quinta-feira, 3 de outubro de 2019

617- A RONDA ESTÁ PRISIONEIRA by Luísa Baião*



Em boa hora me chegou às mãos um convite, que agradeço, para assistir a um dos dois concertos que a “Ronda dos Quatro Caminhos” deu no Garcia de Resende. Com pergaminhos firmados, e uma história de dezoito anos de carreira, a “Ronda” não deve nada a ninguém. Maturidade é coisa que lhe não falta e a sonoridade ganhou efectivamente a frescura, irreverência e simplicidade que só os mestres sabem harmoniosamente conjugar.

Como eles comungo da opinião que cultura popular e tradicionalismo são características identitárias do nosso povo, em especial e se, como o fazem, essa cultura é fruto de árduo trabalho de pesquisa e investigação, que muito devemos a Artur Santos, Giacometti e Lopes-Graça, o que aliás modestamente admitem no catálogo dos espectáculos. A modéstia só lhes fica bem, sobretudo se alicerça trabalhos de qualidade que nada perdem, pelo contrário só têm a ganhar com o valor acrescentado de reputações sólida e arduamente firmadas.

Ao contrário de muita música “Pimba”, de que no final deram um exemplo tão irónico quanto mordaz, a cultura popular nada deve ao populismo consumista, tão vazio de tradição quanto de significado e que infelizmente tanta aceitação tem entre grande parte da população portuguesa, de memória por preencher e sentido por perceber.

A inclusão no espectáculo da colaboração dos “Cantares de Évora”, “Coral de Évora” e do coro infantil e juvenil do “ Eborae Música”, convidados, deu não só aos temas como a esses grupos uma riqueza inesperada, como que um colorido inabitual que em actuações isoladas desses mesmos agrupamentos não é normalmente conseguida.

Se apreensões manifestou a “Ronda” antes do espectáculo, e tal é visível no texto do catálogo, sosseguem pois, já que talento lhes sobrou na interpretação das intimidades com que nos brindaram. Por mim só fico à espera do reencontro, ou para mitigar saudades, do CD a editar. Até lá festa, pão e vinho, que se não hão-de acabar, como não se acabarão as noites quentes e namoradeiras deste nosso Alentejo.

Está prisioneira a “Ronda”, prisioneira de um compromisso que assumiu para com o nosso povo e que hoje faz parte da sua ementa musical. A culpa será tanto dela quanto nossa, dela porque prometeu, não desiludiu nem deixou de cumprir, nossa porque consideraríamos uma afronta aos nossos hábitos educados e às nossas expectativas, não gozar do som e da palavra a que nos habituou e cujo futuro deixa antever potencialidades que de modo nenhum desejamos traídas.

Um só caminho portanto lhes fica aberto, o de continuarem a pensar que a cultura popular e a música tradicional são parte de nós e não no-la podem subtrair sem azo a crime de lesa património. A nós cabe cumprir solidariamente no respeito por um trabalho que nos é dedicado e que preserva tradições dessa língua mãe que muitos ingratos filhos por vezes olvidam.

Lamenta-se a “Ronda” que as duas últimas gerações votaram ao ostracismo a nossa cultura popular e as nossas tradições, não lamentem, é passageiro. Preocupadas que estão na voracidade do consumismo e facilitismo a que têm sido acostumadas, não têm tempo para parar e pensar, preferem a música vazia de conteúdos, como preferem hambúrgueres  dispensando mastigação enquanto sonham estar vivendo a “americam life”.

Tanta cultura alheia ingerindo, sem digerir, nem tempo têm para pensar, nem querem perdê-lo fazendo-o. Aguardemos que cresçam, que amadureçam, e quando o emprego faltar, a renda da casa assustar e o carro não puderem comprar, tomarão a pose do “Pensador”, de Rodim, e interrogar-se-ão porque mudou o mundo, antes de reconhecerem serem eles que estão a mudar.

Promova a “Ronda” os seus espectáculos nos grandes espaços que as cervejeiras dominam, e que hordas de não pensantes preenchem, extasiados com o trip fenomenal do extasy, dê-lhes ritmo e toneladas de decibéis, e verá se a juventude aparece ou não. Claro que os espectáculos perderão o carácter intimista e cúmplice com que agora os desfrutamos, e não creio que seja isso que a “Ronda” procura, nem ela nem nós, seus espectadores fiéis e comparsas de uma atitude que durante os seus dezoito anos de vida não apagou a chama de que se alimenta.

Nota alta para um momento do espectáculo em que foi declamado um poema para intelectuais, sátira contundente a alguma da nossa realidade. Parabéns nos Vossos dezoito anos e obrigado.

           


*   by Maria Luísa Baião, escrito no dia 25 / Novembro / 2000 e publicado depois no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.





616 - A AVÓ QUE ME ENCONTROU, By Luísa Baião


Perdi minha Mãe muito cedo, foi uma dor que ainda é, e julgo me acompanhará durante toda a vida. Não só por isso mas também, estreitei os laços que então existiam com meus avós, todos muito queridos, e também já para mim, infelizmente, saudosas recordações.

Talvez por isso a Terceira Idade me sensibilize de forma marcante, ou talvez porque diariamente lido com essa classe etária, tão fragilizada quanto abandonada, por vezes, mas sempre tão carente de atenções, quanto devedoras somos todas das suas memórias.

Não esquecerei jamais minha avó Narcisa, com quem aprendi a enfrentar o mundo e a não adiar problemas. Dormir descansada significava para ela não deixar para amanhã o que devia ser feito hoje. Era alegre como poucas pessoas nessa idade o eram, dela herdei certamente esta disposição que me anima mesmo nos momentos mais difíceis.



De minha avó Joaquina herdei os genes da perseverança e capacidade de trabalho, ainda hoje relembro o seu exemplo, já velhinha mas sempre trabucando, o que lhe permitia ir manducando e estar em paz com Deus e consigo própria. Disputavam as duas a minha presença, pelo que os sábados eram alternadamente vividos com uma e com outra, que para o almoço me preparavam os melhores manjares.

Recentemente casada, órfã e mãe, nunca elas se aperceberam, e por isso ainda me culpo, não lhes ter dito em vida quanto as amava e lhes devia. Julgo que o sabiam, já que vivendo próximas, e ainda que almoçasse com uma delas, nunca olvidava a outra, que, ciumenta, me cobria de beijos e logo ali prodigalizava a ementa para o sábado seguinte.

Os meus avós não me eram menos dedicados, nem eu a eles, esqueci já os seus sermões, mas não esqueci o espírito que em mim incutiram, espírito de devoção, de honestidade da solidariedade, da honra pelo trabalho. Eram homens, muito me mimaram, mas era sobretudo com o meu jovem marido, homem como eles, que gostavam de conversar. E claro brincar com o nétinho, que os fazia babar e pouco maior era, à data, que um chorão.

 Rezar-lhes na campa não redime a minha culpa, por isso todos os idosos são para mim avós, os avós que já não tenho, os avós que queria ter, ainda. Por isso um destes dias, quando na rua João de Deus fui surpreendida por uma velhinha muito querida, não pude deixar de ver nela essas avós que recordo com amor e com saudade, por isso a sua presença me foi agradável, por isso me agradou que sem pudor se tivesse dirigido a mim, que com a pressa com que sempre ando a não via.

Somos vizinhas, embora eu não o soubesse, está internada num lar ali ao Alto dos Cucos, Fontanas, e espera como quem desespera, que os dias se sucedam. O nosso encontro parece ter-lhe sido grato, parece ter-lhe insuflado vida, mal sabe ela quanta gratidão senti em mim por me ter procurado, por me ter tocado, e na verdade tocou-me de perto o coração. Sei ser para ela uma amiga por quem espera à sexta feira, eu não espero, procuro, procuro a amizade e gratidão dessa e de tantas avós que há entre nós, e a quem não devemos esquecer dizer quanto amamos, antes que seja tarde, porque o tempo é uma roda, uma roda que não pára.



Mãe é Mãe, e ninguém substituirá na minha mente e na minha dor a sua memória, minhas avós sabiam-no decerto, já que nunca a procuraram substituir, muito pelo contrário, todas as suas atitudes, sem que o assumissem, foram no sentido de atenuar a minha dor, não fazer-ma esquecer, o que hoje reconheço acertado. Ainda recordo com saudade os seus mimos, as suas carícias, as suas palavras de consolo, amparo e encorajamento. As minhas avós souberam sabiamente deixar intacto um espaço que jamais alguém ocupará no meu coração, o amor por minha Mãe que ainda venero com mágoa, saudade, e sobretudo uma ternura que nem o tempo apagará em mim.

Se alguém me amou incondicionalmente foi sem dúvida essa Mãe que todos os dias lembro e ainda me dá forças, para lutar pela vida, por seguir-lhe o exemplo, que tão bem recordo.

Como é grande a pena que sinto por não a ter comigo, tão grande como o esforço que diariamente faço para que se orgulhasse de mim se entre nós estivesse. 

A saudade não tem fim.




***** By Maria Luísa Baião. Texto talvez inédito.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

615 - GOZAR COM O DESESPERO, by Luísa Baião...


O Diogo Lemos é um daqueles amigos que o infortúnio forja, não estranho por isso que me inclua praticamente entre o número dos seus familiares, quando o não sou.

Devia correr o ano de 75 ou 76, e sendo eu estagiária de Fisioterapia no Hospital do Rêgo, ou Curry Cabral, calhou-me em sorte o Diogo Lemos, rapagão bem feito e bem formado, um tudo nada mais velho que eu, e igualmente noivo. Quase havia sucumbido num desastre de moto, um despiste, um flash, e a coluna de suporte do “rail” protector decepara-lhe uma perna bem acima do joelho. Talvez hoje não a tivesse perdido, mas naquele tempo a ciência era outra e ainda insuficiente para os milagres actuais.

Certo é que quer eu quer o Diogo, ambos demasiado jovens para as agruras que a vida nos atira para cima dos ombros, ficámos bons amigos e vemo-nos muitas das vezes que vou a Lisboa, onde reside, ou ele vem a Évora, geralmente para um bom almoço alentejano, igualmente em família.

Eu, é sabido, só tive um filho, o Diogo em contrapartida tem uma equipa de futebol de cinco, todos bronzeados e tão lindos como a Cesária, uma cabo-verdiana enfermeira no Santa Maria, com quem por um acaso tardio acabou por casar, depois da falta da perna lhe ter quebrado o noivado, muitos namoros e enganos.

O Diogo é hoje uma pessoa normal, aliás, para além da falta da perna, sempre o foi, mas hoje, galhardo, é um cinquentão direito que conserva ainda o porte atlético de antanho. Isto porque durante muitos anos o Diogo não conseguiu suportar uma prótese e se arrastou de canadianas umas vezes, em cadeira de rodas outras. Por este motivo o Diogo só utilizava o sapato ou bota do pé esquerdo, tendo-lhe ao longo de anos sobrado o par direito, que ele, numa atitude de indiferença perante o azar, guardou apesar de saber não poder utilizar.
Da última vez que em casa dele estive foi dia de festa, direito, já com uma prótese, essa perna nova dobrando e tudo, livre de canadianas e cadeiras de rodas, contente com uma aleatória mas simultânea promoção que lhe coubera em sorte, o Diogo era Prof. de Matemática, colocado longe e depois tornou-se técnico de informática numa empresa de Lisboa, sendo hoje especialista em sistemas de informação, vingou-se, e bem, dos anos em que se arrastara nas suas limitações e equívocos.

Fora à dispensa buscar todos os pares de botas e sapatos direitos que lhe haviam sobrado, enchera-os de terra, e neles plantara as mais lindas flores que alguma vez vi enfeitando uma varanda. E havia para todos os gostos, malmequeres brotando de caneleiras alentejanas, camélias sustentadas por delicado sapato de cerimónia envernizado, manjericos sobrepondo-se e tapando mesmo um lindo mocassim castanho de pala, não faltando uma árvore “Bom-Sai” cuidadosa e conscientemente aparada a partir de uma colorida galocha de borracha.

A varanda era já pequena para tanto aparato, e todo aquele calçado exigia-lhe imenso tempo, a regar, a aparar, a proteger do sol, a evitar que lhe não faltasse, a atar os sapatos que por vezes se desatavam, dar-lhes graxa, enfim, cuidar da vidinha como o Diogo costuma dizer.

Fiquei como é óbvio e numa primeira reacção estupefacta com tão curiosa quanto macabra floreira, todavia, atendendo ao espírito cultivado pelo Diogo, que sempre gozou com a adversidade não se deixando por ela envolver ou vitimar, acabei por entender os seus propósitos e o seu jardim, jardim de que aliás toda a família cuida e à volta do qual parece girar a vida dela, família feliz, corajosa, trabalhadora e empreendedora, que faz, como vêem, um manguito aos desaires. Claro que numa segunda reacção me solidarizei e compreendi perfeitamente o porquê daquela aparente aberração.

O Diogo e a família visitaram-me no fim-de-semana passado,* hoje sou a feliz possuidora de um lindo par de botins de borracha, pintados a preceito, donde sobressaem, garbosos e prometedores os rebentos de inesquecíveis bolbos de tulipa. Chorei abraçada ao Diogo.


* by Maria Luísa Baião, escrito num domingo, ‎4‎ de ‎Dezembro‎ de ‎2005, ‏‎pelas 22:34h e provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.

sábado, 28 de setembro de 2019

614 - A PINCELADA, by Maria Luísa Baião * .............


Amo esta cidade que é nossa, e ainda que passe a vida a apontar-lhe defeitos, tal não significa que a ame menos. Pelo contrário, se defeitos lhe aponto é porque me dói no coração o que dela têm feito, ou melhor, o que por ela não tem sido feito.
Sou boa observadora pelo que pouco me escapa, um buraco aberto há demasiado tempo por tapar, uma fachada por cuidar ou caiar. Por exemplo, os “Meninos da Graça”, que ao invés de hercúlea pose de granito, toda a graça perderam cobertos que estão de ervas, fungos e líquenes, cuja acção, se o tempo ajudar, minará a pedra e suas fissuras ou junções.
A quem se arroga quase que o direito de paternidade sobre o nosso património monumental, não fica bem este tipo de exemplo, uma coisa é a pátine natural da pedra, outra que ela patine em ervas por falta de mão amiga que a proteja.
Não viajo muito, mas viajo o suficiente para me aperceber que a nossa cidade merece mais, muito mais, e que em relação a outras cidades de muito menor gabarito, está há muito ultrapassada, o que me custa.
Adoro a Porta de Aviz (ou Avis) e aquela parte da muralha que dela partindo, se estende para os campus universitário e do Seminário, toda ajardinada e normalmente bem cuidada. No lado fronteiro, e em rampa que termina nos domínios de uma velha igreja em derrocada ** (nunca percebi porque ninguém a recuperou), passei muito do meu tempo de menina e moça, pois era esse um dos meus lugares de encontro e de namoro.
Sentados, quando não deitados nesses relvados, eu e meu marido construíamos há trinta anos castelos de sonhos, castelos que viemos a erguer nuns casos, castelos que ficaram por edificar noutros, já que à imaginação e ao sonho tudo é permitido, menos tornear a dura realidade da vida.
É que a Porta de Aviz tem algo de mágico e profano, de espiritual e de sagrado. Em 1525 viria a ser sobrepujada pela Ermida da Sr.ª do Ó, de quem sou devota e em virtude da visita da Rainha D. Catarina de Áustria. Apesar de construída no Séc. XV, com materiais da antiga muralha Romano-Goda, a Porta de Aviz sobreviveu à ruína dos anos de oitocentos, quando os muros esventrados dessa mesma muralha serviram de pedreira aos construtores civis de então.
Ermida de S. Bartolomeu
Lugar de eleição, lugar predilecto, mesmo depois de casada ali passaria muitos dos meus tempos livres em alegre fruição, ou conjecturando projectos, carreiras, opções. E quando a vida me obrigava a escolher, quando essa vida obrigava à reflexão, era ali a céu aberto o meu, nosso, lugar de recolhimento, de retiro.

Porta de Aviz, era assim como que uma porta aberta ao devir, ao céu, que só o presente permanente e engarrafado trânsito me roubaram ou fecharam. Como disse um dia Pope; “é a brutalidade do destino” *** e queira o destino que a rotunda da Porta de Aviz venha um dia a ter uma escultura, já agora preferencialmente de artista eborense, animando as frescas noites de verão e os que por ali sonham, olhando as estrelas, como eu o fiz, menina e moça.
Pois na semana passada os meus olhos luziram de alegria. Ao passar na dita rotunda dei de caras com uma pincelada digna de mestre na ditosa Porta de Aviz. Não sei se alma bondosa preparando o Stº António ou a edilidade num rebate de consciência, o certo é que foi retocada, pintada ou caiada com desvelo, nulouvor.
Imaginem agora se toda a nossa cidade fosse, tivesse sido tratada igualmente com tal desvelo, com tal cuidado, com tal carinho. Será que quem governa a cidade nunca se sentou ali à Porta de Aviz, na relva fresca, sonhando o quanto pudemos fazer por Évora? Será por nunca se abandonar o acanhado espaço dos gabinetes que a imaginação não brota? Experimentem e verão que não lhes faltarão nem motivos nem projectos para esta terra. Por mim faço-vos uma confidência, tenho projectos de vida, gizados ali mesmo há trinta anos, esperando o tempo e a hora de se concretizarem, uns envolvendo netos, outros passeios à Lapónia olhando o sol da meia-noite em trenós puxados por renas, outros, outros, outros... Tantos sei lá, só sei que o sítio é mágico e nos dá vida e alento para muitos anos.
Bem-haja quem deu na Porta de Aviz aquelas pinceladas milagrosas, quem tratou o meu cantinho. E para que saibam, nunca eu para ali fugi buscando esquecer este mundo, mas antes nele encontrar respostas, p'ra com ele me encontrar, com ele e comigo mesma.
                                          



* by Maria Luísa Baião, escrito a 4‎ de ‎Junho‎ de ‎2001, ‏pelas ‎17:31h e provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.
** Ermida de S. Bartolomeu: ver links
  1. http://www4.cm-evora.pt/pt/conteudos/areas+tematicas/Cultura/Curiosidades+Hist%C3%B3ricas+-+Ermida+S.+Bartolomeu.htm                                                                         
  2. https://www.google.com/maps/uv?hl=pt-PT&pb=!1s0xd19e4e6dabbdc93%3A0x941fab28cdf573ca!2m22!2m2!1i80!2i80!3m1!2i20!16m16!1b1!2m2!1m1!1e1!2m2!1m1!1e3!2m2!1m1!1e5!2m2!1m1!1e4!2m2!1m1!1e6!3m1!7e115!4shttps%3A%2F%2Flh5.googleusercontent.com%2Fp%2FAF1QipO7HD8PSw870WbGZtP_o6yEvyOASXhPpmHv0-9a%3Dw213-h160-k-no!5sErmida%20de%20S.%20Bartolomeu%20-%20Pesquisa%20Google&imagekey=!1e10!2sAF1QipM4ET33Vjq5xh0BvJCXVOj9bwSY70kHwdq_07w2&sa=X&ved=2ahUKEwianPjw4vPkAhVeAGMBHWxDAdEQoiowCnoECA0QBg


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

613 - NÃO TE PERDOO ... by Maria Luísa Baião *



Morreste-me. Aceito-o, ou resignei-me, mas não te perdoo. Há muito que o sabias, sabia-lo decerto, o que passaria após a tua morte. Certamente o sabias. Várias vezes esse futuro hoje presente tinha sido aflorado. Sinceramente, como tu, também eu então acreditei partir primeiro. “Ele” não o quis assim e os seus desígnios são inquestionáveis, insondáveis, mas também inaceitáveis para mim, por injustos. Não prevíramos nós o futuro? Não nos precavêramos nós? Não “Lhe” perdoo. Nada disto prevíramos, nada disto acauteláramos. Tu sabia-lo, decerto o sabias. Morreste-me. Essa é a verdade que ainda não aceito, ou aceito, mas com que não me conformo.
Não são os mesmos os dias sem ti. A casa, sempre um brinco, dizem-me agora uma lástima. Não ouço, não me ouvem. Nunca ouvi. Nunca me entenderam. Porquê agora a preocupação com o asseio? A fobia? Chamo-te em silêncio, lembro-te e nem tu, nem aquela blusa azul de que gostavas. Chamo-te e tu nada. Vejo-te lendo à janela e tu nada. Que sujidade? De que falam? Que os preocupa tanto que nada me diz? E olhavas-me nos olhos quando entrava em casa e eu sabia o mundo no lugar e o meu lugar no mundo. E eram dias de paz, foram.
E o teu porte ainda enchia aquela blusa azul de que tanto gostavas, de que tanto gostava. Em silêncio te chamo, te lembro e nem tu nem ninguém para me ouvir. Vejo-te na janela e tu nada. E eu nada, nada me interessa. E aquele sempre a dar-me dores de cabeça, e eu nada. E nem tu nem ninguém na minha vida vazia. E o Xavier animando-me, e eu de candeias às avessas, e ele teimando, o parvo. E tu nada, morreste-me, não te perdoo esta falta de horizontes.
Ajeito as fotografias vezes sem conto. E tu e eu nelas. A vida que foi. Agora nada. Nada me interessa. Tu sabes, eles não. Nada disto prevíramos. Tu sabia-lo, decerto o sabias. Não me conformo. Os “bibelot’s” estão no lugar. As cortinas corridas, o estore a meio como tu gostavas. Não me esqueci. Sempre tive cuidado com isso. Sempre terei. O teu lugar sempre esperando, o frio, o vazio e a cama agora tão larga, tão grande, tão inóspita, tão desagradável. E tu por vezes nela, chamo-te e tu nada, o teu lugar sempre esperando. Frio.

Não vou já ao mercado como fazíamos. Então carregava-mos as compras e tu sempre reprovando o meu passo estugado e a distância que te ia ganhando. São pequenas coisas a que a minha alma se agarra, pequenas coisas que tanto contam agora e me torturam numa tristeza indizível, quase um choro, quase um pranto.
Nada apaga tanto desgosto, tamanha ferida, como se fora fogo. Alojou-se-me no peito e por aqui se demora, batendo numa frequência, num ritmo que me acrescenta o sofrimento e eu, sem olhos já para te chorar, se lágrimas solto deixo-as ir com o vento. Nem tu nem ninguém a criticar-me o passo agora lento, pesado, arrastado, carregando violenta falta de vontade na marcha. Na vida. Em tudo. Em tudo ainda o teu cheiro. Cresta-me sentir-te, senti-lo. E esta tua blusa de que tanto gostavas e que amarrotei cem vezes contra mim. Sinto-te. E tu nada, e o teu odor nela, em tudo.
Tanto tenho lembrado sem nada querer lembrar, se nunca fui assim, um corpo morto em que todas as lembranças se afundaram. Sinto o cansaço de tanto pensar, de tanto te pensar e cada vez mais só me sinto neste mundo imenso a que falta a ordem que em tudo punhas e onde sobra agora uma desordem tal qual ventania sem fim, aridez de forma velada onde, fugazmente, diviso miragens num deserto.
O deserto sou eu, o deserto é aqui. A dor voltando teimosa, a alma ardendo no peito, fogosa, sem que a consiga acalmar. E choro só, para a sós chorar contigo, soluçando, nesta vida de forçado, parada, num desespero de viver, agora que a tua ausência e a morte imperam seja o que Deus quiser, nada mais interessa. Eu sei lá amanhã o que virá, pois se nem sei nem entendo já este mundo girando tão depressa, tão sôfrego, de quê?
Noitinha sonho contigo, mas nem os afagos nem os carinhos, nunca esperei um sonho lindo mas, se tu ouvires o vento, ouvirás o meu amar.
Sinto ter chegado ao fim da vida e, num estranho desejo que jamais senti, sonho por vezes ter morrido. Perdoo-te, perdoa-me. 

                   

* Pesadelo sonhado, by Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, ‎18‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2007, ‏‎pelas 09:41H e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

612 - FIAT LUX DISSE O SENHOR, E FEZ-SE LUZ*

                     
Eu sabia haver ali qualquer coisa que me escapava, qualquer coisa que eu não via, não entendia, mas sentia, quer dizer pressentia. Para mim tudo aquilo era bom demais para ser verdade, quer dizer, ser verdade era, o que eu lhe encontrava era uma certa falta de razoabilidade, quero dizer não tinha a certeza do que via, alguma coisa haveria que eu não estaria a ver.

Finalmente fez-se luz, quero dizer a Tv parecia Deus mal a abri, “Fiat Lux” foi o que me ocorreu ao ver e ouvir o que vi e ouvi, e li, para ser mais exacto, pois se abordo uma questão irrazoável que dei por certa, há que ter cuidado com as contradições, embora todos saibamos que o que há de mais puro e verosímil nesta vida seja “o princípio da incerteza”, que tudo abarca, tudo baliza, em tudo está presente, mesmo se a gente o não pressente.

Na minha rua, e nas outras três que circundam e delimitam o quarteirão onde vivo, que não é um quadrado nem um rectângulo, onde uma das ruas, em semicírculo, curva, curvilínea, circular, lhe arredonda um dos lados, vivem igualmente três outros singulares vizinhos digamos. Singulares quer pelo alarido levantado à mesa do café onde amesendam, quer pelo ar exuberante e apostático com que cada um deles vive a life. O mais gordo, qual arcanjo da beleza alheia, mostra e passeia a madame, que faz questão de trocar todos os doze a dezoito meses, desta vez uma loura espampanante e mamalhuda com uma tatuagem na coxa que a celulite e a gordura deformaram, e de quem o meu amigo Queiroga cada vez que vê, a loira, não a coxa, larga o seguinte desabafo;

- Mas que grande pedaço de mulher !

Como se a loura, ou as louras, ou as mulheres fossem para comer às postas, mas perdoo-lhe e percebo-o melhor desde que nos temos encontrado no talho do Híper ou na peixaria do dito, onde ele, desde as postas de salmão fumado aos lombos de pescada e de bacalhau, e até o lombo de porco, tudo compra às postas, da pescada à corvina e ao robalo. Imagino o que terá penado a D. Ester, que era magrinha e de onde era impossível tirar uma lasca, quanto mais uma posta, imagino o que terá passado antes de o Senhor a ter chamado a Si depois de prolongada anemia.

Mas se um passeia a loura com a regularidade com que a vizinha da frente passeia o caniche, outro deles passeia a “bomba”, como cada um deles e todos lhes chamam sempre. Por “bomba” entenda-se desta feita um daqueles Mercedes baratuchos equipado com um motorzeco Renault. Mas atenção, tal e qual ele mesmo diz, ou grita;

- O que interessa é a estrela pá ! O que conta é a estrelinha ! O que tu tens é invejinha ! 

E realmente assim é, e é vê-lo a cada dezoito ou vinte e quatro meses com uma “bomba” diferente, mas sempre nova, com estrelinha ou sem estrelinha mas sempre de fazer invejinha. Não lhe conheço mulher mas imagino que a trataria de longe muito melhor que o outro trata a loiraça, basta ver os cuidados que tem com as “bombas” que lhe calham em sorte.

O terceiro tem mulher mas não lhe liga, na prática quase fazem vida de separados, não sei se dormem em quartos separados ou não, isso é coisa que quem queira saber o melhor é cerzir uma conversa bem levada e privada com o Menezes da retrosaria “Mina Das Especiarias” o qual sob um falso ar efeminado sabe mais das questões profundas de muitas fêmeas que os próprios maridos. Mas enfim, botões de madrepérola, elásticos para as cuecas nastros e linhas de alinhavar são com ele. Quem está na berlinda agora é este, o Major Faria, aliás esquecera-me de referir que os personagens anteriores também são graduados, um Tenente Coronel e outro Capitão Tenente, e que todos eles deixaram há muito anos a messe de sargentos tendo frequentado nas últimas décadas, com pingalim ou sem pingalim mas sempre com garbo a messe de oficiais, aqui na terra funcionando num antigo convento, o convento de Nossa Senhora da Graça, pertencente à antiga ordem de S. Agostinho e restaurado, lugar em que as madames podem mostrar os decotes e os vestidos e onde ainda, talvez em bailaricos de que nem tenho conhecimento as filhotas debutem. A nós é que tudo acaba debitado claro, como sempre e dentro da tradição.


Mas a pancada do Major Faria, ainda assim o mais novo e mais magro deles todos, são as motas e os passeios nas ditas, coisa que a D. Estrelinha não deve apreciar já que nunca a vi em cima de uma, mas que o Menezes certamente inveja pois por mais que uma vez no café o topei;

- Então senhor Major onde vai ser desta vez o passeiozinho ?

E seja o passeio onde seja, demore os dias que demorar, o Menezes acaba por afivelar sempre o mesmo sorrisinho maroto, como se lhe fosse na alma uma satisfação interior e uma plenitude de glória e paz capaz de fazer inveja a muitos mortais. Como a malta sabe, dos cortinados e entrefolhos da D. Estrelinha tratará ele, e das saias claro, das saias das camilhas.

Quando os três eram mais novos, Setembro era o mês das conversas estafadas e dos relatos das férias e das aventuras nas residências de praia para oficiais. Agora velhos e aposentados, um passeia a mulheraça, outro exibe as bombas e o Major Faria troca de mota todos os anos entretendo-se no intervalo a polir-lhe os cromados. Nunca ninguém os viu fazer nada na vida nem da vida, foi preciso o Correio da Manhã vir à baila esta quinta-feira com notícia esclarecedora;

 “Militares Perdem Crédito Da Defesa” que é como quem diz acabou-se o crédito para os militares com base nos dinheiros do Orçamento de Estado, para ser franco nem sabia que os militares tinham um CrédiBom !

Bendito país, nem Salazar criara tanta excepção, tanta isenção, tanto beneficio, tanto privilégio, tanta diferença, tanta divisão, tanta iniquidade... E que a malta saiba os paladinos do 25A nunca se queixaram dos favorecimentos. Este país não merecia um, merecia três novos Salazares ! Três ! Os portugueses têm o que merecem, nem todos claro, pois paga o justo pelo pecador, ainda assim é graças ao 25A, que podemos falar e escrever o que queremos e onde queremos. E serve-nos de muito... Falar e escrever sem que ninguém nos ligue, é o custo desta "liberdade" que nos impingem !

O problema está no privilégio que exemplifica, nos favores de classe concedidos, nos perdões abafados, nos favores feitos e pagos... Com dinheiro do orçamento, portanto com dinheiro nosso. Porque não vão os militares ao banco como toda a gente ? E já agora que estamos com a mão na massa e falando de cozinha porque têm messes e criados à disposição ? Porque têm residências e residenciais de férias melhores que certos hotéis ? Porque não temos nós disso, nós povo, se até pagamos a conta ? Não estou a ver o Ministério a actuar contra o senhor Major ou o senhor Tenente Coronel ou o senhor General em caso de incumprimento, só Deus sabe quantos casos desses aconteceram e quantos foram abafados... Não estou a ver o Ministério a executar-lhes hipotecas, a metê-los na rua e a ficar-lhes com as casas para vender ao desbarato, como tem sido feito à populaça e semeando milhares de dramas pelo país fora... Ser militar não pode isentar de pensar com a cabeça, nem desobrigar de estar do lado da razão. Na situação do país os militares têm privilégios de que se deveriam envergonhar, mas afinal o mau não era Salazar ?

As coisas que nós desconhecemos ! Afinal meio país tem "rabos-de-palha"… Este país é um portento para quem saiba viver sem nada fazer, finalmente fez-se luz, sou eu, quero dizer somos nós todos quem paga as mulheres do Tenente Coronel, as bombas do Capitão Tenente, e as motas do Major Faria. Tudo mui lenta e justamente conquistado à custa de paciência, tempo, diuturnidades e promoções. Nada interessa que quem os ouça falar trema com os palavrões, as asneiras, as incorrecções, as demonstrações da mais elementar ignorância, de falta de conhecimento, de cultura, de saber, de entendimento e de bom senso. Ainda bem que não estamos em guerra.

Vou mas é ver se apanho uma posta, dou uma dentadinha ou uma voltinha, afinal tudo aquilo é meu. Tenho que dar uma palmada amigável nas costas do Menezes e elogiá-lo. Merece... 



                                                    
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quarta-feira, 7 de agosto de 2019

611 - ALGUÉM MAIS O VIU ? PASSEM PALAVRA



Eu caminhava na frente como deve caminhar todo o homem que se preza sobretudo quem deva dar o exemplo. Fui por isso o primeiro a vê-lo, vi-o mas calei-me bem caladinho esperando que a coluna o visse, ou pelo menos alguém naquela fila de pobres diabos famintos, sedentos e cansados serpenteando p’la savana desse o alarme.

Vi-o e ao vê-lo todos os meus sentidos ficaram alerta, arrebitei as orelhas e foquei os olhos ao longe em varredura. Como um radar varre os céus eu varria a picada, o horizonte, o capim baixo, as escassas árvores e alguns afloramentos rochosos dispostos à direita e à esquerda do rumo que palmilhávamos.

É difícil imaginar quanto uma coisa tão pequena mexeu connosco, nos sobressaltou e colocou em sentido, melhor, em estado de sentinela alerta. Como difícil é imaginar quão tal coisa nos pode dizer apesar de tão diminuta mas a verdade é que disse e muito, porém só fala se a interrogarmos, se nos interrogarmos. Quem porfia mata caça, e se tal é verdade o inverso também o é, quem não porfia é caçado.

Cem metros adiante estaquei, a coluna estacou atrás de mim e só então alguns acordaram do torpor que seis horas de marcha tinham incutido nos homens, neles e nelas, tendo havido quem pensasse irmos parar ali, descansar, limpar as armas, até o sol ir já bem alto e o perigo de desidratação elevar-se com ele.

Fiz um sinal e toda a coluna se agachou curiosa e repentinamente desperta, rostos tensos, olhos bem abertos, um joelho no chão, o dedo no gatilho. Não, aquele sinal não fora para descansar, bem pelo contrário e a pulsação acelerou em todos, alguns escorrendo suor pela testa, patilhas, cara, pescoço e p'la coluna vertebral causando arrepios nos homens, suor frio não incomoda, enerva, convoca o medo, deixa todos tensos, os nervos uma catapulta pronta a soltar a energia armazenada, dentes rangendo, mais que uma vez mordi a língua.

- Alguém mais o viu ? Passem palavra baixinho.

e a minha pergunta percorreu num sussurro toda a coluna como um boomerang, três minutos depois chegava a resposta, Rosa, a penúltima da fileira vira-o mas não julgara ter a importância que eu parecia atribuir-lhe,

- Vêm todos a dormir ? Querem ficar deitados aqui eternamente ?

praguejei entre os dentes enquanto a outro sinal a coluna abandonou a formação em fila e, rastejando ou agachados, silenciosamente  adoptaram uma postura em linha, uma linha curva em meia-lua que melhor nos protegesse  alargasse a amplitude do espaço por nós abarcado e sob observação pois nunca era demais prevenir uma emboscada ao invés de a remediar.

 E tu Rosa ? Viste-o e calaste-te ? Nada disseste, vinhas a dormir na forma ? Vinham todos dormindo na forma ?

e depois destas palavras agrestes formulei uma crítica geral que aliviasse a pressão sobre Rosa, afinal todos se tinham calado e nem sequer o tinham visto, num registo marcial cochichei de modo a que fosse bem ouvido:

- Será que querem ficar dormindo aqui para sempre ? Será que querem deixar este lugar marcado com uma cruz por cada um ? E quem as colocará ? Esquecem estarmos em campo aberto e que não o terem visto poderia ter feito com que estivéssemos já todos despachados ?  

E logo de seguida para agradar a Rosa, uma negra que estimava, me estimava e nos estimávamos sempre que possível naquele ambiente de inferno e loucura em que os dias se repetiam e as noites nos assustavam. Virei-me para ela e:

- Rosa tu que o viste poderás dizer sobre ele alguma coisa ? Que nos poderá ele dizer ?

Eu não perdia uma oportunidade para treinar e consciencializar os meus homens, nem me limitava à cartilha teórica, saía com eles para o mato, encabeçava e levava a cabo as operações mais díspares, sobretudo nunca abandonava a postura exemplar nem o lugar da frente mal a coluna se punha em marcha numa longa fila indiana.

- Então Rosa ? Um leão comeu-te a língua ?

- Nã, nã nada disso. Bem, era preto, pousava descontração na beira do carreiro ali sobre a erva nem tocando o chão, nã estava todo queimado ainda, parecia se deitara havia tempo nenhum, eu dizer que um outro alguém distraidamente ali o deixara no caminhar e que não anda longe de nós esse alguém.

- Muito bem Rosa, e já que foste a única a vê-lo volta atrás e vai buscá-lo para lhe arrancarmos tudo o que pudermos, ele ainda tem muito para contar, vai sem receio, nós cobrimos-te.

No regresso Rosa encontrou-nos em círculo, uma sentinela em cada extremo do diâmetro dessa circunferência, embora atentos ao que se passasse em redor não perdiam pitada do nosso instrutivo debate e, mal Rosa mo entregou fi-lo passar de mão em mão para ser bem observado por todos e p'ra que entendessem como arrancar-lhe preciosas informações.

Sabia-se ser preto, ter sido encontrado deitado na erva sem tocar o chão, só perdera a cabeça tendo o resto incólume o que garantia a sua idade e tempo de exposição, seria novo e estaria ali há bem pouco tempo.

- Nõ ser dos nossos, nossa gente não é assim, não usa. Balbuciou Nhuma.

- Nã ser nã, e de quem será pertença, quem saber de quem ser o descuidado ?

- Não temos a carteira mas foi arrancado de uma, é preto, de papel e cera, não está deformado pelo sol nem sujo pelo chão portanto terá poucas horas de queimado. Quem o acendeu atirou-o descuidadamente fora e agora está a cantar e a contar-nos o que sabe. E que mais poderá ele contar-nos Hermenegildo ?

- Bem meu tenente, como o senhor sempre diz não passa tudo de suposições mas é o que temos e por vezes essas suposições tornam-se grandes verdades por isso afirmo que esse matéria é usado pelo sul-africanos, será pois natural não andarem longe, passaram por aqui é sabido, está aí a prova.

- Muito bem, passaram por aqui e já agora, avançavam para lá ou para cá nesta mesma picada em que nos encontramos ? Pergunta para o Xavier.

- Tenente, se ele estava à direita eles avançarem no nosso sentido, estando à esquerda eles avançarem em contrário a nós, daí estarem avançados ou esperando nós, eles se encontrarem um par de horas ou duas no nossa frente. Nós ter que nos cuidar de má surpresas.

.- Correctíssimo, tens razão mas, e se quem o atirou fora fosse canhoto ou o tivessem ali deixado propositadamente para nos ludibriar ?

- Sendo canhoto ficaria no esquerda, meu tenente tá me baralhando, haver pouco canhoto, mais certo ter sido destro, há mais destros e menos canhotos por tal é mais acertado confiar no direita e eu fico no meu dito, eles estar na nossa frente nos esperando e o mais stá para se ver creditem.

- Muito bem, bom raciocínio, resumamos, fosforo recente, preto, de papel e cera como o pessoal do exército sul-africano costuma usar, caminharão no mesmo sentido que nós, estarão ou não na nossa frente, esperando-nos ou não, as probabilidades apontam para isso, portanto é mantermos os olhos bem abertos, caminharemos em meia-lua e nem um pio quero ouvir.

Não desejávamos ser apanhados em campo aberto nem pelo sol erguendo-se bem depressa e bem quente. Caminhámos para alcançar a mata dispersa assinalada no mapa, ideal para descansar, dormir e efectuar a manutenção do armamento até a noite cair pois caminhar na noite castigar-nos-ia menos, a orla do Calaári era um inferno. Faltando somente duas a três milhas para atingir a mata assinalada e mantendo a formação em linha por ser mais indicada como defensiva, percorremos contudo esse percurso descrevendo um largo arco de modo a quando entrássemos na mata tivéssemos o sol por trás dando-nos uma vantagem nada despicienda já que a haver encandeamento caíria sobre o inimigo.

Agimos bem, mal nos aproximámos da beira da mata fomos baptizados com fogo cerrado, havia quem não nos quisesse deixar sair de campo aberto mas a nossa estratégia fora bem delineada, a um sinal meu os homens abriram mais o leque em meia-lua e à vez entraram na mata. Antes disso tinham fixado os pontos de origem do fogo do inimigo e, conhecendo as posições dos seus atiradores, embrenhámo-nos na mata. O nosso leque enfrentou galhardamente a situação ripostando contra esse inimigo que nos esperava emboscado cercando-o e fustigando-o com metódica e calculada precisão, porém havia que poupar munições pois o tiroteio poderia vir a tornar-se demorado até alguém poder cantar vitória.

Eu recomendara um cerco deixando-lhes aberta uma saída na retaguarda, uma escapatória, nada pior que um animal enjaulado e essa medida pode ter ditado a nossa sorte. Menos de uma hora antes de anoitecer dois enormes helicópteros do SAA aproximaram-se, um fazendo fogo de barragem sobre nós enquanto um outro se ouvia descendo para recolher o pessoal e talvez mortos e feridos. Abrigámo-nos da metralha vinda do céu o melhor possível e, depois deles partirem vasculhámos a zona. Pelos rastos visíveis abalaram com seis ou sete feridos ou mortos pois algum armamento fora abandonado na urgência da retirada.

Nós contabilizámos quatro feridos ligeiros um de maior gravidade, o homem do rádio, rádio que contudo lhe salvou a vida. O rádio ficara desfeito mas o ombro do nosso homem mantinha-se inteiro, apenas uma boa ferida pouco maior que uma mão aberta. Houve até quem brincasse com isso, “não há dúvida que o rádio salva vidas” e àquela salvara-a, o problema doravante era se sem ele salvaríamos as nossas. Em dois dias alcançámos a nossa base, a tempo do homem do rádio evitar uma gangrena pois a ferida, nunca medicada, estava ficando uma lástima.

E ainda há quem diga que a vida não vale um fósforo. Aquele salvou-nos a todos de cair num grande buraco …

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