Olhar
aquelas mãos tratadas, as unhas cuidadas de modo esmerado, compridas q.b.,
pintadas numa cor carregada e em mãos de dedos esguios, de pele branca, lisa,
reflectindo os anos vividos e a viver, ou mais ou menos isso, suscita em mim,
sempre, os pensamentos mais pecaminosos que imaginar nos seja permitido.
Natural
ou inconscientemente fui-lhe complicando a satisfação dos meus pedidos, complicando
nem será o termo, será mais correcto alegar sofisticação dos pedidos, o que a
obrigava a manusear as mãos frente aos meus olhos durante muito mais tempo.
Pegar na coisa, na coisa ou no coiso, no que quer que eu pedisse ou
solicitasse, ou comprasse, e manuseá-la, ou manuseá-lo, buscar-lhe o jeito,
medir-lhe mentalmente o tamanho, ajuizar das necessidades para o envolver,
escolher um padrão condicente e cortar a folha correctamente, à medida, embrulhar com
jeitinho, cuidadosamente, sem rugas no papel e, no final colocar-lhe um lacinho.
Perfeito.
E,
enquanto as mãos lhe buscam e apuram a perfeição, eu, deleitado, olho-as, a
elas e, por cima dos óculos à dona dessas miraculosas mãos, reparo então como
os cabelos lhe oscilam, ondulam como um pêndulo ao sabor dos movimentos das mãos, e
os olhos, os olhos meu Deus, que quando pestanejam me fazem esquecer do que ali
me levara e dou por mim pedindo o jornal na padaria, papo-secos na farmácia,
aspirinas na florista ou pão na livraria. Distraído pego em tudo aquilo preparando-me
para abalar sem pagar e logo um sorriso aberto, de dentes mais brancos que os
de um teclado me recorda diplomática e docemente:
-
Vai pagar em cheque ou em numerário senhor Baião, quer facturinha, com número
de contribuinte ? Arrisca o carrinho ?
Então
acordo da distracção brejeira a cuja cegueira sucumbira e fico preso do seu
olhar pestanudo e linguajar profuso, o porta moedas aberto, a carteira aberta,
esperando ouvi-la soletrar a importância da coisa, o valor da conta, desculpando-me
da minha abstracção, rotineira já, e reparo então que susteve o riso, a risota,
e ao suster-se o peito lhe arfa e o volume aumenta e me toca, corrijo, me
sensibiliza, a mim, homem sensível, que nem deve enervar-se pois tenho um “stent”
na aorta há coisa de meia dúzia de anos.
Tal
como as conversas, ou como as cerejas que se comem umas atrás das outras,
também os atributos, os pormenores ou as peculiaridades da beleza nos levam,
nos conduzem, a que os observemos um após outro com particular atenção exigindo
que nos detenhamos num ou noutro ponto ou aspecto mais do nosso agrado, reparo nesse
instante como a calça de ganga se lhe ajusta à perna, se lhe cola e a molda como
a uma alva e marmórea coluna dórica, contudo o cós, baixo, deixa antever-lhe ao
baixar-se a pele morena e tisnada a qual, a exemplo dos eflúvios do café que me
toldam as sensações mantendo-me sonhando acordado, faz com que ao invés de
conferir trocos e compras me perca nessa maravilha que o feminino encerra há
milhões de anos e nos faz permanecer e avançar seja ou não seja.
Esteja ou não
esteja ante nós a mulher ideal, quer sonhada, quer imaginada, pois um pormenor
nos basta, quantas vezes um simples pormenor nos basta para
abastardar os sentidos, a razão e a emoção, relembro quantas vezes um mero
sinalzinho na cara, no pezinho* ou uma peculiaridade em mais recatado e íntimo
lugar, senão vejamos, desta foram suficientes as unhas, tratadas, cuidadas com
esmero, nem curtas nem compridas mas jamais roídas, os dedos esguios, uma palma
fina de pele branca onde deixo perder o olhar, divagar, como se por ali pudesse
ser deduzida, admirada e amada a mulher ideal, e me subvertesse irracionalmente
o desejo animal, carnal, tornado incapaz de raciocinar, de acordar, de guardar
a compra feita e despedir-me, sair delicada e cortêsmente, ir à vida, tomar
juízo e disfarçar o rubor que me tomara de assalto e me prostrara o cogito, a
disposição, a emoção.
Saio
sorridente, atravesso a rua, cumprimento o Pedro e brinco com ele porque a ele
sim, à juventude sim, é lícito arvorar todas as armas e alimentar todos os
sonhos e desejos que a um cinquentenário cuidariam de amesquinhar, como se a
maturidade a sabedoria e a segurança e a plenitude da vida não fossem agora, e
não quando a cegueira e a impetuosidade da inexperiência dão corpo e fruto, ditam
as regras e o caminho que, pasme-se, tantas vezes é mal percorrido ou nem
sequer é palmilhado e as vidas se perdem num labirinto de escuridão e
ignorância, de preconceitos e juízos de valor à priori errados e aos quais só o
olor de amores-perfeitos atenua a negritude do basalto das calçadas.
Agarro
nas fotocópias e saio faustoso ante o sol da manhã que me alimenta a alma e o
pensamento, nas calmas dirijo-me à clínica de podologia onde marcara vez. É
tempo de tratar de mim com o mesmo cuidado, o mesmo esmero, talvez aplicar-lhes
um verniz contra ou prevenindo a onicomicose, um verniz branco ou transparente, e
as apare convenientemente, evitando que os cantos ou bicos se encravem no dedo
e me tornem manco o andar, isto é me obriguem a coxear, para além do mau
aspecto que provocam ao descalçar-me e invariavelmente o dedo do pé sair pelo
buraco que elas mesmas cortaram e me poderá envergonhar, a mim que se há coisa
que tenha pouca seja precisamente vergonha. A verdade é que não desejo arranhar
as canelas ou rasgar as meias de licra a ninguém.
Estamos
quase lá, boa Páscoa e tratai das unhas, das mãos e sobretudo dos pés. O bom
amante é aquele que, sem a arranhar, em paz dorme com a Violante, adiantou o
Pedro rindo com vontade, pois a realidade é que o Livro de Eclesiastes é
desapiedado no que concerne às vaidades humanas, mas nada nos diz ou convida
quanto à renúncia a essas vaidades ou quanto às tentações e fraquezas a que
sucumbamos ou façamos frente, respondi-lhe eu. Mas essa, ou esta, é uma
discussão teológica que eu mesmo alimento, a renúncia, a salvação, o desespero,
o fascínio, sucumbir ou não sucumbir, discussão em que de modo afectuoso me
coloco sempre a salvo de mim próprio, como se fosse um descarado, tumultuoso e
ambivalente conivente dos pecados em que me enleio.