Os
anos tinham passado depressa. Como comummente dizia quando vários casais amigos
se juntavam para farrar, “a vida fluía”. Raimundo, um estroina quando jovem
assentara, ia já em três filhas e tornara-se “caseiro”. Família, trabalho, casa
e outros encargos tomavam-lhe todo o tempo e orçamento do agregado. De vez em
quando um convívio com amigos e respectivas proles enchiam-lhe o quintal mas
não logravam esgotar-lhe a paciência.
Dolores
vivia feliz. Qualquer deles se realizara e concretizara sonhos de banco de
escola. Exerciam profissões que lhes haviam preenchido as vocações. Amavam-se
desde esse tempo longínquo, tinham três filhas adoráveis que lhes apagavam as
agruras que uma tal situação acarretava, e alcançavam a custo os fins de meses
esticando a corda. Era chapa batida chapa lambida, mas sobreviviam, sobretudo,
se nada lhes sobrava também nada lhes faltava, e eram felizes, o mais
importante.
Vivendo
um para o outro e para as filhas nem se davam conta da vida “cá fora”, já que as
suas eram um rodopio de equilibrismo por cima de um arame demasiado esticado. A
lufa-lufa era diária. Levantar cedo, prepararem-se e preparar as pequenas,
pequenos-almoços que os gostos desiguais complicavam, enchendo a mesa de sumos,
leite, café, papas, flocos, biberões, torradas, compotas, e que, como a
qualquer outra refeição, enchiam a máquina da louça após o término.
Dolores
corria, de caminho prantava a mais pequena na creche para depois se fazer à
estrada e percorrer trinta quilómetros até picar o ponto. Raimundo, que exercia
na cidade, cuidava da “entrega” das duas restantes e da sua “recolha” ao fim da
tarde. Uma na primária, outra na preparatória.
As
pequenas cresciam a olhos vistos, roupas e sapatos nunca lhes serviam muito
tempo e eram alvo de reciclagem para passarem das mais velhas para as mais
novas. Por enquanto não ofereciam resistência à manobra, era aproveitar
enquanto dava, pois por certo não duraria sempre.
Creche,
livros, manutenção da família, despesas com os carros a que as circunstâncias
obrigavam, deslocações e a prestação da casa deixavam-nos todo o tempo com o
credo na boca e a língua de fora, contudo nunca se haviam queixado de que a
felicidade de que desfrutavam lhes estivesse a sair cara. Nunca tal sequer lhes
ocorrera e a bem da verdade só quando qualquer das meninas adoecia o semblante
se lhes ensombrava.
Naquele
dia, mas não como sempre acontecera, enquanto distribuíam as crianças
aproveitavam para escutar no auto-rádio as notícias da manhã. Morrera
Pavarotti, anunciavam, e ambos experimentaram a dificuldade em ligar a cara do
extinto a um dos três nomes que na televisão os tinham já divertido, Pavarotti,
Carreras ou Plácido Domingo. À noite a Tv. desfaria a confusão. Lamentaram e
lembraram o abraço dado numa noite em que um dos tenores nesse espectáculo,
cantara “Una Furtiva Lágrima”, como se só a eles a canção fosse dedicada. Nessa
noite e por mor dum abraço, tinham-se deitado como dois amantes, as meninas
dormindo, a felicidade pairando, o amor surgindo pressuroso, explodindo
libertinamente, como que contido por dias e dias de trabalho acumulado e rotinas
cumpridas.
Recordando
esses pormenores Raimundo meditava igualmente na situação familiar que
repentinamente se alterara e não entendia. Após anos de bom e efectivo serviço
quer ele quer Dolores, incompreensivelmente, viam-se desempregados. Raimundo,
obcecado e atormentado travou repentinamente e a custo evitou um embate. As
crianças quase foram arrancadas dos seus lugares, valeu-lhes o cinto, que
evitou o pior. Dolores pela primeira vez gritou para o marido, coisa que nunca
fizera em quase quinze anos de casados, perdendo o controle de si mesma.
A
família ainda não sabe mas a pequenita, face ao corte brutal nos rendimentos do
casal irá deixar a creche, agora caríssima ante a nova situação. Raimundo
sabe-o, é nisso que pensa, este primeiro desentendimento é a ponta do iceberg.
Sente-se frustrado profissionalmente e como homem. Que irá ser da família ? Irá perante tanta e imprevista adversidade desestruturar-se ? E as crianças, como
irão reagir ? E Dolores ? Não se queixara já ela da inutilidade, futilidade e trabalheira
que o curso lhe dera a tirar ? Que iria fazer agora uma bióloga ? Dedicar-se a
causas e projectos ambientais ? Tornar-se pacifista e ambientalista militante ?
Rosália,
a mais velha das três balbuciou para o pai estendendo-lhe ternamente um lenço de papel;
- O que vai ser de nós ? Que vai acontecer ? E
agora ?
Raimundo nunca saberá se somente ele deu por
aquela lágrima furtiva que deixou soltar.
* By Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, 20 de setembro de 2007 pelas 11:15h, não havendo certeza quanto a qualquer edição pública deste texto. Provavelmente inédito.