Amo
esta cidade que é nossa, e ainda que passe a vida a apontar-lhe defeitos, tal não
significa que a ame menos. Pelo contrário, se defeitos lhe aponto é porque me
dói no coração o que dela têm feito, ou melhor, o que por ela não tem sido
feito.
Sou
boa observadora pelo que pouco me escapa, um buraco aberto há demasiado tempo
por tapar, uma fachada por cuidar ou caiar. Por exemplo, os “Meninos da Graça”,
que ao invés de hercúlea pose de granito, toda a graça perderam cobertos que
estão de ervas, fungos e líquenes, cuja acção, se o tempo ajudar, minará a
pedra e suas fissuras ou junções.
A
quem se arroga quase que o direito de paternidade sobre o nosso património
monumental, não fica bem este tipo de exemplo, uma coisa é a pátine natural da
pedra, outra que ela patine em ervas por falta de mão amiga que a proteja.
Não
viajo muito, mas viajo o suficiente para me aperceber que a nossa cidade merece
mais, muito mais, e que em relação a outras cidades de muito menor gabarito,
está há muito ultrapassada, o que me custa.
Adoro
a Porta de Aviz (ou Avis) e aquela parte da muralha que dela partindo, se
estende para os campus universitário e do Seminário, toda ajardinada e
normalmente bem cuidada. No lado fronteiro, e em rampa que termina nos domínios
de uma velha igreja em derrocada ** (nunca percebi porque ninguém a recuperou),
passei muito do meu tempo de menina e moça, pois era esse um dos meus lugares de
encontro e de namoro.
Sentados,
quando não deitados nesses relvados, eu e meu marido construíamos há trinta
anos castelos de sonhos, castelos que viemos a erguer nuns casos, castelos que
ficaram por edificar noutros, já que à imaginação e ao sonho tudo é permitido,
menos tornear a dura realidade da vida.
É
que a Porta de Aviz tem algo de mágico e profano, de espiritual e de sagrado. Em
1525 viria a ser sobrepujada pela Ermida da Sr.ª do Ó, de quem sou devota e em
virtude da visita da Rainha D. Catarina de Áustria. Apesar de construída no
Séc. XV, com materiais da antiga muralha Romano-Goda, a Porta de Aviz sobreviveu
à ruína dos anos de oitocentos, quando os muros esventrados dessa mesma muralha
serviram de pedreira aos construtores civis de então.
Ermida de S. Bartolomeu |
Lugar
de eleição, lugar predilecto, mesmo depois de casada ali passaria muitos dos
meus tempos livres em alegre fruição, ou conjecturando projectos, carreiras,
opções. E quando a vida me obrigava a escolher, quando essa vida obrigava à
reflexão, era ali a céu aberto o meu, nosso, lugar de recolhimento, de retiro.
Porta de Aviz, era assim como que uma porta aberta ao devir, ao céu, que só o
presente permanente e engarrafado trânsito me roubaram ou fecharam. Como disse
um dia Pope; “é a brutalidade do destino” *** e queira o destino que a rotunda da Porta de Aviz venha um dia a ter uma
escultura, já agora preferencialmente de artista eborense, animando as frescas
noites de verão e os que por ali sonham, olhando as estrelas, como eu o fiz,
menina e moça.
Pois
na semana passada os meus olhos luziram de alegria. Ao passar na dita rotunda
dei de caras com uma pincelada digna de mestre na ditosa Porta de Aviz. Não sei
se alma bondosa preparando o Stº António ou a edilidade num rebate de
consciência, o certo é que foi retocada, pintada ou caiada com desvelo, nulouvor.
Imaginem
agora se toda a nossa cidade fosse, tivesse sido tratada igualmente com tal
desvelo, com tal cuidado, com tal carinho. Será que quem governa a cidade nunca
se sentou ali à Porta de Aviz, na relva fresca, sonhando o quanto pudemos fazer
por Évora? Será por nunca se abandonar o acanhado espaço dos gabinetes que a
imaginação não brota? Experimentem e verão que não lhes faltarão nem motivos
nem projectos para esta terra. Por mim faço-vos uma confidência, tenho
projectos de vida, gizados ali mesmo há trinta anos, esperando o tempo e a hora
de se concretizarem, uns envolvendo netos, outros passeios à Lapónia olhando o
sol da meia-noite em trenós puxados por renas, outros, outros, outros... Tantos
sei lá, só sei que o sítio é mágico e nos dá vida e alento para muitos anos.
Bem-haja
quem deu na Porta de Aviz aquelas pinceladas milagrosas, quem tratou o meu
cantinho. E para que saibam, nunca eu para ali fugi buscando esquecer este mundo, mas antes nele encontrar respostas, p'ra com ele me encontrar, com ele e comigo mesma.
*
by Maria Luísa Baião, escrito a 4 de Junho de 2001,
pelas 17:31h e provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota
de Mulher.
**
Ermida de S. Bartolomeu: ver links
- - http://www4.cm-evora.pt/pt/conteudos/areas+tematicas/Cultura/Curiosidades+Hist%C3%B3ricas+-+Ermida+S.+Bartolomeu.htm
- - https://www.google.com/maps/uv?hl=pt-PT&pb=!1s0xd19e4e6dabbdc93%3A0x941fab28cdf573ca!2m22!2m2!1i80!2i80!3m1!2i20!16m16!1b1!2m2!1m1!1e1!2m2!1m1!1e3!2m2!1m1!1e5!2m2!1m1!1e4!2m2!1m1!1e6!3m1!7e115!4shttps%3A%2F%2Flh5.googleusercontent.com%2Fp%2FAF1QipO7HD8PSw870WbGZtP_o6yEvyOASXhPpmHv0-9a%3Dw213-h160-k-no!5sErmida%20de%20S.%20Bartolomeu%20-%20Pesquisa%20Google&imagekey=!1e10!2sAF1QipM4ET33Vjq5xh0BvJCXVOj9bwSY70kHwdq_07w2&sa=X&ved=2ahUKEwianPjw4vPkAhVeAGMBHWxDAdEQoiowCnoECA0QBg