quinta-feira, 3 de outubro de 2019

617- A RONDA ESTÁ PRISIONEIRA by Luísa Baião*



Em boa hora me chegou às mãos um convite, que agradeço, para assistir a um dos dois concertos que a “Ronda dos Quatro Caminhos” deu no Garcia de Resende. Com pergaminhos firmados, e uma história de dezoito anos de carreira, a “Ronda” não deve nada a ninguém. Maturidade é coisa que lhe não falta e a sonoridade ganhou efectivamente a frescura, irreverência e simplicidade que só os mestres sabem harmoniosamente conjugar.

Como eles comungo da opinião que cultura popular e tradicionalismo são características identitárias do nosso povo, em especial e se, como o fazem, essa cultura é fruto de árduo trabalho de pesquisa e investigação, que muito devemos a Artur Santos, Giacometti e Lopes-Graça, o que aliás modestamente admitem no catálogo dos espectáculos. A modéstia só lhes fica bem, sobretudo se alicerça trabalhos de qualidade que nada perdem, pelo contrário só têm a ganhar com o valor acrescentado de reputações sólida e arduamente firmadas.

Ao contrário de muita música “Pimba”, de que no final deram um exemplo tão irónico quanto mordaz, a cultura popular nada deve ao populismo consumista, tão vazio de tradição quanto de significado e que infelizmente tanta aceitação tem entre grande parte da população portuguesa, de memória por preencher e sentido por perceber.

A inclusão no espectáculo da colaboração dos “Cantares de Évora”, “Coral de Évora” e do coro infantil e juvenil do “ Eborae Música”, convidados, deu não só aos temas como a esses grupos uma riqueza inesperada, como que um colorido inabitual que em actuações isoladas desses mesmos agrupamentos não é normalmente conseguida.

Se apreensões manifestou a “Ronda” antes do espectáculo, e tal é visível no texto do catálogo, sosseguem pois, já que talento lhes sobrou na interpretação das intimidades com que nos brindaram. Por mim só fico à espera do reencontro, ou para mitigar saudades, do CD a editar. Até lá festa, pão e vinho, que se não hão-de acabar, como não se acabarão as noites quentes e namoradeiras deste nosso Alentejo.

Está prisioneira a “Ronda”, prisioneira de um compromisso que assumiu para com o nosso povo e que hoje faz parte da sua ementa musical. A culpa será tanto dela quanto nossa, dela porque prometeu, não desiludiu nem deixou de cumprir, nossa porque consideraríamos uma afronta aos nossos hábitos educados e às nossas expectativas, não gozar do som e da palavra a que nos habituou e cujo futuro deixa antever potencialidades que de modo nenhum desejamos traídas.

Um só caminho portanto lhes fica aberto, o de continuarem a pensar que a cultura popular e a música tradicional são parte de nós e não no-la podem subtrair sem azo a crime de lesa património. A nós cabe cumprir solidariamente no respeito por um trabalho que nos é dedicado e que preserva tradições dessa língua mãe que muitos ingratos filhos por vezes olvidam.

Lamenta-se a “Ronda” que as duas últimas gerações votaram ao ostracismo a nossa cultura popular e as nossas tradições, não lamentem, é passageiro. Preocupadas que estão na voracidade do consumismo e facilitismo a que têm sido acostumadas, não têm tempo para parar e pensar, preferem a música vazia de conteúdos, como preferem hambúrgueres  dispensando mastigação enquanto sonham estar vivendo a “americam life”.

Tanta cultura alheia ingerindo, sem digerir, nem tempo têm para pensar, nem querem perdê-lo fazendo-o. Aguardemos que cresçam, que amadureçam, e quando o emprego faltar, a renda da casa assustar e o carro não puderem comprar, tomarão a pose do “Pensador”, de Rodim, e interrogar-se-ão porque mudou o mundo, antes de reconhecerem serem eles que estão a mudar.

Promova a “Ronda” os seus espectáculos nos grandes espaços que as cervejeiras dominam, e que hordas de não pensantes preenchem, extasiados com o trip fenomenal do extasy, dê-lhes ritmo e toneladas de decibéis, e verá se a juventude aparece ou não. Claro que os espectáculos perderão o carácter intimista e cúmplice com que agora os desfrutamos, e não creio que seja isso que a “Ronda” procura, nem ela nem nós, seus espectadores fiéis e comparsas de uma atitude que durante os seus dezoito anos de vida não apagou a chama de que se alimenta.

Nota alta para um momento do espectáculo em que foi declamado um poema para intelectuais, sátira contundente a alguma da nossa realidade. Parabéns nos Vossos dezoito anos e obrigado.

           


*   by Maria Luísa Baião, escrito no dia 25 / Novembro / 2000 e publicado depois no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.