quarta-feira, 2 de outubro de 2019

615 - GOZAR COM O DESESPERO, by Luísa Baião...


O Diogo Lemos é um daqueles amigos que o infortúnio forja, não estranho por isso que me inclua praticamente entre o número dos seus familiares, quando o não sou.

Devia correr o ano de 75 ou 76, e sendo eu estagiária de Fisioterapia no Hospital do Rêgo, ou Curry Cabral, calhou-me em sorte o Diogo Lemos, rapagão bem feito e bem formado, um tudo nada mais velho que eu, e igualmente noivo. Quase havia sucumbido num desastre de moto, um despiste, um flash, e a coluna de suporte do “rail” protector decepara-lhe uma perna bem acima do joelho. Talvez hoje não a tivesse perdido, mas naquele tempo a ciência era outra e ainda insuficiente para os milagres actuais.

Certo é que quer eu quer o Diogo, ambos demasiado jovens para as agruras que a vida nos atira para cima dos ombros, ficámos bons amigos e vemo-nos muitas das vezes que vou a Lisboa, onde reside, ou ele vem a Évora, geralmente para um bom almoço alentejano, igualmente em família.

Eu, é sabido, só tive um filho, o Diogo em contrapartida tem uma equipa de futebol de cinco, todos bronzeados e tão lindos como a Cesária, uma cabo-verdiana enfermeira no Santa Maria, com quem por um acaso tardio acabou por casar, depois da falta da perna lhe ter quebrado o noivado, muitos namoros e enganos.

O Diogo é hoje uma pessoa normal, aliás, para além da falta da perna, sempre o foi, mas hoje, galhardo, é um cinquentão direito que conserva ainda o porte atlético de antanho. Isto porque durante muitos anos o Diogo não conseguiu suportar uma prótese e se arrastou de canadianas umas vezes, em cadeira de rodas outras. Por este motivo o Diogo só utilizava o sapato ou bota do pé esquerdo, tendo-lhe ao longo de anos sobrado o par direito, que ele, numa atitude de indiferença perante o azar, guardou apesar de saber não poder utilizar.
Da última vez que em casa dele estive foi dia de festa, direito, já com uma prótese, essa perna nova dobrando e tudo, livre de canadianas e cadeiras de rodas, contente com uma aleatória mas simultânea promoção que lhe coubera em sorte, o Diogo era Prof. de Matemática, colocado longe e depois tornou-se técnico de informática numa empresa de Lisboa, sendo hoje especialista em sistemas de informação, vingou-se, e bem, dos anos em que se arrastara nas suas limitações e equívocos.

Fora à dispensa buscar todos os pares de botas e sapatos direitos que lhe haviam sobrado, enchera-os de terra, e neles plantara as mais lindas flores que alguma vez vi enfeitando uma varanda. E havia para todos os gostos, malmequeres brotando de caneleiras alentejanas, camélias sustentadas por delicado sapato de cerimónia envernizado, manjericos sobrepondo-se e tapando mesmo um lindo mocassim castanho de pala, não faltando uma árvore “Bom-Sai” cuidadosa e conscientemente aparada a partir de uma colorida galocha de borracha.

A varanda era já pequena para tanto aparato, e todo aquele calçado exigia-lhe imenso tempo, a regar, a aparar, a proteger do sol, a evitar que lhe não faltasse, a atar os sapatos que por vezes se desatavam, dar-lhes graxa, enfim, cuidar da vidinha como o Diogo costuma dizer.

Fiquei como é óbvio e numa primeira reacção estupefacta com tão curiosa quanto macabra floreira, todavia, atendendo ao espírito cultivado pelo Diogo, que sempre gozou com a adversidade não se deixando por ela envolver ou vitimar, acabei por entender os seus propósitos e o seu jardim, jardim de que aliás toda a família cuida e à volta do qual parece girar a vida dela, família feliz, corajosa, trabalhadora e empreendedora, que faz, como vêem, um manguito aos desaires. Claro que numa segunda reacção me solidarizei e compreendi perfeitamente o porquê daquela aparente aberração.

O Diogo e a família visitaram-me no fim-de-semana passado,* hoje sou a feliz possuidora de um lindo par de botins de borracha, pintados a preceito, donde sobressaem, garbosos e prometedores os rebentos de inesquecíveis bolbos de tulipa. Chorei abraçada ao Diogo.


* by Maria Luísa Baião, escrito num domingo, ‎4‎ de ‎Dezembro‎ de ‎2005, ‏‎pelas 22:34h e provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.