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segunda-feira, 29 de abril de 2019

600 - UNA FURTIVA LAGRIMA , by Luísa Baião * ...

             


Os anos tinham passado depressa. Como comummente dizia quando vários casais amigos se juntavam para farrar, “a vida fluía”. Raimundo, um estroina quando jovem assentara, ia já em três filhas e tornara-se “caseiro”. Família, trabalho, casa e outros encargos tomavam-lhe todo o tempo e orçamento do agregado. De vez em quando um convívio com amigos e respectivas proles enchiam-lhe o quintal mas não logravam esgotar-lhe a paciência.
 Dolores vivia feliz. Qualquer deles se realizara e concretizara sonhos de banco de escola. Exerciam profissões que lhes haviam preenchido as vocações. Amavam-se desde esse tempo longínquo, tinham três filhas adoráveis que lhes apagavam as agruras que uma tal situação acarretava, e alcançavam a custo os fins de meses esticando a corda. Era chapa batida chapa lambida, mas sobreviviam, sobretudo, se nada lhes sobrava também nada lhes faltava, e eram felizes, o mais importante.
 Vivendo um para o outro e para as filhas nem se davam conta da vida “cá fora”, já que as suas eram um rodopio de equilibrismo por cima de um arame demasiado esticado. A lufa-lufa era diária. Levantar cedo, prepararem-se e preparar as pequenas, pequenos-almoços que os gostos desiguais complicavam, enchendo a mesa de sumos, leite, café, papas, flocos, biberões, torradas, compotas, e que, como a qualquer outra refeição, enchiam a máquina da louça após o término.
 Dolores corria, de caminho prantava a mais pequena na creche para depois se fazer à estrada e percorrer trinta quilómetros até picar o ponto. Raimundo, que exercia na cidade, cuidava da “entrega” das duas restantes e da sua “recolha” ao fim da tarde. Uma na primária, outra na preparatória.
 As pequenas cresciam a olhos vistos, roupas e sapatos nunca lhes serviam muito tempo e eram alvo de reciclagem para passarem das mais velhas para as mais novas. Por enquanto não ofereciam resistência à manobra, era aproveitar enquanto dava, pois por certo não duraria sempre.
 Creche, livros, manutenção da família, despesas com os carros a que as circunstâncias obrigavam, deslocações e a prestação da casa deixavam-nos todo o tempo com o credo na boca e a língua de fora, contudo nunca se haviam queixado de que a felicidade de que desfrutavam lhes estivesse a sair cara. Nunca tal sequer lhes ocorrera e a bem da verdade só quando qualquer das meninas adoecia o semblante se lhes ensombrava.
 Naquele dia, mas não como sempre acontecera, enquanto distribuíam as crianças aproveitavam para escutar no auto-rádio as notícias da manhã. Morrera Pavarotti, anunciavam, e ambos experimentaram a dificuldade em ligar a cara do extinto a um dos três nomes que na televisão os tinham já divertido, Pavarotti, Carreras ou Plácido Domingo. À noite a Tv. desfaria a confusão. Lamentaram e lembraram o abraço dado numa noite em que um dos tenores nesse espectáculo, cantara “Una Furtiva Lágrima”, como se só a eles a canção fosse dedicada. Nessa noite e por mor dum abraço, tinham-se deitado como dois amantes, as meninas dormindo, a felicidade pairando, o amor surgindo pressuroso, explodindo libertinamente, como que contido por dias e dias de trabalho acumulado e rotinas cumpridas.
 Recordando esses pormenores Raimundo meditava igualmente na situação familiar que repentinamente se alterara e não entendia. Após anos de bom e efectivo serviço quer ele quer Dolores, incompreensivelmente, viam-se desempregados. Raimundo, obcecado e atormentado travou repentinamente e a custo evitou um embate. As crianças quase foram arrancadas dos seus lugares, valeu-lhes o cinto, que evitou o pior. Dolores pela primeira vez gritou para o marido, coisa que nunca fizera em quase quinze anos de casados, perdendo o controle de si mesma.
  A família ainda não sabe mas a pequenita, face ao corte brutal nos rendimentos do casal irá deixar a creche, agora caríssima ante a nova situação. Raimundo sabe-o, é nisso que pensa, este primeiro desentendimento é a ponta do iceberg. Sente-se frustrado profissionalmente e como homem. Que irá ser da família ? Irá perante tanta e imprevista adversidade desestruturar-se  ? E as crianças, como irão reagir ? E Dolores ? Não se queixara já ela da inutilidade, futilidade e trabalheira que o curso lhe dera a tirar ? Que iria fazer agora uma bióloga ? Dedicar-se a causas e projectos ambientais ? Tornar-se pacifista e ambientalista militante ?
  Rosália, a mais velha das três balbuciou para o pai estendendo-lhe ternamente um lenço de papel;
  - O que vai ser de nós ? Que vai acontecer ? E agora ?

 Raimundo nunca saberá se somente ele deu por aquela lágrima furtiva que deixou soltar. 


* By Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, ‎20‎ de ‎setembro‎ de ‎2007 pelas ‏‎11:15h, não havendo certeza quanto a qualquer edição pública deste texto. Provavelmente inédito.