pagar e logo um sorriso aberto, de dentes mais brancos que os de um teclado me recorda diplomática e docemente:

- Vai pagar em cheque ou em numerário senhor Baião, quer facturinha, com número de contribuinte ? Arrisca o carrinho ?

Então acordo da distracção brejeira a cuja cegueira sucumbira e fico preso do seu olhar pestanudo e linguajar profuso, o porta moedas aberto, a carteira aberta, esperando ouvi-la soletrar a importância da coisa, o valor da conta, desculpando-me da minha abstracção, rotineira já, e reparo então que susteve o riso, a risota, e ao suster-se o peito lhe arfa e o volume aumenta e me toca, corrijo, me sensibiliza, a mim, homem sensível, que nem deve enervar-se pois tenho um “stent” na aorta há coisa de meia dúzia de anos.

Tal como as conversas, ou como as cerejas que se comem umas atrás das outras, também os atributos, os pormenores ou as peculiaridades da beleza nos levam, nos conduzem, a que os observemos um após outro com particular atenção exigindo que nos detenhamos num ou noutro ponto ou aspecto mais do nosso agrado, reparo nesse instante como a calça de ganga se lhe ajusta à perna, se lhe cola e a molda como a uma alva e marmórea coluna dórica, contudo o cós, baixo, deixa antever-lhe ao baixar-se a pele morena e tisnada a qual, a exemplo dos eflúvios do café que me toldam as sensações mantendo-me sonhando acordado, faz com que ao invés de conferir trocos e compras me perca nessa maravilha que o feminino encerra há milhões de anos e nos faz permanecer e avançar seja ou não seja.

Esteja ou não esteja ante nós a mulher ideal, quer sonhada, quer imaginada, pois um pormenor nos basta, quantas vezes um simples pormenor nos basta para abastardar os sentidos, a razão e a emoção, relembro quantas vezes um mero sinalzinho na cara, no pezinho* ou uma peculiaridade em mais recatado e íntimo lugar, senão vejamos, desta foram suficientes as unhas, tratadas, cuidadas com esmero, nem curtas nem compridas mas jamais roídas, os dedos esguios, uma palma fina de pele branca onde deixo perder o olhar, divagar, como se por ali pudesse ser deduzida, admirada e amada a mulher ideal, e me subvertesse irracionalmente o desejo animal, carnal, tornado incapaz de raciocinar, de acordar, de guardar a compra feita e despedir-me, sair delicada e cortêsmente, ir à vida, tomar juízo e disfarçar o rubor que me tomara de assalto e me prostrara o cogito, a disposição, a emoção.


Saio sorridente, atravesso a rua, cumprimento o Pedro e brinco com ele porque a ele sim, à juventude sim, é lícito arvorar todas as armas e alimentar todos os sonhos e desejos que a um cinquentenário cuidariam de amesquinhar, como se a maturidade a sabedoria e a segurança e a plenitude da vida não fossem agora, e não quando a cegueira e a impetuosidade da inexperiência dão corpo e fruto, ditam as regras e o caminho que, pasme-se, tantas vezes é mal percorrido ou nem sequer é palmilhado e as vidas se perdem num labirinto de escuridão e ignorância, de preconceitos e juízos de valor à priori errados e aos quais só o olor de amores-perfeitos atenua a negritude do basalto das calçadas.

Agarro nas fotocópias e saio faustoso ante o sol da manhã que me alimenta a alma e o pensamento, nas calmas dirijo-me à clínica de podologia onde marcara vez. É tempo de tratar de mim com o mesmo cuidado, o mesmo esmero, talvez aplicar-lhes um verniz contra ou prevenindo a onicomicose, um verniz branco ou transparente, e as apare convenientemente, evitando que os cantos ou bicos se encravem no dedo e me tornem manco o andar, isto é me obriguem a coxear, para além do mau aspecto que provocam ao descalçar-me e invariavelmente o dedo do pé sair pelo buraco que elas mesmas cortaram e me poderá envergonhar, a mim que se há coisa que tenha pouca seja precisamente vergonha. A verdade é que não desejo arranhar as canelas ou rasgar as meias de licra a ninguém.

Estamos quase lá, boa Páscoa e tratai das unhas, das mãos e sobretudo dos pés. O bom amante é aquele que, sem a arranhar, em paz dorme com a Violante, adiantou o Pedro rindo com vontade, pois a realidade é que o Livro de Eclesiastes é desapiedado no que concerne às vaidades humanas, mas nada nos diz ou convida quanto à renúncia a essas vaidades ou quanto às tentações e fraquezas a que sucumbamos ou façamos frente, respondi-lhe eu. Mas essa, ou esta, é uma discussão teológica que eu mesmo alimento, a renúncia, a salvação, o desespero, o fascínio, sucumbir ou não sucumbir, discussão em que de modo afectuoso me coloco sempre a salvo de mim próprio, como se fosse um descarado, tumultuoso e ambivalente conivente dos pecados em que me enleio. 





segunda-feira, 7 de março de 2016

320 - BOAS INTENÇÕES...... INFERNO CHEIO ........


Em boa verdade teremos que admitir encerrar a preposição que titula este texto muita autenticidade e, exemplificando de modo claro quantos subterfúgios ou dissimulações, mais que boas intenções, podem acoitar-se ou albergar-se nela. Não a traria à colação não tivesse ela sido objecto de exaltação à mesa da nossa tertúlia de café, a qual desta vez terminou mal, com um desfecho que nos envergonhou a todos, pois nos sentimos vítimas dos réprobos olhares de quem não pôde deixar de dar-nos atenção, e especial atenção a pormenores que distraído nem acompanhei cabalmente mas que levaram a Mara a levantar-se de supetão e, estendendo a mão e o dedo do meio atirou a quem a quis ouvir:

- Ora tomem ! A mesma coisa é meter dois dedos no cu e cheirá-los ao mesmo tempo, isso sim é a mesma coisa  !

E abalou encalhando em tudo e todos, barafustando, não sem ter derrubado uma ou duas cadeiras na precipitação de nos voltar as costas e batido com as portas do café. A questão que tanto a azucrinou parece ter sido o móbil das coisas ou das pessoas, o que as faz moverem-se por uma causa, o altruísmo ou o interesse, defendendo ela que sem interesse na coisa, e interesseiros, o mundo jamais avançaria, enquanto outros de nós, mais condescendentes, conciliadores, contemporizadores ou tolerantes (e parvos, segundo ela) aceitavam que muito boa gente, muitas pessoas, agiriam de boa-fé, e não por interesse.

Mais tarde, em casa, e a propósito da tertúlia do café volto a deparar-me casualmente com a mesma questão, o que move as pessoas ? O altruísmo desinteressado, boa fé, boa vontade ou o interesse pessoal ou de grupo ? Desta vez suscitou-me verdadeira curiosidade o facto de os jornais e alguns folhetos na caixa do correio, numa simultaneidade premeditada e articulada com SMS e e-mails, me forçarem a dar conta de umas quaisquer eleições no meu partido, meu quer-se dizer-se, não pago quotas há bem mais de uma dúzia de anos, mas isso não foi obstáculo que tivesse obstado ao bombardeamento abusivo de que fui alvo, com intromissões forçadas na minha privacidade, talvez por me ter sido prometido despudoradamente um desconto de 90% no pagamento das cotas em falta (quotas ou cotas é a mesma coisa), ainda que eu seja mais do tipo ou tudo ou nada percebem ?  Melhor fazer rezet e recomeçar, como quando o PC pifa… mas enfim, “em frente que atrás vem gente”, como diria uma velha amiga minha que até era bastante nova…  era e é.

Altruísmo ou interesse material ou outro ? E não serão o altruísmo e a bondade movidos por interesse ? Tão pertinente questão, ou dilema, foi há muitos anos cientificamente provado por George Price, que tão bem o explicou através de uma fórmula matemática que nos deixou uma equação e cuja preposição (ou proposição, neste caso?) nunca falha e o tornou conhecido primeiro e famoso depois precisamente por isso, essa equação acabaria por levar ao teorema que tem o seu nome. Mas, alinhavava eu, foi o aparente desinteresse e o excesso de voluntarismo e a propaganda a essas eleições no meu partido que me deitaram para cima a levar-me à observação do muito interesse ou tanto desinteresse demonstrado ou camuflado nelas.

Nem sei bem para que eram as eleições, não aprofundei suficientemente o negócio, por mera falta de interesse fruto do desinteresse que o conhecimento antecipado destas habilidades provoca, ainda que desta vez os candidatos tivessem sido dois, dois dá um ar mais democrático à coisa e sempre disfarça o unanimismo vigente e doentio evitando resultados similares aos da Coreia do Norte. Uma boa jogada. Pena ficarmo-nos pelas percentagens, outra ilusão, que muito bem esconde quantas vezes só Deus sabe os vinte ou trinta que votaram… ou nem isso… mas enfim, sejam vinte sejam trinta perfazem sempre os 100% .
Êxito total portanto…

Depois de lidos com atenção os comunicados pelos quais sempre me desinteressei diria que andou ali o céu, o inferno e até o purgatório terá metido uma mãozinha. Uma alminha caída do céu, plena de virtudes e apoiada pela tutela, tutela que nunca aparece nem dá a cara mas toda a gente conhece e que tudo decide até antes de começar. Uma alminha do céu dizia eu, bateu-se contra uma outra alminha, ingénua e sentimental, destinada ingloriamente a morrer no inferno, mas a quem como habitualmente fora autorizado ou consentido satisfazer os interesses e as jogadas de quem pode tê-los e fazê-las.

Pois essa alminha ingénua a quem o inferno estava predestinado tentou, ainda que a inteligência não tivesse ajudado, tentou e melhor pregou mas, o gene recessivo estava lá e sem querer trouxe ao cimo a cadeia de ADN, perdão de interesses, sem tão pouco ter reparado que todo o discurso enfermava de vicio de forma imperdoável nos tempos que correm, o colocar à frente de tudo os interesses do partido, do aparelho, a nível local neste caso, aparecendo os interesses dos militantes dos alentejanos e dos portugueses no fim da lista de prioridades a satisfazer, inqualificável mas demonstrativo do amadorismo e ignorância de quem delineou a estratégia dessa lista na qual, a menos que fossemos militantes ferrenhos e crédulos jamais embarcaríamos. Enfim, cumpriu, cumpriu as ordens e os desígnios de alguém, satisfez os interesses de pessoa ou grupo indeterminado, não oficial e nunca oficializado mas que está lá, nos bastidores, sempre, e manobrando os cordelinhos dos bonecos que atira para a boca de cena, os bonecos uteis.

No outro extremo da oferta um digno representante da tutela e que se classificava a si mesmo como a personalidade mais bem preparada para ocupar o lugar, ao que eu sorri e pensei que, dado o lugar que as aldeias, vilas, cidades, o próprio Alentejo e Portugal ocupam no fim da lista de desenvolvimento da Europa essa seria precisamente a faceta a esconder, ao invés de a gabar, de que se gabará ? De um Alentejo em perda por todos os lados e domínios ? Um Alentejo que definha e morre em todos os aspectos há quarenta anos às mãos de incompetentes, inclusive das suas não deveria orgulhá-lo, contudo há que defender os interesses do grupo e cá estão uma vez mais os interesses disfarçados de altruísmo, porque não se trata já de um grupo ideológico mas de grupo de amigos ou se quiserem de um grupo de interesses ou de negócios e que tem feito o que se sabe ao longo de quarenta anos, tantas tem pintado que nem vê quanto a manta está curta e que se a puxa para tapar os ombros se lhe destapam os pés… 


George Price, que criticou construtivamente o célebre William Hamilton, e a quem todavia deve o apoio que teve e o elevou à fama, sabia do que falava. Também neste caso apareceu talvez vinda do purgatório uma outra alminha que, heresia das heresias, se atreveu e tentou demonstrar por A mais B, publicamente, nos jornais, o que estaria errado e o quanto haveria de injusto naquela justa, tentando que do mal o menos, mas foi tarde e sobretudo inútil o seu puro sacrilégio, palpita-me que dentro de algum tempo se irá sujeitar ao que quis evitar e afastar-se desiludido, é o que costuma surtir a coerência e a unanimidade se excessiva e cultivada, ou manipulada, é como a endogamia, onde os filhos começam a nascer cegos…

Estas coisas do desinteresse escondido pelo interesse disfarçado não são bem a mesma coisa e foi isso que perturbara tanto a amiga Mara, estas coisas não passam de gato escondido com rabo de fora é o que é, porém apresentam-se-nos tão subtis que nem George Price acreditou no teorema infalível que ele próprio criara. Morreu pobre tentando desmentir ser o puro interesse que nos torna ricos, e de agnóstico, ou ateu, passou a crente, talvez por crer (de acreditar) que só mesmo Deus consegue fazer com que o “homem”, nado e criado à Sua imagem, comungue de tanta perfídia, cultive supina ignorância e seja capaz de tanto oportunismo demonstrando tamanho desprezo à custa e pelos que diz defender, 
... os Seus desígnios são realmente insondáveis…

Quanto ao resto da querela ou justa nobre e cientifica entre os dois sábios citados, George R. Price e William D. Hamilton, deixo-vos todos os links possíveis no fim do texto para que possam inteirar-se, informar-se e cultivar-se, pois eu explicações somente com vez marcada e pagas à hora, e na hora que a vidinha ta difícil… 



















sexta-feira, 4 de março de 2016

319 - EI-LOS QUE PARTEM, NOVOS E VELHOS… por Maria Luísa Baião * .................................................


Voltei lá porque em menina me pegavam ao colo e me mostravam os aviões, e quando mais tarde descobri que não era o meu tio José Alves da Silva quem chamava as libelinhas dos ares até se fazerem à pista cerrei os punhos e bati-lhe com eles no peito, enraivecida por me roubarem o mistério de tal magia.

Vagamente, mas lembro-me ainda de um vestidinho estampado, de chita, com bonequinhos e florzinhas apanhado em balão pela cintura, e das pessoas sorrindo, carregadas de malas, sacos, sacolas e talêgos, não consigo é recordar-me do que diziam, nem sequer do que me diziam, do que me disseram, recordo-as apenas felizes, sorridentes, beijos e abraços, por vezes lágrimas que nunca soube distinguir entre as de tristeza e as de alegria, lembro bem essas despedidas, cumprimentos, partidas, chegadas, se lembro, até da gare sempre em festa.

Eu calcorreava tudo, cantarolando e saltitando, conhecia tudo e todos me conheciam, não eram muitos, talvez vinte contando as fardas ou uniformes, uns carimbavam passaportes, trás, trás, o seguinte se faz favor, the next passenger to please, le prochain passager s'il vous plaît, qui suit, s'il vous plaît et bon voyage, bon vol, who follows, bienvenue à Faro, Algarve, Portugal, please and good flight, welcome to Faro, Algarve, Portugal, merci, thank you, 

só não me era permitido passar para a pista, pisar a tal risca amarela, e ao colo de meu tio José Alves ouvia e aprendia as primeiras palavras estrangeiras enquanto ele vigiava, os passaportes, os passageiros, os suores frios, os tremores, as hesitações, uma mala mais cheia, ou mais pesada, um gesto mais esquivo, um gaguejar, lembro uma senhora inglesa que falava sem parar e afinal só escondia na mantilha um pequenino cachorrinho e que até a deixaram levá-lo pois nem era proibido, nem vacinas tinha, já de lá para cá teria sido impossível embarcá-lo disse o meu tio entredentes e com um sorriso nos lábios para o senhor Armando que recebia os tickets, les billets, e carimbava os passaportes, 

in the Heathrow Airport nothinh happens, quipped my uncle for the English lady, who travels to London, smiling at him, que, ultrapassado o medo se calou e não mais deu um pio. Entretanto fui saltar à corda e saltitar, brincar à cabra cega com o Armandinho na areogare vazia.

Lá longe ouviam-se ronronar os motores dos Lockheed Super Constellations, eram lindos, sempre que um se aproximava para landing o meu tio pegava em mim e corria para a pista, adoráva-mos vê-los descer, por vezes havia muito vento e então borregavam, e nós encantados esperando até que eles finalmente landing, as pinturas metálicas, neste caso nem pintura, outras vezes brilhantes, as riscas longas e lindas a todo o comprimento, o moinho das hélices rodando rodando antes de pararem de vez.

No ano seguinte comecei a distingui-los, os da Ibéria, os nossos, da TAP, os da Lufthansa, da Air France, da KLM, e nesse ano a minha tia fez-me umas calças como as que usavam algumas hospedeiras da BEA quando estavam de licença, e algumas turistas trazidas pela PANAM, eu envaidecida pois fui a primeira a usar calças em todo o Algarve e arredores, senti mesmo um orgulho em mim como só voltaria a sentir em meados desse ano ao fazer o exame da quarta classe. Ainda as lembro, azulinhas escuras com um bolso no peitilho onde a minha tia Felismina bordara um aviãozinho muito lindo e sorridente, os suspensórios eram debruados ou ponteados num verde contrastante que se via ao longe fazendo com que não coubesse em mim de contente.

Quando fiz o exame para técnica, lá pelos meus dezassete anos a tia Mina e o tio José Alves ofereceram-me uma viagem à escolha, Paris or London, e o tio Zé aplicava-se nas horas extras pois já lhe faltavam poucas para acumular as frequent flyer miles que lhe dariam direito aos nossos tickets, uma qualquer regalia lá do trabalho dele. 

Foi nesse ano que a Carol Burns da BOAC me ofereceu o seu chapeuzinho vermelho e fez com que eu mesma sonhasse ser hospedeira, e na verdade sonhei mesmo com isso, depois veio o 25 de Abril, o meu tio ficou sem emprego e foi obrigado a emigrar, a minha tia retirou-se para a casa na serra e eu fui estudar para Lisboa onde se viam já os jactos Caravelle soprando e planando sobre a cidade. Formei-me em fisioterapia, dediquei-me à luta, à revolução, a apoiar o nosso povo e ainda tenho o chapeuzinho vermelho da Carol que guardo numa caixinha com muito amor e carinho e junto aos tickets que me levariam a London or Paris quando somassem as tais mil frequent flyer miles estipuladas. 

Depois do último exame meti-me num táxi e ainda cheguei a tempo e horas ao aeroporto para me despedir do tio José Alves que migrava para os USA, a tia Mina chorava, a gare de departures era triste, ela estava triste, nunca mais presenciei arrivées or departures alegres, felizes, com gentes em festa, aos beijos e abraços, cantando e dançando, e claro que aviões não são libelinhas, perderam a graça, a magia, tornaram-se um monte de problemas, uma teimosia politica, um negócio nada rentável pago sobretudo por quem nem sequer voa, Joaninha avoa avoa…

Só já os vejo na Tv, ei-los que partem uma vez mais, desta estão tristes, muito tristes, carimbam os passaportes calados, chorosos, acabrunhados, revoltados, e tudo me parece mudo como num filme antigo, ninguém diz suivant, next passenger, prochain passager, merci, please, thank you, s'il vous plaît, 

sorriem apenas, sorrisos em silicone de cor fúxia como diz o meu marido, as máquinas piscando luzinhas, varando as malas e recolhendo imagens do seu interior, é outra magia, portais por onde a fila passa para outra dimensão, tire o cinto por favor, a carteira se tiver moedas deixe também o porta moedas, caminhe devagar, isqueiros não, líquidos não, só o indispensável, e sonhos, sonhos pode ter, mas só para levar, não para usar aqui, não para ter aqui, mas pode levar os que entender e desejar, 

espreitei, nenhum Zé Alves, tudo automático, tudo informático, nem cãezinhos, nem Armandos nem Armandinhos, nem pistas, nem riscas nem risquinhos, não consigo lobrigar nada já, nem há landings nem planes up à vista, nem borregagens, é tudo lá longe, perfeito, cronometrado, contrafeito, sem efeito em nós, e penso de mim para mim,

- Olha que, com efeito …

* Publicado por Maria Luísa Baião em 3 de Março de 2016 - in; https://www.facebook.com/notes/maria-luisa-baiao/ei-los-que-partem-novos-e-velhos-/1242760425738081




EI-LOS QUE PARTEM

Ei-los que partem
novos e velhos
buscando a sorte
noutras paragens
noutras aragens
entre outros povos
ei-los que partem
velhos e novos

Ei-los que partem
de olhos molhados
coração triste
e a saca às costas
esperança em riste
sonhos dourados
ei-los que partem
de olhos molhados

Virão um dia
ricos ou não
contando histórias
de lá de longe
onde o suor
se fez em pão
virão um dia
ou não…

Letra e música de Manuel Freire



quarta-feira, 2 de março de 2016

318 - A TINA, EU E POLANYI NO MERCADO..........



Polanyi de seu nome, penou as passinhas do Algarve e correu seca e meca durante os seus setenta e oito anos de vida. Simpatizante de ideias socialistas, revolucionárias no tempo em que viveu, esses tempos não foram rosas senhor, fora obrigado a fugir para Inglaterra por ser judeu, donde pulou para os EUA, aí professando até eu ter nascido, mais concretamente na Universidade de Columbia. De regresso à sua Hungria natal mal teve tempo de matar saudades, morreu comemorava eu os meus onze anos, sempre fiel a si mesmo e à sua visão do marxismo, que estudou a fundo, ou não se chamasse Karl, não Karl Marx, nem Karl Bond, Karl somente. Karl Polanyi.

Em, certa medida fui seu contemporâneo, pelo menos até aos meus onze anitos, com a diferença que todo um mundo nos separava, ele já então sabia tudo, e por isso se tornou perigoso. Eu, que não sabia nada e cuja ignorância e estupidez, inofensivas para todos que não eu, vivi, foi-me permitido viver, longe de, a seu exemplo, contestar as teorias económicas que faziam furor, moda, e se tornavam lei num mundo que a América tinha vencido, subjugado, um mundo em que a vitória colocou nas suas mãos todos os despojos e todos os direitos, adquiridos e por adquirir, incluindo os do passado e do porvir.

Com a sua parca participação na IGG e as vantagens daí arrebanhadas os EUA acordaram de um torpor secular e bocejavam ainda quando, contra sua aparente vontade, se viram bafejados com o envolvimento na IIGG, que haveria de provocar a explosão das suas indústrias (não das suas fábricas) e do sistema e centro financeiro de Wall Street que se tornou de dimensão mundial.

Ao contrário do “orgulhosamente sós” do nosso salazarento Salazar, a América foi compelida a abraçar o mundo, para além do dispositivo militar que entretanto entretecera em redor do globo, herdou de mão beijada as possessões do velho império vitoriano da GB e nunca mais teve mãos a medir. Talvez um dia se faça ou se publique a história do minuto em que, para pagar à América as suas dívidas de guerra, a GB lhe entregou tudo de mão beijada e numa salva de prata, de posses a possessões e entrepostos por todo o mundo, a uma dívida colossal que acabou de pagar somente há meia dúzia de anos, e de milhares ou milhões de patentes e descobertas ou avanços no campo cientifico, que chutaram a América para os píncaros e remeteram a GB para o fim da fila. Assistindo a tudo isto Wernher von Braun sorria e coçava com uma varinha, que metia entre o gesso, o braço que tinha partido.

Como se não bastasse a apropriação material do globo, a nível teórico e na esteira de David Ricardo, Adam Smith, Quesnay, Keynes, Milton Friedman e Hayek, as teorias económicas foram perfilhadas por este mundo cuja imagem os EUA delineavam em bloco, contra Karl Marx e o seu pensamento teórico dialéctico e, naturalmente contra o bloco oposto, o soviético, onde uma tentativa profunda do marxismo se tentava (tentou) pôr em prática.

Neste contraditório caldo de cultura entre dois blocos nada mais tinha permissão ou ordem para sobreviver, tendo sido devido a esse abstruso planeta que o pensamento económico teórico de Polanyi não teve lugar, de um lado apertado pela ditadura conceptual de mercado que se instalava, do outro empurrado derivado do facto de nele não existirem mercados mas apenas factores de produção de um só dono, estatizados. Num mundo criado assim não admira que, como diz e muito bem Jean-Pierre Lebrun: "O homem contemporâneo não saiba o que é desejar, saiba só o que é consumir".

O pensamento de Polanyi, o primeiro que gritou bem alto por liberdade, é muito fácil de resumir, defende ele que milhares de anos de história humana haviam criado a necessidade de trocas, necessidade de uma economia incipiente e gerida por reis e senhores, submetida a normas e regras que essas dinastias, realezas ou senhores definiam, regras claras que até o conjunto de anciãos de um qualquer clã ou tribo estabeleceria para uma vivência harmoniosa, sendo a partir delas que a economia se processava, não ousando expandir o seu caudal para fora dessas margens ou desse leito. O “homem, ou os homens” ordenavam e comandavam, o que do ponto de vista antropológico, sociológico, psicológico, da história económica, da teoria económica e da epistemologia não pode ser contraditado, a lei dos homens comandava as trocas, o comércio, a economia, o mercado ou os mercados. Não existia para Polanyi uma esfera económica separada da sociedade, e eram ainda motivos humanos, mais que humanos, a ditar a lei à qual os mercados deviam obediência, a que tinham que sujeitar-se.

Hoje sabemos como é, ou como são as coisas, e sim, é verdade que existe interdependência e competição entre produtores, entre fornecedores, entre empresas, entre países, nos preços, nas economias, mas o seu reconhecimento não obriga ao jugo do jogo dos seus resultados, das suas interdependências, das suas competições e que passaram a dominar o “homem”, a dar-lhe ordens, a submetê-lo, é a célebre T.I.N.A. de que tanto temos ouvido falar nos últimos tempos. TINA, acrónimo do inglês para There Is No Alternative (em português, 'Não há alternativa'

Claro que há e sempre houve e haverá alternativas, enquanto país Portugal nem seria um bom exemplo para este texto ou este caso, falhámos o mais básico bom senso governativo, demos o flanco, as costas e o cu, e queixamo-nos que nos caíram em cima. Não soubemos criar nem manter nem sequer defender os centros de decisão nacionais e agora tudo desaba, tudo se transforma em centros de destruição nacional, somos tacanhos e desajeitados, incompetentes e irresponsáveis, amaldiçoamos tudo em que tocamos ou em que nos metemos, é a TAP, é o NOVO BANCO, são os milhares de lesados dos vários bancos e os dez milhões de lesados dos desgovernos que há quarenta anos nos lixam devido a uma ignorância extrema, a uma falta de cultura confrangedora e abissal e que, como uma vez mais se confirma no caso do despedimento de mais 1.000, mil de uma assentada, não sabem resolver um problema, solucionar uma equação, fazer uma projecção, alinhavar uma previsão, tentando enfiar no momento e com os pés uma linha numa agulha e, cereja no topo, vem o presidente do sindicato dos trabalhadores do fisco exigir que se acabe com o sigilo fiscal, talvez temendo pelos seus ordenados ao fim do mês, pois o levantamento desse sigilo devia ter sido exigido há mais de trinta anos, e o que o país precisa neste momento não é de mais mecanismos sanguessuga, mas sim que se trabalhe, que se invista, se produza, se mobilize tudo e todos à volta de verdades tão comezinhas quanto a necessidade de trabalhar, trabalharmos todos, mas nisso ninguém pega, ninguém apregoa ou exige, não dá votos...

Passamos o tempo a criticar os mercados que sim, que tomaram uma dimensão supra humana que já Polanyi denunciava e criticava, mas cometemos todos os erros e mais alguns dos que os mercados agradecem e passamos a vida a discutir o acessório, enquanto o essencial vai ficando para as calendas gregas. Criticamos a sociedade de mercado, a economia de mercado, esquecendo que para lhe sobreviver ou poder ditar-lhe leis não podemos sucumbir, precisamos de força, de argumentos, de trunfos na manga, de independência, de ser vencedores, alguns povos são-no, conseguem-no, por que não nós ? Irracionalmente, nós portugueses preferimos deixarmo-nos “comer” pelos famigerados mercados, pelas desumanas leis dos mercados, a pior delas o medo da fome ou a esperança do lucro, e depois queixamo-nos de ser uns deserdados da sorte…

Não defendo que nos deixemos conduzir exclusivamente por motivos materialistas, mas que não os ignoremos, eles existem, e esfolam, e matam, é essa a lógica absurda dos mercados que, por causa da dívida nos sugam até à exaustão o que conduz à incapacidade de pagarmos a dita dívida.

A racionalidade dos “mercados” está inquinada, terá que ser o “homem”, a sociedade, a mandar neles e não o contrário, é essa a posição que Polanyi defendeu cedo e a horas, e com unhas e dentes já lá vão setenta anos e pela qual o calaram... Os mercados não têm olhos nem alma, o homem sim, e a voz de Polanyi era tanto mais inconveniente quanto mais os mercados se implantavam a nível mundial. Essencialmente após a IIGG a teoria económica ou as várias teorias, instalaram-se de armas e bagagens aproveitando o vazio critico deixado pelos pensadores existentes, ou sobreviventes, e estabeleceu-se como que uma conspiração hipercrítica dos que reivindicavam a moral ou o primado da acção politica, cujas forças definharam permitindo o avanço cego do efeito cilindrante da concepção conceptual (desculpai-me a redundância) das teorias e leis económicas dos mercados, perante as quais a justiça, a liberdade e a lei claudicam cada vez mais tornando-se insipidas.

Ora das sociedades antigas faziam parte a justiça, a liberdade e a lei, que agora perdem força ante o avanço inexorável das leis dos “mercados”, inumanas, impessoais e cegas, pondo em causa desde tempos imemoráveis o fim último dos estados, o qual deve ser a defesa da rectidão e da justiça, da liberdade, e nunca a protecção dos anónimos ou identificados interesses económicos que se escondem por trás da aparência dinâmica ou moderna mas depredadora dos mercados cuja mão, visível ou invisível, vai muito além da manutenção de uma economia saudável.  

Tenho para mim que o homem é um animal racional do mais irracional que há, e nesse particular estou mais próximo de Thomas Hobbes que de Carl Menger, Portugal tem que encontrar alternativa à T.I.N.A. e tem que se tornar um estado tal qual Hobbes o preconizava em 1651 no seu célebre “Leviatã”; “os estados precisam de um poder absoluto que evite que os humanos se destrocem uns aos outros como uma alcateia de lobos famintos”. Salazar, e talvez Marcelo, o Caetano, sabiam isto, os de agora não sabem nada de nada… Temos que gritar liberdade como Polanyi, mas para isso temos também que nos desfazer do peso do passado, das dívidas, dos preconceitos, da ignorância e da estupidez… 

(e tu que achas Pacheco ??? :D :D :D kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk)

Pintura de Alon Gabbay




domingo, 21 de fevereiro de 2016

317 - O MAOISTA IGNORANTE…….....….…………


Devo confessar-vos ter sido maoista durante os meus anos de PREC, mas o grave é que fui maoista muito antes de saber o que era o maoismo. Quer dizer, fui enquanto a Magda por lá andou, depois dela fugir para a Albânia com o Lucas, que pintava os cartazes e as faixas para as manifs da UDP, com o desgosto deixei de aparecer por lá. Quando terminei a licenciatura em História não estava nem mais nem melhor informado a respeito do maoismo, e durante muitos anos procurei colmatar essa falha, esse óbice, mas a literatura disponível ou era inexistente ou deixava muitíssimo a desejar. O fervor ou ardor ideológico foi-me arrefecendo com o tempo, e durante muito dele, tempo, votei indiferentemente ou usei o designado voto útil, o país ia andando, não dava cuidados de maior a ninguém, e “tudo parecia ir bem no reino da Dinamarca”.

Contudo, todavia mas porém eu sabia haver um livrinho muito bom, um Best Seller mundial saído em França e traduzido em Portugal em 1975, “Quando a China Despertar” mas cuja edição eu deixara esgotar, pelo que o máximo que ia conseguindo saber sobre o camarada Mao e a “Grande Marcha”, ou o “Grande Salto em Frente” e até em relação ao movimento do “Desabrochar de Cem Flores” ou à “Revolução Cultural” provinha de panfletos e brochuras laudatórias sem o mínimo de credibilidade. Não havia internet e as publicações estrangeiras raramente se viam à venda em Évora, além disso já andava enrolado com outra esquerdista, por sinal engraçadinha, a Luisinha (com quem casei porque quis seus malandrecos), e naturalmente todo o tempo era para namorar, e era pouco. Finalmente em 1991 uma obra espectacular correu mundo e foi igualmente editada entre nós, tratava-se de uma autobiografia de Jung Chang, intitulada “Cisnes Selvagens” e que devorei como um sedento, ou antes bebi como um faminto.

A obra da chinesinha Jung Chang, que vendeu em todo o mundo mais de dez milhões de cópias só no primeiro ano, e cujos olhos de amêndoa eram iguais aos da Luisinha, conta a história de três gerações duma família chinesa, a sua, e retrata a vida da China do século 20 através da vivência de três gerações de mulheres que passaram por situações de luxo e de extrema pobreza, de alegrias e tristezas profundas, de dor e de luta, abarcando precisamente os períodos cuja carência vos confessara, em especial o último, o da “Revolução Cultural”, e foi para mim uma alegria e um sobressalto, tendo sido devorada num ápice.


Mas porque a sede ou era velha ou era muita não me satisfiz. A obra, que abarca os tais períodos importantíssimos da história da China e da vida de Mao Tsé Tung, ambas se confundem, a história da China e a vida de Mao, estava extraordinariamente bem escrita, bem fundamentada e melhor documentada mas não respondia ao essencial. Tal obra, Os Cisnes Selvagens, relatam, descrevem minuciosa e exemplarmente a história da China do séc. XX, e com especial cuidado a historiografia do período da “Revolução Cultural”, agora designado na história da China como o período ou “Tempo da Libertação”, mas fica-se práticamente pela descrição clarissíma da sua galeria de horrores.

A descrição desse período é absurdamente impressionante, e não fora eu entretanto já estar familiarizado com o “preço” da Grande Marcha, em que só chegaram ao fim um em cada sete dos homens que a tinham iniciado, embora ao longo dos doze mil quilómetros percorridos, a pé, a ela tenham afluído muitas mais gentes. Para termo de comparação dir-vos-ei que a Muralha da China tem pouco mais de 20 mil quilómetros, e a distância de Lisboa a Paris ronda os 2 mil. Foi considerada uma derrota, que saiu cara a Mao a Grande Marcha, mas contribuiu substancialmente para a vitória do Exército Vermelho que, como sabemos ganhou a guerra que permitiu fundar a República Popular da China. Dizia eu que se não estivesse familiarizado com os custos sofridos pelos chineses teria ficado em dúvida. O chamado Grande Salto em Frente saldara-se por milhões de mortos, à fome (30 milhões, os chineses eram por essa época 750 milhões e actualmente quase o dobro), o Desabrochar de Cem Flores tivera o resultado contrário ao pretendido, e a Revolução Cultural um sucesso que se saldara aos nossos olhos de ocidentais por um saldo medonho, em dimensão e profundidade cuja violência e absurdo dificilmente compreenderemos. Contudo na sua obra, Jung Chang limita-se à descrição / contestação / condenação.

Essa obra, que não deixo de recomendar-vos, por muito completa que seja não explica o móbil, a origem, o porquê, a necessidade dessa revolução cultural (cultural em termos antropológicos e sociológicos e não literatos ou académicos) violentamente despropositada, disparatada e ignominiosa, pelo que ainda que muito melhor informado a minha curiosidade, já não a adesão ou o abraço ideológico, continuaram por muito tempo, assim como durante bastante tempo eu mantive a confusão, nem tanto em relação ao Marxismo, pois o que eu não compreendia eram as diferenças que opunham o Maoismo ao Leninismo, e em especial ao Estalinismo, pois elas nunca me surgiam claras.

Alain Peyrefitte, o autor de “Quando a China Despertar” atribui a explicação clarificadora a uma confidência que lhe fora feita por Chou En-lai em conversa informal durante um jantar diplomático e segundo o qual o marxismo / comunismo soviético teria um caracter estático, enquanto Mao Tsé Tung procurava imprimir ao comunismo chinês uma dialéctica dinâmica imparável e renovadora. Isto terá sido em 1972 num jantar oferecido pela embaixada francesa em Pequim a 14 de Julho, sabemos hoje de que lado estava a razão, pois a queda do muro de Berlin e o inquestionável êxito do comunismo chinês, um pais dois sistemas, não deixam lugar a dúvidas (Página 95 da obra citada no início do §), sobretudo agora que estamos melhor informados graças à Prémio Nobel bielorrussa Svetlana Alexievich, com “O Fim do Homem Soviético - Um Tempo de Desencanto”, cuja edição portuguesa saiu na Porto Editora, tendo sido considerado o melhor livro do ano pela revista literária francesa Lire.


Naturalmente as minhas leituras acerca das ideologias que animaram e animam a nossa história continuaram ao longo de anos, com falhas que sempre procurei colmatar pois não queria continuar o maoista ignorante que fora em jovem, ou melhor o ignorante que fora, mas evitando atingir o ponto crítico em que, não lembro já a quem a citação pertence, “ comunista é aquele que lê Marx, anticomunista aquele que o compreende”, entendo que se não nos podemos deixar levar por paixões, então ainda menos pela ignorância. Ao longo destes quarenta anos procurei livros que me formassem e informassem, a minha saga, a minha demanda nunca parou, sempre com a ajuda da Luisinha, de quem os meus saudosos pais disseram um dia:

- A Luisinha fez do meu Berto um Homem…

sempre em busca das respostas cuja ignorância me incomodava, em busca da verdade que se me tornou um vício mas que também é um direito que nos assiste, este sim justamente adquirido, o direito à verdade e que há quarenta anos todos pisam ou todos escondem, com as nefastas consequências que daí advieram e todos conhecemos e estamos pagando com um palmo de língua fora.

Mas voltando ao tal livrinho muito bom, o tal Best Seller mundial saído em França e traduzido em Portugal em 1975, “Quando a China Despertar” que eu perseguira durante quarenta anos, devo admitir tê-lo deixado fugir nos anos do PREC por inexperiência minha, excesso de confiança pois pensei que não se acabariam, desleixo, por ter muita literatura para ler e por ter pensado que o teria quando eu quisesse e me apetecesse, e luxúria, mas isso é outra história, e com final feliz. Claro que me enganei redondamente e nunca mais consegui encontrá-lo, nunca foi reeditado. Finalmente há umas seis ou sete semanas encontrei-o num alfarrabista de Torres Novas ! Sorri de orelha a orelha e já não o larguei ! Foi meu logo ali por 36 euros, uma pechincha ! O tipo nem sabia a raridade nem o valor da obra ! Foi e é um best seller ! Já me deitei a ele ! Mas, perguntar-se-ão vocês, porque raio vem este caramelo com esta conversa chata e de merda para aqui ? Uma das respostas que obtive levaram-me a uma comparação da situação chinesa com a portuguesa, e vai daí quero deixar aqui o alerta para o perigo que corremos ao não dar saída ou solução a problemas que arrastamos há quarenta anos sem coragem para os resolver.


 Mao Tsé Tung fê-lo de uma forma peculiar, e sob a capa de uma revolução cultural revolucionou hábitos ancestrais e burocracias imperiais que a revolução comunista não lograra vencer ou mudar, tudo quanto eram interesses instalados, lóbis de pressão, mentalidades arcaicas, burocratas, reaccionários, revisionistas, comodistas, oposicionistas, inclusive dentro do próprio partido, tudo o que fosse estático e ameaçasse o avanço da revolução comunista chinesa, e havia bastantes entraves colocados até por gente do aparelho e dentro do próprio partido, tudo que constituísse obstáculo ou resistência à mudança, tudo isso foi varrido pelo tsunami da “Grande Revolução Cultural Proletária” cujos guardas,de braçadeira vermelha, os guardas vermelhos, contaram sempre com o apoio explícito do camarada Mao, que anteriormente tudo tentara para mudar a China mas que esbarrara sempre com a imobilidade interesseira existente em quaisquer sociedades, em especial numa milenar, como a chinesa… Não por acaso esse conturbado período é agora designado na história da China como o período ou “Tempo da Libertação”.

Pois ao meditar sobre as forças de bloqueio que travam este país já me tenho lembrado se estaremos à espera que uma guerra civil, de uma fome generalizada ou duma revolução cultural à moda chinesa, pois qualquer delas, não deixando de ser uma calamidade, seria certamente libertadora. Já tenho imaginado o que seria se pusessem uma braçadeira vermelha a cada jovem que emigrou e a cada desempregado e os mandassem pedir contas a quem nos colocou nesta situação de merda em que nos atolaram, e já me ri ao imaginar os nossos responsáveis negando ante esses jovens “guardas da revolução” a sua responsabilidade na coisa, ou jurando-lhes não se lembrarem de nada tal qual fazem nas Comissões Parlamentares de Inquérito. Já estou a ver os jovens guardas da revolução a encaminhá-los para campos de reeducação forçando-os a severas autocríticas ou obrigando-os a viver com 500 euros por mês. É que neste país onde todos penam ninguém tem culpa de nada e se algo acontece certamente já estará há muito referenciado, porém nunca acautelado nem prevenido. Talvez então as coisas mudassem de vez e radicalmente e não como habitualmente, em que tudo muda para ficar tudo na mesma.

Pensai nisso..........................