segunda-feira, 2 de março de 2020

636 - ALVO ... VÉRTICE ... PONTO ... MOUCHE ...



ALVO VÉRTICE PONTO MOUCHE


Tu em pé, altiva e hirta,
eu de joelhos, abraçado a ti,
mirando-te,
olhando-te de baixo para cima,
admirando-te as colunas de Hércules,
o olho de Ciclope,
o olhar trespassando-te,
o desejo latente,
ante ti eu, um lactente sedento,
olhando o Paraíso, a maçã,
o fruto apetecido e eu,
de novo eu, sempre eu.


Homem amadurecido,
sucumbindo à tentação,
ao fruto proibido, trepando,
 p’las marmóreas colunas acima,
agora abertas,
agora convidativas,
dando passagem a minha nau,
acolhendo o meu rumo,
e eu sedento,
e tu o sumo.

E além,
o Farol de Alexandria
assinalando a noite,
marcando o ritmo, o dia,
policiando as águas agitadas
como dois lençóis em desalinho,
e entre sedas e linho,
o cálice ! o cálice !
quero-o !
a cicuta, a cicuta,
a mim !
anseio matar esta sede,
este desejo, fantasia, ambição,
sonho, melodia, delírio.

Tremem as colunas de Hércules
ante meu gatinhar sôfrego e,
de tão fortes oscilam sob tensão,
tangem, vibram como cordas,
viola, violina, violão,
fado, destino,
vibrando hesitantes,
dissonantes,
cunha cravada entre querer e não querer,
entre o dar e o haver,
saldo, preço, conta, sacrifício,
razão e emoção, quem vence ?

O coração,
que tacteias com a mão e
abres como pétalas em flor c’os dedos teus,
e o néctar, o néctar, agora meu,
e tu, e eu, e nós,
e em minhas faces o mármore gelado
das colunas quentes,
ardentes,
a cicuta bebida num trago,
avidamente,
o Farol no máximo.

A luz omnipotente,
as estrelas, só estrelas,
tudo estrelas,
as colunas fechando-se e
o meu abraço cingindo-as,
enlaçando-te,
e tu, qual Ciclope,
tacteando-me os cabelos,
puxando-me, empurrando-me
contra ti.

O olho do Ciclope dado,
dando-se, 
abrindo-se, extasiado,
surpreendido, estupefacto, e
finalmente fechando-se,
sossegando, dormindo,
e eu
num abraço arrebanho contra mim o mar,
Mediterrâneo, Atlântico,
velando as tuas águas,
o teu descanso até
ver em meu redor mar chão,
ouvir o canto das sereias,
divisar ao longe o galeão.

Onde
dessedentados partiremos
rumando um novo rumo,
construindo um novo mundo,
redescobrindo arquipélagos,
enseadas, portos, abrigos,
e de novo o amor,
o mesmo outrora tão temido,
ora perdido, ora encontrado,
agora o passadiço,
passado é passado,
subimos ambos,
devagar,
tu à direita eu à esquerda,
a espada balançando na cintura,
o galeão ondulando na maré,
o espartilho,
corpete dando-te forma,
um camarote real,
baldaquino,
dossel,
o amor, o amor,
o galeão avançando,
navegando,
balançando como um carrossel…


NOTA : ….. O corpo humano, no todo ou em parte, pode ser visto sob vários prismas, desde os mais objectivos até àqueles altamente subjectivos.

A verdade é que eles existem, os prismas, desde o mais baixo, o alarve, popular ou pornográfico, no geral ofensivo, existindo a contrabalançar o prisma estético, ligada ao belo, à beleza, à pintura, à escultura, ao desenho ou à fotografia. 

Já o nobre prisma ou a nobre perspectiva ética defendem que o corpo humano é para respeitar e não é para vender, violentar ou violar por exemplo. Na perspectiva artística defende-se desde há milhares de anos que (em especial o corpo feminino) o corpo seja alvo de admiração se estimado, trabalhado, mente sã em corpo são, admiração que está na origem dos cânones clássicos inda hoje mui considerados.

Naturalmente não esquecemos a perspectiva médica, o corpo é um sistema de órgãos muitíssimo complexo. Mais complexo que um automóvel, um avião ou um computador, e deveras muitíssimo mais sensível e melindroso. 

Isto para não falar das perspectivas ou abordagens mais subjectivas que a literatura lhe dedica, em prosa ou poesia, geralmente duma beleza ímpar, e que infelizmente não estão ao alcance de toda a gente por razões compreensíveis.………………………..



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

635 - NOVAS AMIGAS, NOVOS AMIGOS, AMIGOS CHEGAdos, AMIZADES DE ONTEM E DE HOJE ...



Sempre tive felizmente muitas e variadas amizades. É bom cultivar a diversidade, aprende-se mais e ouvem-se algumas verdades sobre nós mesmos, o que é fulcral para um são e harmonioso desenvolvimento físico, psíquico, intelectual e social.

Tenho amizades aos magotes, à esquerda e à direita, acima ou em baixo, e jamais as suas crenças ou doutrinas me incomodaram. Em maior ou menor grau todas são igualmente amizades, sem diferenciação. Mais íntimas ou afastadas, são contudo amizades, são compatriotas, alentejanos, conterrâneos, colegas, parceiros, camaradas. Enfim, amigos e amigas, cada um deles diferente dos demais, e de mim, imaginem a sensaboria se todos fossemos iguais.

Têm ou cabem-lhes diferentes papéis na sociedade, profissionais, sociais, políticos, contudo são gente como eu. Pensamos o mesmo acerca de alguns assuntos embora possamos divergir quanto às soluções para os resolver, ou partilhamos idênticas soluções para problemas cujo caminho até elas traçamos diferentemente. No fundo todos julgamos estar a pensar da melhor forma e a agir em conformidade, isto é, com as melhores intenções e soluções.

O que nos diferencia então que nos coloca em divergência ou, como agora soa dizer-se, em rota de colisão ? Nada mais nada menos que a assumpção, não a Assunção, prima directa do Gouveia. São coisas dessas como a asssumpção e a coerência, a tolerância, o civismo, o partidarismo, o sectarismo, o amiguismo, o seguidismo e a cegueira que nos diferenciam.

Perdi meia dúzia de velhas amizades nos últimos tempos, em contrapartida ganhei centenas delas, facto que aqui e agora aproveito para efusivamente saudar, se é que não o fiz já. Por vezes vêm diariamente aos molhos, e honestamente não consigo ter uma palavra em particular para cada um deles. Um generoso abraço para cada novo amigo (a) então.

São gente diversa, diferente, díspar quanto ao lugar de origem, são porém gente que se sente irmanada por um mesmo ideal, uma mesma crença em que acreditamos e, sobretudo numa nova esperança que partilhamos e a quem nem as minhas muitas qualidades e os ainda mais e maiores defeitos inibem. São compreensivos e tolerantes, são sobretudo democratas ainda que o seu grito de Ipiranga tenha sido e continue sendo apelidado de populismo.

E é aqui que eu queria chegar, não temos que ser todos iguais ou partilhar o mesmo credo para sermos amigos, pois se assim fosse, credo ! as nossas vidas haviam de ser uma autêntica monotonia !

O que os tais amigos (as) que as costas me viraram demonstraram foi o quanto são tolerantes, quão são democratas, quanto civismo os habita, ou até onde chega a sua peculiar compreensão ou visão do mundo onde se movem. Não me admira agora que ano após ano vejam o seu mundinho encolher, quem semeia ventos colhe tempestades, quem com ferro mata com ferro morre. São os únicos culpados do seu próprio suicídio, fecham-se quando deviam abrir-se ao mundo e converter os incréus, não enxotá-los, afastá-los, marginalizá-los. Atrever-me-ia até a dizer ostracizá-los.

Nós, aqueles que acreditamos e partilhamos um mesmo ideal somos populistas, dizem eles, os outros, esquecendo-se que engrossamos dia a dia um partido nado e criado no seio das regras democráticas e com tanto direito à vida como quaisquer outros. Esses mesmos que nada dizem há décadas sobre as práticas demagógicas e os partidos demagogos que nos conduziram à insustentável situação actual. Já nem as estradas nos pertencem, todavia sobre isso nunca lhes ouvi um queixume. CHEGA.

Entendo-os, em parte entendo-os, são gente sem visão, gente incapaz de enfrentar uma amargura, uma derrota, um desaire, mas são sobretudo gente que não se conforma com o sucesso dos outros, e isso é simplesmente doentio, a médio e longo prazo mata. Lamento. 


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

634 - SIM SÉRGIO ! ! ! EU VEJO AS ESTRELAS ! ! ! by Maria Luísa Baião **


Um homem* pintou estrelas no firmamento, deu asas ao vento, libertou o pensamento. O mesmo homem tornou um valor o fermento de novas ideias, foi cultor de novos desenvolvimentos conceptuais, desenhador de diagonais, escultor de catedrais e hoje… animador de jogos florais.

Tal homem, tais homens, impulsionam vendavais e, nos nossos quintais, inspiram arraiais, mobilizam no pensamento forças tais, que nem cem, mil Carnavais igualam. Cavalgam o nosso agir, asseguram o porvir, assinalam o devir, são faróis, são sóis.

Temos há cem anos um farol, um novo modo de pensar, o "pensar ideativo", um cata-sol, um altar, um mar por explorar, uma protecção a este calcanhar de Aquiles do nosso egoísmo, do nosso individualismo, esse tumor ablativo a expurgar. Esse homem assumiu-se crítico, fez-se criativo, tornou-se racional, e não um animal como nos querem… não desesperem, de hostes populares virou general.

Claríssimo, exigiu que se reflectisse, na claridade se apostasse, no rigor se teimasse, e da reflexão crítica religião se fizesse. Porquê dirão ? Por que se opôs a Antero ? Nem só mero esmero, antes por ter ousado contrariar-lhe o pensamento instintivo, irracional, lhe ter passado a não razão num crivo e, em nome dessa razão ter afirmado que, a lado nenhum se vai de mãos dadas c'a vaidade, ou com a emotividade. Temos de aprender a aprender, como aprendemos que o caminho se faz caminhando. Havemos do ousar fazer um hábito e, trilhando novas ideias, mover o mundo, avançar, por nós e pelos vindouros agora, e por enquanto os nossos tesouros.

Tornaremos a criatividade uma praxis, transformaremos tradições, faremos da passagem da idealidade para a realidade cerne das nossas ambições. Fantasiar sim, tanto quanto possível, mas com os pés assentes no chão, filosofar sim, mas concretizar a ambição sonhada, problematizar ? Por que não ? Mas actuar e nunca esmorecer, pois as boas ideias resistem ao tempo e à corrosão, resistirão, sempre. Tudo isto devemos saber e, continuar, alimentar um espírito fecundo, apesar das críticas e sobretudo dos louvores, e, nunca por nunca muito menos juntas ir ao fundo neste mundo que nos compete criar.

O homem esse foi exemplo, foi um racionalista militante num mundo que não era fácil e então muito mais lento. Hoje move-se como sempre se moveu, só que é outro o tempo, mais rápido, mais sofrido, menos crente, mais ateu. Quem sou eu ? Que neste cantinho nasci, menina e moça me tornei, aqui cresci, meditei, sofri e deambulei. Me fiz mulher me fiz mãe, me impus um querer, e medrei.

Passei passas dos infernos, praguejei contra os Invernos, nasci com a vida torta em casa de estreita porta, valeu-me uma alma rebelde, uma vontade indomável de endireitar esta vara cuja alma Deus alara. Roguei pragas, rezei preces, sarei chagas. Lambi as benesses do meu ser exangue, sou hoje o resto do que paguei em sangue, em suor, em lágrimas de dor.

Passei uma estreita porta que alguém me quisera impor como fluído em retorta, sublimei e, desdenhando, caminho altiva sem receio que em meu redor qualquer actor minimize o papel que com amor desempenhei, qual invectiva defensiva, censor mundano contra labor que abracei com o furor de um marçano jurando morrer gerente e disso fazendo lei.

Sem causar dano, só bem, também luto com primor e contra o mundo me bato, qual pretor que com rigor impõe a si mesmo a grei, e, ao cabo dos trabalhos aqui estou com frescor, levo a vida com humor e creiam-me não será disto que morro. E perguntarão vocês a que propósito hiperbólico vem esta história cismada, pois que se saiba trabalho não significa delito ou enxovalho, ainda que, sabem-no bem não é profecia, por vezes p'ra mais não chega que barrigada de larica.

E não sendo assombradiça ou na magia fiando, revolta-me ser submissa. Resta-me no vaivém da vida esforçar-me por me ir lembrando de quem comigo porfia. Mania minha dirão, fervor de crente alinhavo, pois não será qualquer paspalho que atrás desta minha orelhinha me jogará o cangalho.

Meu amigo é quem me ajuda, quem me acode se sisuda nem me aceita carrancuda, aos outros somente brado caluda ! Só escutarei quem partilhar este meu porto de abrigo, inda que seja um mendigo. Quem foi que manifestou há um século flagrante actualidade de pensamento, quem foi que nos deu pernas para dar o pulo ? Quem foi que nos deu hipótese de negar o patíbulo ? O tormento ? Quem defendeu essa tese ? Quem foi o mandante ? Quem foi o caminhante ? Quem disse e redisse que o caminho se fará caminhando ? O aprender, fazendo ? O querer querendo ? Quem foi que ousou ?

E é tão fácil… basta exercitar continuamente o bom senso, e é tão possível… basta manter a frescura do cérebro, basta fazer… basta moldar esta argila que somos, não deixar secar… é só fazer, é só fazendo que logramos ir aprendendo, e é tão fácil… Quem foi o humanista, pedagogo e politico que se esforçou, quem foi que lutou, quem foi que jamais dividiu o que divisão não permite nem consente, quem foi que bradou ? Quem foi que se impôs ? Quem foi tão explicito, quem foi o artista ? Quem foi que pintou este cenário onde hoje, se o quisermos nos movemos como peixes em aquário ?

Quem plantou as estrelas no céu ? Quem foi que nos deu a esperança ? Quem foi que disse ser possível o pensar autónomo, o pensar por nós mesmas e não como autómato ? Quem foi que disse ? O Sérgio não era desses amigos fascinados c’o umbigo, o Sérgio sim era amigo, amigo de partilhar a sorte do seu baralho. Por isso afirmo e reitero que se todas aqui estamos gozando o mesmo borralho em vez de qualquer atalho a que o fado nos levasse, achasse eu quem com agrado e esmero um bolero lhe cantasse, sem exagero vos diria valer a pena a franquia e dar por bem gasto o dia. 

Sérgio habitava a mestria de quem escalava montanhas c'a destreza das aranhas. Soltou em vida campanhas a que gente de má-fé sempre chamou artimanhas. Certo certo é que as façanhas q'inda hoje se propagam pelas cidades do mundo, são obra vera e fecunda que nos resguarda uma vida, nos preenche segunda a segunda, p'ra vergonha dessa gente a que chamaria imunda. Singelo homem esse Sérgio, só nos pediu ou rogou labor e preocupação c’o desenvolver o intelecto, e nunca nos impôs um tecto pois não foi outro foi ele um dos primeiros a gritar que nem o céu era limite, e que a todas exortou a que aqui e agora e sempre, se imite.

Foi ele o grande humanista pois sempre nos pensou, foi ele que p’la educação e formação de todos nós sempre lutou. Há-de esperar, há-de pensar que sejamos consequentes, colaborantes, cooperantes, convergentes. E é isso que nós somos ? É esse o modo de ser que envergamos, o tal trabalho quotidiano? Pensemo-nos. Lutou pela claridade do pensamento, lutou por dar um fim ao tormento, lutou neste mundo cão e sem tréguas pela nossa liberdade, lutou por reformar o pensamento deste povo, sobretudo dos jovens, por lhes abrir um futuro com léguas, foi por isso que lutou, pela minha, pela sua, pela nossa dignidade.

Che ! Basta olhar à nossa volta ! Che ! Tanta rosa !! Tanta flor que plantou ! CHC ! Como medrou o roseiral ! Quantas de nós se abrigam debaixo desse beiral ? Quantas pessoas de Boa Vontade nesta cidade de Giraldo Sem Pavor ? Céus ! Tanta gente Habitévora ! Meu Deus ! Que clamor ! E não é só um Novo Sol, Deus meu! Quanto amor ! Quantos sóis !

 E tudo porque alguém um dia nos disse "libertai-vos a vós mesmos !" com pedagogia, trabalho estrénuo, pontual objectivo p'ra melhorar condições futuras, o vivermos. Nos colocou alta a fasquia, que evitasse a agonia de tanta gente que sofria e inda sofre, mas atenção ! O segredo não está guardado num cofre ! E, para que a manhã nos sorria, prepararemos o amanhã, lutemos com estas armas por um Portugal melhorado, mudado, inteligente, humanista, progressista, ecologista, solidário sabedor e justo.

Esse homem, esse Sérgio, foi "só" mais um cooperativista, só um, hoje somos milhões ! Paz, dignidade, consideração e devoção à sua alma, e prometamos que poderemos ser tantos quantos falam esta língua de Camões.

Eu posso dizer que sim Sérgio ! ... Eu vejo as estrelas !

                                                                         Lyla  **


** By Maria Luísa Baião, pseudónimo Lyla, texto concorrente ao Concurso de Poesia da Cooperativa CHC Construção e Habitação Cooperativa  ocorrido entre Abril/Maio de 2004 
       
 *    Homenagem a António Sérgio, impulsionador e patrono do movimento cooperativo em Portugal, e que deu nome ao Instituto Cooperativo António Sérgio, actual CASES  - Cooperativa António Sérgio para a Economia Social.   

Habitévora, CHC, Novo Sol, Giraldo Sem Pavor, Boa Vontade, cooperativas de habitação económica, CHEs, do concelho de Évora.                                                                                                       

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

633 - BARRANCOS, CLARO... by Maria Luísa Baião


                                      
 Mesmo em férias, consegui ir sabendo algo do que se passa na nossa terra, e foi em férias, fruindo outros ares, culturas e tradições que tive conhecimento do desfecho do caso de Barrancos. Foi pois longe de Barrancos que verdadeiramente entendi o que estava em causa.

Uns dias bem passados na costa espanhola, gozando dos benefícios da globalização (esquecendo que estava a mais de mil quilómetros de casa, não dava por isso) e tirando vantagens deste vasto mercado, posso assegurar que só os preços e a qualidade dos serviços nos superam. Mais baixos os primeiros, os outros muito acima do que se faz no nosso cantinho. Como diria o José Mário Branco no seu célebre “FMI”, “ ..A produtividade, ora aí está !...”, e eu acrescentaria; a organização, ora aí temos a questão, o planeamento, o urbanismo, o ordenamento territorial, etc., etc., etc.

O Hotel em que estou todas as noites brinda os hóspedes com um diferente programa de animação cultural, uma destas noites, durante uma sessão de bailado flamenco, os dançarinos levaram-me a compreender melhor este povo, cheio de vida e iniciativa, e por analogia os nossos barranquenhos.

Os espanhóis têm orgulho em sê-lo, são um povo com razões pelas quais lutam e se afirmam perante a homogeneidade cultural que a globalização força. Nós, à excepção dos barranquenhos, nunca nos afirmámos em coisa nenhuma, e tenho as minhas dúvidas que o nosso patriotismo ainda valha alguma coisa para muitas (os) de nós. Percebi-o quando um par de dançarinos adejava em torno um do outro numa representação dançada de sedução e conquista, tal como no mundo animal se vê.

Elas, brilhando de cores, folhos e lantejoulas, atraem o macho com um bailado rítmico, algo erótico, em que a beleza do corpo, o movimento e as formas que toma, se oferecem numa recusa negada. Os machos adoram este fulgor, cortejam e volteiam como borboletas em redor de intensa luz, exprimem, ou expressam o seu garbo, para terminarem rendidos, de joelho, frente a frente.

O homem das cavernas, que dizem caçador porque em murais desenhava caçadas de animais, não está longe do pistoleiro americano que colocava uma marca na coronha do revólver cada vez que abatia outro homem em duelo. Os pilotos da I e da II guerras mundiais, pintavam nos seus aviões os símbolos de inimigos abatidos.

O meu avô, que Deus tem, contava-me em criança histórias de famosos pugilistas. Brecht, sim o Bertol, apreciava tanto quanto o meu avô, como aliás o faziam outros intelectuais da época, essa violência do boxe, não havia então o politicamente incorrecto que hoje amordaça. Ora o meu avô foi sempre uma pessoa de bem, e mais bondoso que um S. Bernardo, nunca o seu gosto pelo violento boxe o alterou. Hoje temos um ministro que foi boxeur e ninguém lhe chama atrasado mental por isso, é criticado por razões bem menos violentas.


Nos nossos dias os americanos orgulham-se da sua multiracialidade, a que agora chamam multiculturalismo, o que não os impede de calar a boca a índios e pretos, à porrada ou a tiro. Os sul-africanos tinham o seu “apartheid”, um orgulho muito próprio, uma coisa só vista..., os brasileiros têm a MPB, música e língua (portuguesa) que levam a todo o mundo, até cá, até a nós. E nós, salvo raras excepções, temos a música pimba e a ambição de possuir de tudo em que no mundo alguém se orgulha, roupas de marca, ténis, relógios, automóveis, talvez se safem os galos de Barcelos e a louça das Caldas da Rainha, pois tudo o resto nos vem de fora, pelo comboio ou pelo paquete, como dizia Eça. Excepções temo-las portanto bem poucas, e sabendo-se que o mundo não evoluiu uniformemente desde as grutas de Lascaux até à confusão com os gémeos in vitro, não compreendo tanta pressa em uniformizar o que não é igual, nunca foi e nunca será.

Tudo tem o seu tempo, Barrancos também o terá, até lá aceito a sua defesa da tradição, da cultura, da individualidade, da diferença. Se nos querem tornar todos iguais, globalmente iguais, comecem pelo que é realmente importante, condições sócio económicas, legislação laboral, direitos cívicos e standards de produtividade e salariais idênticos. Não se prendam com o acessório, que só serve para distrair do essencial. Por que terá que morrer de fome um paquistanês que sua as estopinhas para produzir as raquetes do ténis que nos faz babar no Estoril Open?

Por que se envaidecem os americanos com a conquista da Lua e não podem os barranquenhos orgulhar-se da coragem de enfrentar um touro ? Cada um afirma-se de acordo com o que lhe permite a sua cultura e o tempo em que é vivida. Não vou a touradas, não sou pelos touros de morte, mas ninguém me vê criticando forcados ou toureiros, nem ouvirá. Evoluirão a seu tempo. Uma coisa são barracadas, outra touradas, o nosso parlamento confunde-as e dá-lhes demasiada importância. É o seu modo de se afirmar... (Benidorm,15-7-02)
                             
                           ‎


By Maria Luísa Baião, Benidorm,15-7-02, publicado no Diário do Sul provavelmente a
‎30‎ De ‎Julho‎ de ‎2002.   


domingo, 9 de fevereiro de 2020

632 - CHAMARAM-ME CERTA VEZ EXUBERANTE, by Maria Luísa Baião *



Chamaram-me certa vez exuberante. Talvez porque quando tropeço, mais depressa me endireite que levante, talvez por teimar traçar os meus caminhos. Faça chuva ou faça sol, seja noite seja dia, busco tecer a teia que é a vida de um modo que a luz incida em mim quando percorro até as ruas mais sombrias. Ser feliz é tudo quanto sempre quis e, tornar a vida que em mim vive, apenas e tão só uma alegria.

Pareço por vezes marchar contra a corrente, nunca esqueço porém ser a vida uma espiral elíptica sem quaisquer certezas. O que conta é o percurso. Sei que às noites os dias se sucedem e jamais a vida está parada. Há que saber fluir p’ra que não deixemos meia vida por viver, fluir, iludir a melancolia se e quando nos ameaça ou assobia, e negar penas ou mecenas, pois a vida não tem qualquer infalibilidade no final.

Não pára a vida, continua, qual flor em fraga de rochedo, teimando erguer-se em direcção à luz e, mesmo cega, é bom nunca deixá-la desviar-se duma linha, d’um propósito. Como tantas de nós faremos, como eu, como vós.

Por isso, até p’las brechas do luar me deixo seduzir umas vezes e esgueirar outras, torneando prantos intuídos ou dores escondidas, caladas, mas sempre ameaçando. E distraída mas bem consciente me vou deixando levar, enquanto sonho. Despistando quem teceu esta teia que nos trama, sorrindo à esquerda e à direita, e em minha alma guardando segredos, quais encantos e, na ponta dos pés caminhando vou, conduzindo por esta tortuosa linha que o futuro me traça, por vezes até de viés andando, cumprindo essa incrível linha de vida insinuada na palma da minha mão, carregando-a honradamente.

Do pranto faço canto quando calha, como se o caminho que minha vida traça se encontrasse pejado de alecrim dourado. Viver não pode ser andar perdida, pensando o tempo passado e a velhas histórias atear fogueiras. Viver é iludir canseiras, viver se preciso for do pensamento se o silêncio ameaça ensurdecer-nos. Diluir expandindo-o, o meditar é magia que torna fortes meus percursos, não crer no quase nada se e quando nos parece tudo, dar a volta por cima, puxar um lenço da manga e libertar o aroma do jasmim. 


O futuro não concretiza maus fados se o enfrentarmos e, distraídas, persistentes, cantando a vida levarmos. É um monstro enternecido que se quebra face à força de vontade, ao crer, quando muito queremos e teimamos de cabeça erguida. O destino pode ser um menino de rosadas bochechas se afagado. Domado. Ajudou-me a quebrar tratados e traçar propósitos, e pode levar-nos onde nem imaginamos se e quando portas e janelas à vida escancararmos.

Chamaram-me uma vez exuberante, e eu, contente, devia ter pedido que o dissessem uma e outra vez. Então talvez tivesse enfrentado o que fingi não perceber. E a lua continua, brilhando desperta, espraiando seus cabelos como um manto, p’ra esconder dos dorminhocos o alvoroço, como tambor rufando saindo do coração agitando o ar. Agigantando.

Recordo a infância e já era assim, madura, trocando as palavras com que então jogava e venero ainda como coisa preciosa neste lugar mudo, de enigmas, sofismas, onde se ouvem as botas de tropas marchando, matando e morrendo p’los que vão vencendo.

Erguer-me-ei sempre e, exuberante continuarei acreditando em lendas, crendo em mitos e, com zombaria, farei frente a ídolos, derrubarei a ironia espraiando-se soez e tentando esta alegria que quero estimulada, atenta, nunca possessa, antes vívida, liberta.

E, dia após dia desperto exuberante calcando o deserto que teimam propor-nos, somente se exaurida ou ferida me aquieto no tempo, por bem pouco tempo. Apenas de jóias despojada me verão, mas ver-me-ão sempre como paradisíaco jardim cujas flores, despontando no tempo e no pensamento me tornem árvore, de robusto tronco ou salgueiro flexível atreita a fazer frente a vagas alterosas, alteradas, com que um mar ideologicamente tenebroso todos os dias me, nos fustiga.

Exuberante, triunfante, sinónimos de um crer e de algo querer de modo teimoso, persistente, esfuziante, até que se torne coisa tonitruante, garante de uma vontade, de uma verdade.

Exuberante, eu bem ouvi. De mau grado o disseram pressenti, mas obrigado. Que bem me soube tal saber nesse preciso instante, nesse momento capital. Sejamos modestas, humildes e honestas quando assim é pois as palavras são setas que nos forçam a ficar despertas, vívidas e, sempre, sempre libertas.

* by Maria Luísa Baião – texto inédito, não existe certeza quanto à sua publicação no Diário do Sul, Évora – 04 de Abril de 2003