sexta-feira, 27 de setembro de 2019

613 - NÃO TE PERDOO ... by Maria Luísa Baião *



Morreste-me. Aceito-o, ou resignei-me, mas não te perdoo. Há muito que o sabias, sabia-lo decerto, o que passaria após a tua morte. Certamente o sabias. Várias vezes esse futuro hoje presente tinha sido aflorado. Sinceramente, como tu, também eu então acreditei partir primeiro. “Ele” não o quis assim e os seus desígnios são inquestionáveis, insondáveis, mas também inaceitáveis para mim, por injustos. Não prevíramos nós o futuro? Não nos precavêramos nós? Não “Lhe” perdoo. Nada disto prevíramos, nada disto acauteláramos. Tu sabia-lo, decerto o sabias. Morreste-me. Essa é a verdade que ainda não aceito, ou aceito, mas com que não me conformo.
Não são os mesmos os dias sem ti. A casa, sempre um brinco, dizem-me agora uma lástima. Não ouço, não me ouvem. Nunca ouvi. Nunca me entenderam. Porquê agora a preocupação com o asseio? A fobia? Chamo-te em silêncio, lembro-te e nem tu, nem aquela blusa azul de que gostavas. Chamo-te e tu nada. Vejo-te lendo à janela e tu nada. Que sujidade? De que falam? Que os preocupa tanto que nada me diz? E olhavas-me nos olhos quando entrava em casa e eu sabia o mundo no lugar e o meu lugar no mundo. E eram dias de paz, foram.
E o teu porte ainda enchia aquela blusa azul de que tanto gostavas, de que tanto gostava. Em silêncio te chamo, te lembro e nem tu nem ninguém para me ouvir. Vejo-te na janela e tu nada. E eu nada, nada me interessa. E aquele sempre a dar-me dores de cabeça, e eu nada. E nem tu nem ninguém na minha vida vazia. E o Xavier animando-me, e eu de candeias às avessas, e ele teimando, o parvo. E tu nada, morreste-me, não te perdoo esta falta de horizontes.
Ajeito as fotografias vezes sem conto. E tu e eu nelas. A vida que foi. Agora nada. Nada me interessa. Tu sabes, eles não. Nada disto prevíramos. Tu sabia-lo, decerto o sabias. Não me conformo. Os “bibelot’s” estão no lugar. As cortinas corridas, o estore a meio como tu gostavas. Não me esqueci. Sempre tive cuidado com isso. Sempre terei. O teu lugar sempre esperando, o frio, o vazio e a cama agora tão larga, tão grande, tão inóspita, tão desagradável. E tu por vezes nela, chamo-te e tu nada, o teu lugar sempre esperando. Frio.

Não vou já ao mercado como fazíamos. Então carregava-mos as compras e tu sempre reprovando o meu passo estugado e a distância que te ia ganhando. São pequenas coisas a que a minha alma se agarra, pequenas coisas que tanto contam agora e me torturam numa tristeza indizível, quase um choro, quase um pranto.
Nada apaga tanto desgosto, tamanha ferida, como se fora fogo. Alojou-se-me no peito e por aqui se demora, batendo numa frequência, num ritmo que me acrescenta o sofrimento e eu, sem olhos já para te chorar, se lágrimas solto deixo-as ir com o vento. Nem tu nem ninguém a criticar-me o passo agora lento, pesado, arrastado, carregando violenta falta de vontade na marcha. Na vida. Em tudo. Em tudo ainda o teu cheiro. Cresta-me sentir-te, senti-lo. E esta tua blusa de que tanto gostavas e que amarrotei cem vezes contra mim. Sinto-te. E tu nada, e o teu odor nela, em tudo.
Tanto tenho lembrado sem nada querer lembrar, se nunca fui assim, um corpo morto em que todas as lembranças se afundaram. Sinto o cansaço de tanto pensar, de tanto te pensar e cada vez mais só me sinto neste mundo imenso a que falta a ordem que em tudo punhas e onde sobra agora uma desordem tal qual ventania sem fim, aridez de forma velada onde, fugazmente, diviso miragens num deserto.
O deserto sou eu, o deserto é aqui. A dor voltando teimosa, a alma ardendo no peito, fogosa, sem que a consiga acalmar. E choro só, para a sós chorar contigo, soluçando, nesta vida de forçado, parada, num desespero de viver, agora que a tua ausência e a morte imperam seja o que Deus quiser, nada mais interessa. Eu sei lá amanhã o que virá, pois se nem sei nem entendo já este mundo girando tão depressa, tão sôfrego, de quê?
Noitinha sonho contigo, mas nem os afagos nem os carinhos, nunca esperei um sonho lindo mas, se tu ouvires o vento, ouvirás o meu amar.
Sinto ter chegado ao fim da vida e, num estranho desejo que jamais senti, sonho por vezes ter morrido. Perdoo-te, perdoa-me. 

                   

* Pesadelo sonhado, by Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, ‎18‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2007, ‏‎pelas 09:41H e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.