Morreste-me.
Aceito-o, ou resignei-me, mas não te perdoo. Há muito que o sabias, sabia-lo
decerto, o que passaria após a tua morte. Certamente o sabias. Várias vezes
esse futuro hoje presente tinha sido aflorado. Sinceramente, como tu, também eu
então acreditei partir primeiro. “Ele” não o quis assim e os seus desígnios são
inquestionáveis, insondáveis, mas também inaceitáveis para mim, por injustos.
Não prevíramos nós o futuro? Não nos precavêramos nós? Não “Lhe” perdoo. Nada
disto prevíramos, nada disto acauteláramos. Tu sabia-lo, decerto o sabias.
Morreste-me. Essa é a verdade que ainda não aceito, ou aceito, mas com que não
me conformo.
Não
são os mesmos os dias sem ti. A casa, sempre um brinco, dizem-me agora uma
lástima. Não ouço, não me ouvem. Nunca ouvi. Nunca me entenderam. Porquê agora
a preocupação com o asseio? A fobia ? Chamo-te em silêncio, lembro-te e nem tu,
nem aquela blusa azul de que gostavas. Chamo-te e tu nada. Vejo-te lendo à
janela e tu nada. Que sujidade ? De que falam ? Que os preocupa tanto que nada me
diz ? E olhavas-me nos olhos quando entrava em casa e eu sabia o mundo no lugar
e o meu lugar no mundo. E eram dias de paz, foram.
E o
teu porte ainda enchia aquela blusa azul de que tanto gostavas, de que tanto
gostava. Em silêncio te chamo, te lembro e nem tu nem ninguém para me ouvir.
Vejo-te na janela e tu nada. E eu nada, nada me interessa. E aquele sempre a
dar-me dores de cabeça, e eu nada. E nem tu nem ninguém na minha vida vazia. E
o Xavier animando-me, e eu de candeias às avessas, e ele teimando, o parvo. E
tu nada, morreste-me, não te perdoo esta falta de horizontes.
Ajeito
as fotografias vezes sem conto. E tu e eu nelas. A vida que foi. Agora nada.
Nada me interessa. Tu sabes, eles não. Nada disto prevíramos. Tu sabia-lo,
decerto o sabias. Não me conformo. Os “bibelot’s” estão no lugar. As cortinas
corridas, o estore a meio como tu gostavas. Não me esqueci. Sempre tive cuidado
com isso. Sempre terei. O teu lugar sempre esperando, o frio, o vazio e a cama
agora tão larga, tão grande, tão inóspita, tão desagradável. E tu por vezes
nela, chamo-te e tu nada, o teu lugar sempre esperando. Frio.
Não
vou já ao mercado como fazíamos. Então carregava-mos as compras e tu sempre reprovando
o meu passo estugado e a distância que te ia ganhando. São pequenas coisas a
que a minha alma se agarra, pequenas coisas que tanto contam agora e me
torturam numa tristeza indizível, quase um choro, quase um pranto.
Nada
apaga tanto desgosto, tamanha ferida, como se fora fogo. Alojou-se-me no peito
e por aqui se demora, batendo numa frequência, num ritmo que me acrescenta o
sofrimento e eu, sem olhos já para te chorar, se lágrimas solto deixo-as ir com
o vento. Nem tu nem ninguém a criticar-me o passo agora lento, pesado,
arrastado, carregando violenta falta de vontade na marcha. Na vida. Em tudo. Em tudo ainda o teu
cheiro. Cresta-me sentir-te, senti-lo. E esta tua blusa de que tanto gostavas e
que amarrotei cem vezes contra mim. Sinto-te. E tu nada, e o teu odor nela, em
tudo.
Tanto
tenho lembrado sem nada querer lembrar, se nunca fui assim, um corpo morto em
que todas as lembranças se afundaram. Sinto o cansaço de tanto pensar, de tanto
te pensar e cada vez mais só me sinto neste mundo imenso a que falta a ordem
que em tudo punhas e onde sobra agora uma desordem tal qual ventania sem fim,
aridez de forma velada onde, fugazmente, diviso miragens num deserto.
O
deserto sou eu, o deserto é aqui. A dor voltando teimosa, a alma ardendo no
peito, fogosa, sem que a consiga acalmar. E choro só, para a sós chorar
contigo, soluçando, nesta vida de forçado, parada, num desespero de viver,
agora que a tua ausência e a morte imperam seja o que Deus quiser, nada mais
interessa. Eu sei lá amanhã o que virá, pois se nem sei nem entendo já este
mundo girando tão depressa, tão sôfrego, de quê ?
Noitinha
sonho contigo, mas nem os afagos nem os carinhos, nunca esperei um sonho lindo
mas, se tu ouvires o vento, ouvirás o meu amar.
Sinto
ter chegado ao fim da vida e, num estranho desejo que jamais senti, sonho por
vezes ter morrido. Perdoo-te, perdoa-me.
* Pesadelo sonhado, by Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, 18 de Janeiro de 2007, pelas 09:41H
e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de
Mulher.