sábado, 28 de setembro de 2019

614 - A PINCELADA, by Maria Luísa Baião * .............


Amo esta cidade que é nossa, e ainda que passe a vida a apontar-lhe defeitos, tal não significa que a ame menos. Pelo contrário, se defeitos lhe aponto é porque me dói no coração o que dela têm feito, ou melhor, o que por ela não tem sido feito.
Sou boa observadora pelo que pouco me escapa, um buraco aberto há demasiado tempo por tapar, uma fachada por cuidar ou caiar. Por exemplo, os “Meninos da Graça”, que ao invés de hercúlea pose de granito, toda a graça perderam cobertos que estão de ervas, fungos e líquenes, cuja acção, se o tempo ajudar, minará a pedra e suas fissuras ou junções.
A quem se arroga quase que o direito de paternidade sobre o nosso património monumental, não fica bem este tipo de exemplo, uma coisa é a pátine natural da pedra, outra que ela patine em ervas por falta de mão amiga que a proteja.
Não viajo muito, mas viajo o suficiente para me aperceber que a nossa cidade merece mais, muito mais, e que em relação a outras cidades de muito menor gabarito, está há muito ultrapassada, o que me custa.
Adoro a Porta de Aviz (ou Avis) e aquela parte da muralha que dela partindo, se estende para os campus universitário e do Seminário, toda ajardinada e normalmente bem cuidada. No lado fronteiro, e em rampa que termina nos domínios de uma velha igreja em derrocada ** (nunca percebi porque ninguém a recuperou), passei muito do meu tempo de menina e moça, pois era esse um dos meus lugares de encontro e de namoro.
Sentados, quando não deitados nesses relvados, eu e meu marido construíamos há trinta anos castelos de sonhos, castelos que viemos a erguer nuns casos, castelos que ficaram por edificar noutros, já que à imaginação e ao sonho tudo é permitido, menos tornear a dura realidade da vida.
É que a Porta de Aviz tem algo de mágico e profano, de espiritual e de sagrado. Em 1525 viria a ser sobrepujada pela Ermida da Sr.ª do Ó, de quem sou devota e em virtude da visita da Rainha D. Catarina de Áustria. Apesar de construída no Séc. XV, com materiais da antiga muralha Romano-Goda, a Porta de Aviz sobreviveu à ruína dos anos de oitocentos, quando os muros esventrados dessa mesma muralha serviram de pedreira aos construtores civis de então.
Ermida de S. Bartolomeu
Lugar de eleição, lugar predilecto, mesmo depois de casada ali passaria muitos dos meus tempos livres em alegre fruição, ou conjecturando projectos, carreiras, opções. E quando a vida me obrigava a escolher, quando essa vida obrigava à reflexão, era ali a céu aberto o meu, nosso, lugar de recolhimento, de retiro.

Porta de Aviz, era assim como que uma porta aberta ao devir, ao céu, que só o presente permanente e engarrafado trânsito me roubaram ou fecharam. Como disse um dia Pope; “é a brutalidade do destino” *** e queira o destino que a rotunda da Porta de Aviz venha um dia a ter uma escultura, já agora preferencialmente de artista eborense, animando as frescas noites de verão e os que por ali sonham, olhando as estrelas, como eu o fiz, menina e moça.
Pois na semana passada os meus olhos luziram de alegria. Ao passar na dita rotunda dei de caras com uma pincelada digna de mestre na ditosa Porta de Aviz. Não sei se alma bondosa preparando o Stº António ou a edilidade num rebate de consciência, o certo é que foi retocada, pintada ou caiada com desvelo, nulouvor.
Imaginem agora se toda a nossa cidade fosse, tivesse sido tratada igualmente com tal desvelo, com tal cuidado, com tal carinho. Será que quem governa a cidade nunca se sentou ali à Porta de Aviz, na relva fresca, sonhando o quanto pudemos fazer por Évora? Será por nunca se abandonar o acanhado espaço dos gabinetes que a imaginação não brota? Experimentem e verão que não lhes faltarão nem motivos nem projectos para esta terra. Por mim faço-vos uma confidência, tenho projectos de vida, gizados ali mesmo há trinta anos, esperando o tempo e a hora de se concretizarem, uns envolvendo netos, outros passeios à Lapónia olhando o sol da meia-noite em trenós puxados por renas, outros, outros, outros... Tantos sei lá, só sei que o sítio é mágico e nos dá vida e alento para muitos anos.
Bem-haja quem deu na Porta de Aviz aquelas pinceladas milagrosas, quem tratou o meu cantinho. E para que saibam, nunca eu para ali fugi buscando esquecer este mundo, mas antes nele encontrar respostas, p'ra com ele me encontrar, com ele e comigo mesma.
                                          



* by Maria Luísa Baião, escrito a 4‎ de ‎Junho‎ de ‎2001, ‏pelas ‎17:31h e provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.
** Ermida de S. Bartolomeu: ver links
  1. http://www4.cm-evora.pt/pt/conteudos/areas+tematicas/Cultura/Curiosidades+Hist%C3%B3ricas+-+Ermida+S.+Bartolomeu.htm                                                                         
  2. https://www.google.com/maps/uv?hl=pt-PT&pb=!1s0xd19e4e6dabbdc93%3A0x941fab28cdf573ca!2m22!2m2!1i80!2i80!3m1!2i20!16m16!1b1!2m2!1m1!1e1!2m2!1m1!1e3!2m2!1m1!1e5!2m2!1m1!1e4!2m2!1m1!1e6!3m1!7e115!4shttps%3A%2F%2Flh5.googleusercontent.com%2Fp%2FAF1QipO7HD8PSw870WbGZtP_o6yEvyOASXhPpmHv0-9a%3Dw213-h160-k-no!5sErmida%20de%20S.%20Bartolomeu%20-%20Pesquisa%20Google&imagekey=!1e10!2sAF1QipM4ET33Vjq5xh0BvJCXVOj9bwSY70kHwdq_07w2&sa=X&ved=2ahUKEwianPjw4vPkAhVeAGMBHWxDAdEQoiowCnoECA0QBg