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segunda-feira, 7 de março de 2016

320 - BOAS INTENÇÕES...... INFERNO CHEIO ........


Em boa verdade teremos que admitir encerrar a preposição que titula este texto muita autenticidade e, exemplificando de modo claro quantos subterfúgios ou dissimulações, mais que boas intenções, podem acoitar-se ou albergar-se nela. Não a traria à colação não tivesse ela sido objecto de exaltação à mesa da nossa tertúlia de café, a qual desta vez terminou mal, com um desfecho que nos envergonhou a todos, pois nos sentimos vítimas dos réprobos olhares de quem não pôde deixar de dar-nos atenção, e especial atenção a pormenores que distraído nem acompanhei cabalmente mas que levaram a Mara a levantar-se de supetão e, estendendo a mão e o dedo do meio atirou a quem a quis ouvir:

- Ora tomem ! A mesma coisa é meter dois dedos no cu e cheirá-los ao mesmo tempo, isso sim é a mesma coisa  !

E abalou encalhando em tudo e todos, barafustando, não sem ter derrubado uma ou duas cadeiras na precipitação de nos voltar as costas e batido com as portas do café. A questão que tanto a azucrinou parece ter sido o móbil das coisas ou das pessoas, o que as faz moverem-se por uma causa, o altruísmo ou o interesse, defendendo ela que sem interesse na coisa, e interesseiros, o mundo jamais avançaria, enquanto outros de nós, mais condescendentes, conciliadores, contemporizadores ou tolerantes (e parvos, segundo ela) aceitavam que muito boa gente, muitas pessoas, agiriam de boa-fé, e não por interesse.

Mais tarde, em casa, e a propósito da tertúlia do café volto a deparar-me casualmente com a mesma questão, o que move as pessoas ? O altruísmo desinteressado, boa fé, boa vontade ou o interesse pessoal ou de grupo ? Desta vez suscitou-me verdadeira curiosidade o facto de os jornais e alguns folhetos na caixa do correio, numa simultaneidade premeditada e articulada com SMS e e-mails, me forçarem a dar conta de umas quaisquer eleições no meu partido, meu quer-se dizer-se, não pago quotas há bem mais de uma dúzia de anos, mas isso não foi obstáculo que tivesse obstado ao bombardeamento abusivo de que fui alvo, com intromissões forçadas na minha privacidade, talvez por me ter sido prometido despudoradamente um desconto de 90% no pagamento das cotas em falta (quotas ou cotas é a mesma coisa), ainda que eu seja mais do tipo ou tudo ou nada percebem ?  Melhor fazer rezet e recomeçar, como quando o PC pifa… mas enfim, “em frente que atrás vem gente”, como diria uma velha amiga minha que até era bastante nova…  era e é.

Altruísmo ou interesse material ou outro ? E não serão o altruísmo e a bondade movidos por interesse ? Tão pertinente questão, ou dilema, foi há muitos anos cientificamente provado por George Price, que tão bem o explicou através de uma fórmula matemática que nos deixou uma equação e cuja preposição (ou proposição, neste caso?) nunca falha e o tornou conhecido primeiro e famoso depois precisamente por isso, essa equação acabaria por levar ao teorema que tem o seu nome. Mas, alinhavava eu, foi o aparente desinteresse e o excesso de voluntarismo e a propaganda a essas eleições no meu partido que me deitaram para cima a levar-me à observação do muito interesse ou tanto desinteresse demonstrado ou camuflado nelas.

Nem sei bem para que eram as eleições, não aprofundei suficientemente o negócio, por mera falta de interesse fruto do desinteresse que o conhecimento antecipado destas habilidades provoca, ainda que desta vez os candidatos tivessem sido dois, dois dá um ar mais democrático à coisa e sempre disfarça o unanimismo vigente e doentio evitando resultados similares aos da Coreia do Norte. Uma boa jogada. Pena ficarmo-nos pelas percentagens, outra ilusão, que muito bem esconde quantas vezes só Deus sabe os vinte ou trinta que votaram… ou nem isso… mas enfim, sejam vinte sejam trinta perfazem sempre os 100% .
Êxito total portanto…

Depois de lidos com atenção os comunicados pelos quais sempre me desinteressei diria que andou ali o céu, o inferno e até o purgatório terá metido uma mãozinha. Uma alminha caída do céu, plena de virtudes e apoiada pela tutela, tutela que nunca aparece nem dá a cara mas toda a gente conhece e que tudo decide até antes de começar. Uma alminha do céu dizia eu, bateu-se contra uma outra alminha, ingénua e sentimental, destinada ingloriamente a morrer no inferno, mas a quem como habitualmente fora autorizado ou consentido satisfazer os interesses e as jogadas de quem pode tê-los e fazê-las.

Pois essa alminha ingénua a quem o inferno estava predestinado tentou, ainda que a inteligência não tivesse ajudado, tentou e melhor pregou mas, o gene recessivo estava lá e sem querer trouxe ao cimo a cadeia de ADN, perdão de interesses, sem tão pouco ter reparado que todo o discurso enfermava de vicio de forma imperdoável nos tempos que correm, o colocar à frente de tudo os interesses do partido, do aparelho, a nível local neste caso, aparecendo os interesses dos militantes dos alentejanos e dos portugueses no fim da lista de prioridades a satisfazer, inqualificável mas demonstrativo do amadorismo e ignorância de quem delineou a estratégia dessa lista na qual, a menos que fossemos militantes ferrenhos e crédulos jamais embarcaríamos. Enfim, cumpriu, cumpriu as ordens e os desígnios de alguém, satisfez os interesses de pessoa ou grupo indeterminado, não oficial e nunca oficializado mas que está lá, nos bastidores, sempre, e manobrando os cordelinhos dos bonecos que atira para a boca de cena, os bonecos uteis.

No outro extremo da oferta um digno representante da tutela e que se classificava a si mesmo como a personalidade mais bem preparada para ocupar o lugar, ao que eu sorri e pensei que, dado o lugar que as aldeias, vilas, cidades, o próprio Alentejo e Portugal ocupam no fim da lista de desenvolvimento da Europa essa seria precisamente a faceta a esconder, ao invés de a gabar, de que se gabará ? De um Alentejo em perda por todos os lados e domínios ? Um Alentejo que definha e morre em todos os aspectos há quarenta anos às mãos de incompetentes, inclusive das suas não deveria orgulhá-lo, contudo há que defender os interesses do grupo e cá estão uma vez mais os interesses disfarçados de altruísmo, porque não se trata já de um grupo ideológico mas de grupo de amigos ou se quiserem de um grupo de interesses ou de negócios e que tem feito o que se sabe ao longo de quarenta anos, tantas tem pintado que nem vê quanto a manta está curta e que se a puxa para tapar os ombros se lhe destapam os pés… 


George Price, que criticou construtivamente o célebre William Hamilton, e a quem todavia deve o apoio que teve e o elevou à fama, sabia do que falava. Também neste caso apareceu talvez vinda do purgatório uma outra alminha que, heresia das heresias, se atreveu e tentou demonstrar por A mais B, publicamente, nos jornais, o que estaria errado e o quanto haveria de injusto naquela justa, tentando que do mal o menos, mas foi tarde e sobretudo inútil o seu puro sacrilégio, palpita-me que dentro de algum tempo se irá sujeitar ao que quis evitar e afastar-se desiludido, é o que costuma surtir a coerência e a unanimidade se excessiva e cultivada, ou manipulada, é como a endogamia, onde os filhos começam a nascer cegos…

Estas coisas do desinteresse escondido pelo interesse disfarçado não são bem a mesma coisa e foi isso que perturbara tanto a amiga Mara, estas coisas não passam de gato escondido com rabo de fora é o que é, porém apresentam-se-nos tão subtis que nem George Price acreditou no teorema infalível que ele próprio criara. Morreu pobre tentando desmentir ser o puro interesse que nos torna ricos, e de agnóstico, ou ateu, passou a crente, talvez por crer (de acreditar) que só mesmo Deus consegue fazer com que o “homem”, nado e criado à Sua imagem, comungue de tanta perfídia, cultive supina ignorância e seja capaz de tanto oportunismo demonstrando tamanho desprezo à custa e pelos que diz defender, 
... os Seus desígnios são realmente insondáveis…

Quanto ao resto da querela ou justa nobre e cientifica entre os dois sábios citados, George R. Price e William D. Hamilton, deixo-vos todos os links possíveis no fim do texto para que possam inteirar-se, informar-se e cultivar-se, pois eu explicações somente com vez marcada e pagas à hora, e na hora que a vidinha ta difícil… 



















quarta-feira, 29 de julho de 2015

260 - ALL THE ALLENTEJO .......................................

               
              No momento em que, sem hesitações lhe espetaram o facalhão na garganta eu arrepiei-me, e, ainda que a faca não tenha sido enfiada até ao cabo o sangue jorrava em golfadas, e arrepiei-me de novo ao sentir rodarem a faca, como se fosse em mim que a forçavam, arrepiei-me uma terceira vez quando a faca, digo o facalhão, foi retirado e atrás dele mais sangue jorrou ainda, esguichava-lhe e escorria-lhe pelo pescoço quando o meu pai lhe procurou o buraco da primeira facada com os dedos aí introduzindo outro facalhão, de lâmina brilhante e muito mais larga que a primeira, havia que alargar o golpe e sangrá-la depressa.

A tudo isto eu assistia encostado à parede, melhor, colado à parede, enquanto ela gemia, já só gemia, estrebuchara imenso, mas dois homens fortes tinham-lhe colocado os joelhos na barriga para se firmarem e agarraram-lhe com denodo os membros bem atados. O pior tinha sido a atrapalhação do meu pai, mangas arregaçadas, o suor ensopando-lhe a testa, fácies tenso deixando antever os dentes, pequeninos, as mãos pingando sangue, escorrendo sangue, gritando aos homens, ordens curtas, precisas, um último grunhido, minha mãe aparando o sangue num alguidar de barro, a avó Inácia doseando o sal para que não coagulasse, coalhasse ou a rechina não sairia boa, a tia Aia picando a salsa e os alhos para a parte destinada a coalhar e a ser cortada em cubos miudinhos e transformada num petisco.

Homens acudiram à forquilha e aos tojos que, ardendo musgariam a marrã a fim de, com raspadeiras improvisadas lhe retirarem as cerdas, o lume foi chegado às patas e os cascos arrancados fumegantes, eu e outros miúdos lutámos por eles para lhes roermos o sabugo, a marrã inteiriçada, depois lavada até ficar luzidia, dependurada em dois postes atados em X e aberta, os intestinos caindo no chão, as miudezas aventadas para outro alguidar e
repentinamente perdem-se-me as recordações, por que raio não sou capaz de lembrar quem eram os outros gaiatos se era com eles que eu brincava, e tanto que eu brinquei, sumiram-se-me as lembranças, só as recupero em casa, a salgadeira aberta, mantas de toucinho, a perna para presunto pintada com pimentão e colorau, punhados de sal, cheiro a pimentão, muito pimentão na carne, e lá vou eu com a tia Aia p’ra casa da avó Inácia pois em dias assim só atrapalharia e nem vagar havia, nem vagar nem ninguém para tomar conta de mim.

Um dia seria destemido como o meu pai, destemido e convencido, o melhor e mais rápido a matar e abrir porcos no Alentejo, onde por enquanto somente brincava mas a cuja magia me estava habituando, descobrindo e deslumbrando, até com os mimos que me prodigalizavam todos quantos me rodeavam, especialmente a avó Inácia e a tia Aia.

Tantas vezes me disseram ser o Alentejo impar que acabei acreditando, os pais, os avós, tias e tios, até a avó Inácia, com quem em miúdo passava longos períodos de férias na aldeia. A tia Aia também me fizera acreditar em tal, e seria injusto esquecê-la.

Sou extrovertido, e confiante, diria que demasiado confiante (até há quem diga que sou um convencido), talvez por ter nascido aqui, nesta terra de xisto e fragas lascadas, de espaços abertos e campos extraordinariamente iluminados, amplos, resplandecentes, melhor dizer reverberantes se quiser ser fiel à memória da tia Aia, ela chamava-lhe a marca da terra.

A tia Aia colocava marcas em tudo, desconhecia a gramática, nunca ouvira falar de adjectivos, tinha contudo um modo muito próprio de catalogar o mundo, eu, por exemplo, nunca fui só Berto, eu era o Bertinho querido umas vezes e o Bertinho lindo outras, tal como as flores das giestas no campo não eram somente bonitas, eram celestialmente bonitas pois Deus decerto as quisera diferentes de todas as outras, e para melhor.

Já provaram vocês o mel alentejano de abelhas que sobretudo se alimentem destas flores de giesta e esteva ? E já repararam como em relação aos demais o gosto é desigual, para melhor ? Repararam como nem coalha no inverno ? O único que não coalha ? A tia Aia tinha razão, Deus colocou uma marca no Alentejo, aliás várias marcas, até o perfume dessa flor não se limitava a ser agradável, ele era, na tabela da tia Aia, indelevelmente agradável e inesquecivelmente inolvidável.

Custa-nos crer como neste cenário de horizontes largos o homem se deixou aprisionar durante séculos, custa-me aceitar que não tenham partido daqui todas as revoluções, não aceito que a submissão, que o cante alentejano tão bem exprime seja ainda hoje uma das nossas marcas, porque aqui, nestes campos lindos e que, como adjectivaria a tia Aia, luxuriantes, onde a ausência de solidariedade campeia, a única coisa que, mau grado o paredão de Alqueva parece não se deixar submeter é a natureza, que, alheia à luta dos homens se renova em cada primavera e, ao contrário de nós, gente, humanos, prima por manter ainda a diferenciação do carácter das suas estações bem marcado, ao invés do indígena, que aos poucos e em quarenta anos se transformou num camaleão gelatinoso, ou, como diria a tia Aia, em lindíssimos e gelatinosos camaleões, inda que sendo bichinhos que ela, que jamais saíra daqui, vez alguma tivesse visto.

Visto ou ouvido, estas vastas terras aplanam a alma e injectam nos seres vírus de bonomia, estado anímico que a tia Aia, sempre mexendo, adjectivaria de letargia, no que pacificamente lhe concedo toda a razão. Aqui o tempo não anda para a frente, não avança, regride, olhemos as nossas vilas aldeias e cidades e comprovemo-lo, um paraíso perdido, um vazio no tempo que nem Einstein previra mas que agora, mentes brilhantes, vendem aos turistas em pacotinhos de fins de semana, disso se encarregarão os operadores turísticos e para tal a GenuineLand preparou os nativos alentejanos cujo céu, livre de poeiras e fumos, vendemos em pastilhas  de noites de breu com um sabor estrelado através da Dark Sky Alqueva.

A novidade aqui passa só e somente por essas adjectivadas e exageradas promoções, os publicitários sempre foram excessivos, e não o foram ou são somente com este Alentejo, lugar onde procuram, ou alguém força, estabelecer novas tradições com mais rapidez que aquela com que enterram as velhas. Pôr em pé o misticismo Endovélico no Alandroal, obrigar-nos a todos a olhar o balão como pategos no Dark Sky, ou tentar tapar o buraco que a desertificação abriu na peneira com o projecto GenuineLand, embasbacando perante as centenas de empregos, milhares de empregos que estas coisas geram, tá-se mesmo vendo, é andar brincando com o Alentejo.

Brinca-se no Alentejo e no país, agora até promovem e homenageiam quem mais brinca.

Brincalhões …

Foto 1 – A arma usada na matança.
Foto 2 – Monsaraz no horizonte.
Foto 3 - O horizonte visto de Monsaraz.
Foto 3 – Afloramentos de xisto perto da ribeira de Lucefecit.