Chamaram-me certa vez exuberante. Talvez
porque quando tropeço, mais depressa me endireite que levante, talvez por
teimar traçar os meus caminhos. Faça chuva ou faça sol, seja noite seja dia,
busco tecer a teia que é a vida de um modo que a luz incida em mim quando
percorro até as ruas mais sombrias. Ser feliz é tudo quanto sempre quis e,
tornar a vida que em mim vive, apenas e tão só uma alegria.
Pareço por vezes marchar contra a corrente,
nunca esqueço porém ser a vida uma espiral elíptica sem quaisquer certezas. O que
conta é o percurso. Sei que às noites os dias se sucedem e jamais a vida está
parada. Há que saber fluir p’ra que não deixemos meia vida por viver, fluir,
iludir a melancolia se e quando nos ameaça ou assobia, e negar penas ou mecenas,
pois a vida não tem qualquer infalibilidade no final.
Não pára a vida, continua, qual flor em fraga
de rochedo, teimando erguer-se em direcção à luz e, mesmo cega, é bom nunca deixá-la
desviar-se duma linha, d’um propósito. Como tantas de nós faremos, como eu,
como vós.
Por isso, até p’las brechas do luar me deixo
seduzir umas vezes e esgueirar outras, torneando prantos intuídos ou dores escondidas,
caladas, mas sempre ameaçando. E distraída mas bem consciente me vou deixando levar,
enquanto sonho. Despistando quem teceu esta teia que nos trama, sorrindo à esquerda
e à direita, e em minha alma guardando segredos, quais encantos e, na ponta dos
pés caminhando vou, conduzindo por esta tortuosa linha que o futuro me traça,
por vezes até de viés andando, cumprindo essa incrível linha de vida insinuada
na palma da minha mão, carregando-a honradamente.
Do pranto faço canto quando calha, como se o
caminho que minha vida traça se encontrasse pejado de alecrim dourado. Viver
não pode ser andar perdida, pensando o tempo passado e a velhas histórias atear
fogueiras. Viver é iludir canseiras, viver se preciso for do pensamento se o
silêncio ameaça ensurdecer-nos. Diluir expandindo-o, o meditar é magia que torna
fortes meus percursos, não crer no quase nada se e quando nos parece tudo, dar
a volta por cima, puxar um lenço da manga e libertar o aroma do jasmim.
O futuro não concretiza maus fados se o
enfrentarmos e, distraídas, persistentes, cantando a vida levarmos. É um
monstro enternecido que se quebra face à força de vontade, ao crer, quando
muito queremos e teimamos de cabeça erguida. O destino pode ser um menino de
rosadas bochechas se afagado. Domado. Ajudou-me a quebrar tratados e traçar propósitos,
e pode levar-nos onde nem imaginamos se e quando portas e janelas à vida
escancararmos.
Chamaram-me uma vez exuberante, e eu,
contente, devia ter pedido que o dissessem uma e outra vez. Então talvez tivesse
enfrentado o que fingi não perceber. E a lua continua, brilhando desperta,
espraiando seus cabelos como um manto, p’ra esconder dos dorminhocos o
alvoroço, como tambor rufando saindo do coração agitando o ar. Agigantando.
Recordo a infância e já era assim, madura,
trocando as palavras com que então jogava e venero ainda como coisa preciosa
neste lugar mudo, de enigmas, sofismas, onde se ouvem as botas de tropas
marchando, matando e morrendo p’los que vão vencendo.
Erguer-me-ei sempre e, exuberante continuarei
acreditando em lendas, crendo em mitos e, com zombaria, farei frente a ídolos,
derrubarei a ironia espraiando-se soez e tentando esta alegria que quero estimulada,
atenta, nunca possessa, antes vívida, liberta.
E, dia após dia desperto exuberante calcando
o deserto que teimam propor-nos, somente se exaurida ou ferida me aquieto no
tempo, por bem pouco tempo. Apenas de jóias despojada me verão, mas ver-me-ão
sempre como paradisíaco jardim cujas flores, despontando no tempo e no
pensamento me tornem árvore, de robusto tronco ou salgueiro flexível atreita a
fazer frente a vagas alterosas, alteradas, com que um mar ideologicamente
tenebroso todos os dias me, nos fustiga.
Exuberante, triunfante, sinónimos de um crer
e de algo querer de modo teimoso, persistente, esfuziante, até que se torne
coisa tonitruante, garante de uma vontade, de uma verdade.
Exuberante, eu bem ouvi. De mau grado o
disseram pressenti, mas obrigado. Que bem me soube tal saber nesse preciso
instante, nesse momento capital. Sejamos modestas, humildes e honestas quando
assim é pois as palavras são setas que nos forçam a ficar despertas, vívidas e,
sempre, sempre libertas.
* by Maria Luísa Baião – texto
inédito, não existe certeza quanto à sua publicação no Diário do Sul, Évora – 04 de Abril de 2003