quarta-feira, 15 de maio de 2019

604 - SUBIR AO CÉU COMO O ANJO MENADEL


O meu amor não lhe deu vida pois ela sempre a teve própria, mas creio solenemente tê-la ajudado a manter em alta a auto-estima que, como se diz por aqui, chegava para dar e vender, sempre em alta.

Observava-a e, quanto mais a olhava mais o meu maravilhamento recaía sobre tanta confiança, tanta certeza, tanta disponibilidade amor e carinho dado mas não vendido, vendo-a eu a ela um pouco a modos como quem vê um anjo na terra.

Eu olhava e quanto mais olhava mais me convencia estar vendo um anjo… Ou seja, ver para crer como São Tomé e eu, que tanta coisa já vira, pasmava surpreendido ao ver-me confrontado não tanto com a sua beleza celestial, mas com a sua capacidade de dar, de dar-se. Ela para quem na vida tudo fora parco, sopesado, comedido e submetido a criteriosa ponderação.

Sentindo-me protegido por um misto de beatitude celestial e profana dela emanada, senti-me sempre um privilegiado e, não desejando extrapolar a modéstia dessa visão revi tudo, não me atrevendo a considerar-me um eleito, um escolhido, ainda que no meu íntimo me sinta como tal, tal a felicidade fruída ao ser por ela abençoado, tocado. 

Difícil será para um mundo de pecadores como nós ascender aos céus, muito mais fácil é vogar nos ares da sua bênção, limbo para onde me senti levado e para onde a toda a hora me sinto arrastado numa santidade beatífica, tendo daí resultado ter solidificado em mim uma vontade imperiosa de fazer o que está certo, de ser mais que eu mesmo, de me superar, de me ultrapassar, bafejado e impulsionado por essa energia vital p’la qual me sinto tocado, que me tocou e transformou.

Aceitarão que não subi aos céus, inda que vogue na terra imbuído desse espírito de boa vontade entre os homens que ela tão bem inculcou em mim. Afirmá-lo seria manifestamente exagerado, contudo, todavia mas porém e, quer bafejado pela fortuna quer aspergido pela sua virtuosidade, também eu me senti e sinto tocado pela sua bondade e destinado a cumprir quanto compete a um homem bom, a qualquer cidadão consciente do seu dever, a todo o apaixonado que se preze e respeite o amor, a sua dádiva, a sua força anímica. No fundo a coragem a força e a energia que dela emanam e ao longo de séculos tem transformado a face deste planeta.

É quando fecho os olhos que melhor vejo ou recordo a sua beleza, a sua face, a tez ruborizada a que o amor deu cor, os olhos amendoados transportando a essência de amendoeiras em flor, os lábios finos de anjo que convidam envolvem e abraçam, o fácies todo ele num repente de uma beleza ímpar que só a ascensão consente e redime, eu repentinamente flectido em genuflexão respeitosa ante a sua graça e a imagem endeusada que de si construo passo a passo e por isso hoje um candelabro no seu altar e uma jarra com rosas vermelhas que a celebrem, testemunhem e jurem a assumpção da minha fé, a minha devoção, o meu amor por ela, jurado e prometido crente ser o amor que nos move e nos une, ciente de que a esperança não é uma palavra vã e que o Senhor sabia o que afirmava ao gritar aos quatro ventos amai-vos uns aos outros, multiplicai-vos, ide e povoai a terra.

Nunca busquei nem verei nela a Madre Teresa que nunca foi, nem a meus olhos tal serás meu amor, mas o teu amor a tua bondade a tua beleza e serenidade será lembrança que me acompanhará doravante e de mim fará por ti um homem novo, simultaneamente ávido e saudoso da tua doçura, da tua meiguice, da tua candura.

 Não num concílio dos deuses e menos ainda num qualquer concílio papal, se porá em causa menos a importância o lugar e o tempo que a autoridade celestial ou terrena. Estará eternamente em causa a unidade e intimidade familiar, não o núcleo nuclear, o núcleo do universo, o núcleo elementar, o núcleo central, fulcral, a célula, o átomo, a partícula ínfima deste universo maravilhosamente expandido e descoberto ou o maravilhamento da paixão como a única força gravítica celestial. É neste momento único, neste horizonte de eventos, nesta singularidade, neste limite que se jogará o amor, é aí mesmo, é precisamente nesse momento, tal como apostolava Einstein quando professava, que uma justificação, uma explicação será devida e dada aos gentios.

Sit Dominus Deus inhabitare facit unius moris


603 - SEDA, ERAM MESMO DE SEDA ......................


Agora são verdes, verdinhas da cor da esperança e mais confortáveis, modernas e humanas. Têm bancos reclináveis individuais forrados num tecido colorido agradável ao tacto e até ficha eléctrica para ligar o portátil ou carregar o telemóvel. Muito longe das carruagens de há quase cinquenta anos e nunca asseadas, bancos de madeira ou napa surrada, por vezes rasgada, magalas dormindo nos suportes da bagagem de mão sobre as nossas cabeças.

Era uma corrida, uma marcha apressada dos prédios da caixa onde ela vivia até à estação. Meia hora ou quase batendo tacão pela noite dentro que o comboio partia cedo para estar pelas nove em Lisboa e ainda havia que atravessar o tejo num cacilheiro. Chegava a Évora pela matina e vinha já repleto de magalas e gentes arrebanhadas desde Elvas e Estremoz até cá, gente tão bruta quanto a de agora, mas então muito mais selvagem porém mais genuína.

Agora não nos amontoamos, cada passageiro tem um bilhete e um lugar reservado, o pica está ligado em rede e aceita pagamento pelo multibanco. Um espanto.

Espanto nessa época só mesmo nós dois, a Luisinha e eu, novos, novinhos em folha, novíssimos, primeiro não mas depois já de aliança no dedo, ar divertido, um indisfarçável ar de felicidade, apaixonados, descomprometidos. Eu bisando o Ministério da Marinha, ela Santa Maria, Curry Cabral e companhia. Ver-nos-íamos cada dia da semana, voltaríamos na sexta ou somente ao fim de semanas, meses, ou anos. O tempo correndo devagar, parado e devagarinho, a nossa ligação marinando em paciências, esperas e carinhos, a ternura uma promessa garantida, a meiguice relevando na brejeirice consentida e partilhada, a doçura animando-nos os sonhos de meninos e tudo junto engrossando o caldo de saudade em que permanentemente andávamos mergulhados.

É outra hoje a saudade vivida e sentida. Mui diferente esta paixão siliciosa e masoquista que apadrinho, com a qual me fustigo numa ânsia de lembrar-te e vinda do fundo de mim que nem um minuto de descanso me concedo, como se fosse sacrilégio ignorar-te a ti que caminhas sempre a meu lado, como outrora ocupavas o lugar respectivo no banco de napa corrido dessas carruagens em que eras estrela viçosa, jovem, alegre e bem formosa.

É outro hoje o mundo, não somente por terem passado por ele mais de quatro décadas, não só devido a melhorias, progresso e as tecnologias terem assentado arraiais na praça, mas porque nele falta o principal, tu, tu que davas sentido às coisas, mantinhas o mundo nos eixos e eu tinha onde me agarrar. Agora foge-me o chão debaixo dos pés, nada é firme, nada é certo, tudo é inseguro e o meu mundo, dantes um Jardim das Delícias* é agora um deserto sem sombra, sem água, sem um oásis ou ao menos uma qualquer enganadora miragem onde, por momentos pudesse dessedentar-me e descansar desta caminhada sob o sol abrasador da tua ausência.

És uma obsessão que me cresta e abre chagas ao derramares sobre mim memórias vivas em todos os lugares por onde passo, por onde passámos, e que revivo com excitante assombro e dor apaixonada numa subtileza inocente, cujos matizes e cambiantes me mudam a disposição da noite para o dia num minuto, quando não num segundo, tudo dependendo de Cronos ** da força da lembrança, da nitidez da miragem, da sede de ti e da saudade do momento.

Hoje é o comboio que te traz até mim, mas pode ser uma música, uma imagem, o título de um livro ou de um filme, uma frase que alguém profira, uma palavra, um gesto, um objecto com que me depare, um gancho do cabelo, um guarda-jóias, a lata da laca, sete escravas, a tua escova de dentes no copo e ele por sua vez ainda no lugar onde o deixaste, no lugar de sempre no armário da casa de banho,  as cortinas das janelas ainda por mudar e as quais nem me atrevo a trocar.

Mas é sempre linda e jovem que te vejo, revejo, lembro, imagino e sonho pois sempre foste e continuas sendo para mim um sonho lindo.


Assim me encerro em silêncios e reflexões despoletadas pelo mais pequeno pormenor, por quaisquer aparentemente pequenos factos e hoje, que coloquei no roupeiro da arrecadação toda a roupa de inverno e de lá trouxe a de verão, quedei-me no robe verde de seda que me ofereceras tocando o tecido entre os dedos e, fechados os olhos foi a ti que lembrei na tua imaculada camisa de dormir até aos pés e em seda branca, tu e eu enredados nela, comprida demais naquelas horas em que nós, e eu impaciente a levantava impetuoso porque todos os minutos e todos os segundos perdidos eram dano e o amor urgia, clamava e irrompia feroz até que a saciedade e o cansaço nos dessem a calma e a paz diariamente procurada e construída com a mesma paciência amor e carinho com que eram feitas as surpreendentes quão majestosas construções de areia que víamos no Tamariz na Nazaré ou no Algarve.

Depois, como em suave quietação o fluxo e refluxo das ondas na praia arrasta em vai-vem algodão doce ou espuma e serenidade, e nós, abraçados, sentindo esse mar calmo, essas ondas frescas arrefecendo a fornalha das turbinas, testa com testa, nariz com nariz, lábios, línguas, até a tua face roçagar a minha e eu, deleitado, adormecer sonhando por ser deitado que melhor te sonho lembro e choro, escondido de todos escondido de tudo, só tu e eu e esta dor insana, tu e eu e esta cidade agora sem nexo, este mundo absurdo, indiferente e todo igual, sem charme nem piada onde tudo se repete até à exaustão, até cansar, apesar do constatado, nada dá em nada, nada conduz a lado algum e afinal o mais livre de todos sou eu, prisioneiro de mim mesmo mas fora deste labirinto de enganos onde loucos, todos loucos, parecem ter perdido o fio à meada. 

         Mundo onde talvez seja mais fácil encontrar-te a ti que um qualquer magote de gente atinada.







domingo, 12 de maio de 2019

602 - O SEU A SEU DONO, by Maria Luísa Baião * ...


Quando lá cheguei fiquei desiludida, coisa para voltar costas a tudo e vir embora. Esperava tudo menos aquilo, enfim, esperava um qualquer artista mesmo rasca que distraísse e debitasse uns acordes. Como disse, tudo menos aquilo.

A verdade é que se lá vamos muitas vezes nem será para fazer compras, felizmente quanto a essas modas estou sempre actualizada, não é uma feira que me leva a comprar o que não preciso. Mas gosto de feiras, sempre gostei e aquela ideia de dar um ar de arraial a essa feira até não foi de desprezar. Duas coisas houve com que contei ainda antes de para lá me dirigir, encontrar amigas e amigos com quem dar dois dedos de conversa, beber qualquer coisa e, claro, ouvir um qualquer artista, mas não aquilo, tudo menos aquilo.

Maus hábitos que a gente arranja, e depois quando apanha desilusões, é o que se vê, são tudo lamentações. E eu já andava a lamentar há algum tempo o facto de, devido a preocupações me ter escapado em claro uma coisa que eu queria muito e perdi. Ter assistido, na Azaruja, ou em S. Mancos, a um concerto de Canto e Piano, pela Classe Maitrisienne de Chartres, Escola Nacional de Música e Dança de Chartres e que teve lugar na Casa do Povo. Não sei quem nos serviços culturais da nossa autarquia se lembrou desses concertos, gostaria de agradecer-lhe pessoalmente apesar de ter perdido esses eventos.

Mas voltemos à vaca fria, não ter gostado do que encontrei uma vez chegada à feira. Bem sei que me animam uns preconceitos irracionais contra aquela malta, culpa deles pois tiveram muito tempo para os desvanecer e mais ainda para os ter evitado, mas as coisas são assim e não vale a pena estar agora a pintá-las de outra cor.

Por esses meus preconceitos infundados estive mesmo vai-não-vai p'ra virar costas a tudo e todos, não o fiz, em boa hora o não fiz, graças a Deus que o não fiz. Aqui me penitencio pelo meu erro, ao ter ficado tirei fundamentos à minha falta deles, derrubei preconceitos antigos que nenhuma falta me faziam, muito embora me não pesassem nem ignorasse tê-los.

Ganhei com aquela ida à Feira do Livro, mas também o Manuel Dias e a Gertrudes Pasto** ganharam em mim uma admiradora do trabalho desenvolvido que, ao ter ficado, mesmo contrariada, dei a mim mesma uma oportunidade única para reconhecer um erro crasso e dois artistas de gabarito internacional na apresentação e desenvolvimento de formas animadas.

Para aquelas que como eu não ligavam peva à nossa Bienal de Marionetas nem aos nossos artistas, saibam que os temos de craveira internacional. Nunca até aqui me preocupara se essa Bienal era um concurso ou uma reunião de excêntricos, se ficávamos bem ou mal classificados ou vistos, mas o espectáculo que vi naquela noite em que estive para me vir embora virou os meus preconceitos e conceitos todos do avesso.

Afinal gostei do que vi, adorei o profissionalismo e o cuidado na arte cuidada, vou certamente querer ver e conhecer mais daquele trabalho. Não sei se foi inspiração repentina ou se lhes exigiu muito esforço, mas há ali certamente muito tempo investido, muito suor e lágrimas, ai isso há.

Há muitos anos tive a felicidade de ver actuar em Paris um mimo, afinal não é preciso ir tão longe para ter a felicidade de fruir momentos assim. Obrigado.


* By Maria Luísa Baião, escrito ‎a 5 de ‎junho‎ de ‎2005, pelas ‏‎08:46h e provavelmente publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER nos dias ou semanas seguintes.
  




quinta-feira, 2 de maio de 2019

601 - MURAL / MORAL / PAIXÃO / SAUDADE ...

A terra a quem a trabalha
               

Agora nada. Agora de novo uma simples parede alta que fora alva como quase todas na cidade mas não então, então, nesse dia radioso uma trupe afadigava-se desenhando nela e pintando-a, uns por baixo outros por cima, uns de lado outros pendurados ou encavalitados em escadas e escadotes, crianças na relva aos pinotes, e o paredão volvendo tela, pintura, picture, celebração, recordação.

Recordo bem esse domingo do verão quente de 75, esse feliz 6 de Julho, recordo bem o dia e o lugar, lembro menos mal a azáfama sem igual, um cravo, uma ceifeira, gentes, soldados, uma visão, crentes, alarido, festa, liberdade, e tu ponderando a avaliação, olhando-me, mirando-me de cima abaixo, sopesando-me e sorrindo irónica ou matreira, de qualquer maneira ponderando, avaliando, não o mural mas a mim mesmo, a mim e à minha atitude, firmemente tomada e tornada perante ti questão moral.
Aqui se fez história

Apaixonarmo-nos é quedarmo-nos,  submetermo-nos, sujeitarmo-nos esperançados a uma qualquer ponderação, a quaisquer criteriosas avaliações, cedermos, arriscarmos,  e eu esperando expectante, temente, duvidando no momento do julgamento da tua habitual razoabilidade, medroso de que esse teu racionalismo me julgasse mal, receoso que, o que tanto em ti gabava me ditasse uma má sorte sem igual.

Enervado olhava e comentava o mural, o porte das gentes exortadas, o garbo da ação concertada que os gentios procuravam eternizar, tornar imortal pintando-a na pedra como havia feito o homem das cavernas, homem que eu me sentia julgando as pernas tremer, buscando um lugar onde sentar- me, onde nos sentarmos, contudo não o lobrigando.

Hoje e muitos outros dias precisei e precisarei sentar-me perto de ti recordando-te e não soube nem saberei onde nem como, talvez asneira essa tua ideia da doação do corpo à ciência, não há uma campa onde me dirigir, que limpar e florir, não há uma urna com cinzas para adorar e ante a qual ajoelhar, somente uma lembrança tua, uma memória tua, uma recordação tua. Mas quem ousava contrariar-te ?
De mãos dadas passámos aquele arco

Por isso eu aqui, percorrendo à mesma hora o mesmo caminho que trilhámos de mãos dadas tanto nos momentos felizes como nos mais cruciantes das nossas vidas, ou deverei dizer da nossa vida visto ter sido ali que oficialmente essa vida começou ? Ou não foi ali que tu oficialmente me aprovaste ? Deambulo por aqui muitas vezes, desço do jardim Diana onde sempre nos demorámos e percorro a passo lento este percurso até a Igreja do Espírito Santo, dela guino para as Portas de Moura, Jardim do Bacalhau e última paragem antes que na noite soassem as doze badaladas, antes disso estarias no Farrobo, na Travessa da Viola e em casa da avó Joaquina, sem perder o tino nem o sapatinho, sem coches de abóbora e sem que se visse um único ratinho.
O muro agora tornando ao antes da festa

Naquele dia, no dia do julgamento o passeio foi a horas vivas e vivaças, estando as gentes pintando o mural naquele muro, naquele enorme paredão. Viçosas em seu redor as flores, a relva, e tu cuja vida prometia alegria e a companhia felicidade eterna.

Recordar-te enquanto marcho é o que me resta para preencher o vazio em que me deixaste. A horas certas tenho percorrido sozinho em passo lento os mesmos caminhos por nós tantas vezes palmilhados. Por vezes Nau, pironilha, Gabriel Pereira, Bombeiros, pironilha, Nau, outras vezes vice-versa, para lá e para cá, em amena conversa comigo mesmo e tu, sempre presente, tanto mais presente quão te sinto ausente, ausente em parte incerta sendo isso que me atormenta e desconcerta.
Ainda visíveis restos do mural de antanho

E enquanto as gentes pintavam de cores garridas o muro, o mural, tu julgavas-me e eu temia me julgasses mal. Afinal durámos mais que o muro, digo mais que o mural, cuja longa vida cedo se extinguiu e hoje de novo uma velha e esquecida parede, talvez até novo acontecimento a convocar e dela faça de novo tela, ou um outro casal de namorados debaixo dela passe e se contemple, se julgue e se prometa como nós prometemos;

- Até que a morte nos separe.

e separou, abalaste, e eu para aqui estou gerindo o vazio que me deixaste, chorando-te mais que lembrando-te, sentindo por ti mais desejo que saudade.

Acompanhar-te todos estes anos não foi consolo amor, foi dádiva dos céus que os céus traindo-me cedo me roubaram. Deambular é sina minha. Não consigo, não voltei a encontrar o meu lugar querida, o mundo parece-me outro sem ti e todos os lugares me surgem novos, desconhecidos, assustadores.

São temores amor, são só temores, são só horrores, pesadelos, dias, noites, uma tristeza sem fim.

Enquanto gentes pintavam um garrido mural, tu julgavas-me... 


segunda-feira, 29 de abril de 2019

600 - UNA FURTIVA LAGRIMA , by Luísa Baião * ...

             


Os anos tinham passado depressa. Como comummente dizia quando vários casais amigos se juntavam para farrar, “a vida fluía”. Raimundo, um estroina quando jovem assentara, ia já em três filhas e tornara-se “caseiro”. Família, trabalho, casa e outros encargos tomavam-lhe todo o tempo e orçamento do agregado. De vez em quando um convívio com amigos e respectivas proles enchiam-lhe o quintal mas não logravam esgotar-lhe a paciência.
 Dolores vivia feliz. Qualquer deles se realizara e concretizara sonhos de banco de escola. Exerciam profissões que lhes haviam preenchido as vocações. Amavam-se desde esse tempo longínquo, tinham três filhas adoráveis que lhes apagavam as agruras que uma tal situação acarretava, e alcançavam a custo os fins de meses esticando a corda. Era chapa batida chapa lambida, mas sobreviviam, sobretudo, se nada lhes sobrava também nada lhes faltava, e eram felizes, o mais importante.
 Vivendo um para o outro e para as filhas nem se davam conta da vida “cá fora”, já que as suas eram um rodopio de equilibrismo por cima de um arame demasiado esticado. A lufa-lufa era diária. Levantar cedo, prepararem-se e preparar as pequenas, pequenos-almoços que os gostos desiguais complicavam, enchendo a mesa de sumos, leite, café, papas, flocos, biberões, torradas, compotas, e que, como a qualquer outra refeição, enchiam a máquina da louça após o término.
 Dolores corria, de caminho prantava a mais pequena na creche para depois se fazer à estrada e percorrer trinta quilómetros até picar o ponto. Raimundo, que exercia na cidade, cuidava da “entrega” das duas restantes e da sua “recolha” ao fim da tarde. Uma na primária, outra na preparatória.
 As pequenas cresciam a olhos vistos, roupas e sapatos nunca lhes serviam muito tempo e eram alvo de reciclagem para passarem das mais velhas para as mais novas. Por enquanto não ofereciam resistência à manobra, era aproveitar enquanto dava, pois por certo não duraria sempre.
 Creche, livros, manutenção da família, despesas com os carros a que as circunstâncias obrigavam, deslocações e a prestação da casa deixavam-nos todo o tempo com o credo na boca e a língua de fora, contudo nunca se haviam queixado de que a felicidade de que desfrutavam lhes estivesse a sair cara. Nunca tal sequer lhes ocorrera e a bem da verdade só quando qualquer das meninas adoecia o semblante se lhes ensombrava.
 Naquele dia, mas não como sempre acontecera, enquanto distribuíam as crianças aproveitavam para escutar no auto-rádio as notícias da manhã. Morrera Pavarotti, anunciavam, e ambos experimentaram a dificuldade em ligar a cara do extinto a um dos três nomes que na televisão os tinham já divertido, Pavarotti, Carreras ou Plácido Domingo. À noite a Tv. desfaria a confusão. Lamentaram e lembraram o abraço dado numa noite em que um dos tenores nesse espectáculo, cantara “Una Furtiva Lágrima”, como se só a eles a canção fosse dedicada. Nessa noite e por mor dum abraço, tinham-se deitado como dois amantes, as meninas dormindo, a felicidade pairando, o amor surgindo pressuroso, explodindo libertinamente, como que contido por dias e dias de trabalho acumulado e rotinas cumpridas.
 Recordando esses pormenores Raimundo meditava igualmente na situação familiar que repentinamente se alterara e não entendia. Após anos de bom e efectivo serviço quer ele quer Dolores, incompreensivelmente, viam-se desempregados. Raimundo, obcecado e atormentado travou repentinamente e a custo evitou um embate. As crianças quase foram arrancadas dos seus lugares, valeu-lhes o cinto, que evitou o pior. Dolores pela primeira vez gritou para o marido, coisa que nunca fizera em quase quinze anos de casados, perdendo o controle de si mesma.
  A família ainda não sabe mas a pequenita, face ao corte brutal nos rendimentos do casal irá deixar a creche, agora caríssima ante a nova situação. Raimundo sabe-o, é nisso que pensa, este primeiro desentendimento é a ponta do iceberg. Sente-se frustrado profissionalmente e como homem. Que irá ser da família ? Irá perante tanta e imprevista adversidade desestruturar-se  ? E as crianças, como irão reagir ? E Dolores ? Não se queixara já ela da inutilidade, futilidade e trabalheira que o curso lhe dera a tirar ? Que iria fazer agora uma bióloga ? Dedicar-se a causas e projectos ambientais ? Tornar-se pacifista e ambientalista militante ?
  Rosália, a mais velha das três balbuciou para o pai estendendo-lhe ternamente um lenço de papel;
  - O que vai ser de nós ? Que vai acontecer ? E agora ?

 Raimundo nunca saberá se somente ele deu por aquela lágrima furtiva que deixou soltar. 


* By Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, ‎20‎ de ‎setembro‎ de ‎2007 pelas ‏‎11:15h, não havendo certeza quanto a qualquer edição pública deste texto. Provavelmente inédito.