domingo, 15 de maio de 2016

346 - CAVALGANDO AS ONDAS ...............................


A noite estivera enluarada e fresca, por isso a malta entretivera-se a largar os fios da amurada do navio pescando lulas e chocos até altas horas, a bem dizer até que arrefeceu demasiado e todos se recolheram aos respectivos beliches. Nem todos, os que estavam de quarto entraram ao serviço para preparar a largada do navio, o “NRP Pereira da Silva” regressara de uma longa viagem pelo Mediterrâneo e aportara aqui com um problema hidráulico no leme, mas o problema estava resolvido.

Eu cirandava por ali, curioso das fainas de cada um, dormira até tarde embalado pela ondulação da rebentação a que nem a amarração fugia e agora do sono nem cheiro. O frio atirou-me para o quente aconchego da sala do radar, na parte superior das obras mortas do navio, o comandante há muito traçara o destino e recomendara o rumo, que os especialistas apontavam na imensa folha de papel vegetal sem fim que o maquinismo ia fazendo correr na mesa, riscando-o nela com lápis dermatográficos pretos, vermelhos e azuis, uma mistura de cor e cera, não fosse o navio naufragar e a água apagar os vestígios das suas manobras. À falta de caixas negras e equipamento digital, lápis e papel à prova de água davam alguma garantia, desde que não afundasse a mais de cem ou duzentos metros, a partir dali chegar-lhe seria já um desafio.

Quando largámos ainda a ténue claridade da manhã fazia dançar nas águas as luzes de Lagos, ia eu pensando nela por já termos passado manhãs na Praia dos Índios, a Meia-Praia. Quando dobrámos a ponta de Sagres o mar mostrou-se encapelado e o rumo foi alterado de norte para noroeste, havia que fazer frente às vagas com a proa e não levar com elas de través no costado o que poderia tombar o navio. Pensava nela porque aquele contratempo não nos iria permitir chegar a meio da tarde a Lisboa, nem talvez ao fim da noite, e o fim-de-semana que há semanas ambicionávamos, esperávamos e combináramos dezenas de vezes iria uma vez mais por água abaixo, já que de água estamos tratando.


Muito antes da ponta de Sagres já nós apontáramos ao largo, lembrei-me então que seiscentos anos antes incipientes caravelas haviam cruzado estas mesmíssimas águas rumo a Alcácer-Quibir, onde estragaram o fim-de-semana, tal como horas depois de apontada a proa às ondas e rumando a noroeste ultrapassámos a linha imaginária nordeste/sudoeste traçada pela coragem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral uns bons anos antes.

Da sala de comando vinha a confirmação das posições que o sextante pingava e os radaristas de serviço anotavam, em relação a elas o equipamento observava varrendo tudo em redor do navio, e que no vegetal da carta era marcado como sendo o centro do mundo, centro marcado por uma luzinha a ele apontando, que o radarista marcava a vermelho, azul ou preto, a partir dali uma mesa mecanográfica calculava azimutes, milhas tragadas, nós galgados, velocidades e posições. Não havia GPS por essa época, nem GPS nem telemóveis nem SMS. Porém para mim o centro do mundo era ela e não aquela sala, a luzinha ou o navio, ou os pingos do sextante, era para ela que o meu rumo e o meu pensamento apontavam, as ondas alterosas só me transtornavam o caminhar, não o destino, sabia-a à minha espera nas Residências da Gulbenkian a Stª Maria, ou, se a deixassem, na Doca da Marinha, onde o navio atracaria. 

Para o adormecer e apaziguar enchi o bucho de azeitonas, salgadas atenuavam as náuseas e o vazio provocado pelos solavancos da embarcação, cuja proa se erguia ao embater frontalmente nas ondas para logo mergulhar a pique no vão criado pelo deslocar delas que num instante levantavam a popa, dando o navio uma queda de vários metros e fazendo-nos sair o estômago pela boca. Era demasiado, a nau poderia até partir-se em duas ao embater desamparada no fundo desse mar cavado, mais parecia um submarino que uma fragata, e as obras vivas, não raro, passavam mais tempo fora que dentro de água, era assustador e tenebroso. O comandante mandara rumar a Sesimbra mal fosse possível, e assim foi. Ali nos resguardámos dos vagalhões e dos abismos do mar, seriam umas onze horas da noite, talvez um pouco mais. 

Alguns de nós fomos a terra numa chalupa, invadimos cafés e restaurantes, todos tinham fome e sede, e a todos custava andar e equilibrar-se, como se o chão firme se movesse. Tentei ligar-lhe mas das Residências não atenderam. Não sabendo quando chegaria comprei num quiosque um postal ilustrado que ali mesmo preenchi e selei, uma cara linda por trás do balcão adivinhou-me o pensamento sorrindo-me maliciosamente.

- Como disse que se chamava menina ? Foi Zéza que disse ? Zézinha ? Bom fim-de-semana Zéza e não se esqueça de meter o postal no correio. Nunca lhe perdoaria !

Beijei o postal, sorri para a Zézinha bonitinha malandrinha marotinha simpatiquinha e pela cumplicidade adivinhada no seu olhar soube que não se esqueceria do meu recomendado pedido. Antes da manhã despertar o mar acalmara tão repentinamente como encapelara e rumámos finalmente a Lisboa e ao Tejo. Deviam ser umas dez ou onze da manhã quando passámos por baixo da Ponte Salazar. Não seria um fim-de-semana totalmente perdido mas, chegar e não chegar, formaturas, dispensas, atravessar o Tejo para a outra margem se atracássemos no Arsenal do Alfeite, antes das três nunca pisaria a Praça do Comércio, apanhar ainda o 32 até à Gulbenkian e jamais lá estaria antes das cinco da tarde, o que significava somente lanche, jantar e talvez uma soirée.

E assim foi, acabámos mão na mão, ombro no ombro, vendo um filme, “O Regimento Vermelho Feminino” * ou qualquer coisa assim, filme icónico e Maoista que era só o que passava no Cinema Universal, ali ao Rego, e onde já víramos “O Couraçado Potemkin” * outro filme de culto, à rua da Beneficência e onde passado o PREC e a euforia dos filmes vermelhos viria a funcionar o “Rock Rendez-Vous“, que tivemos o prazer de inaugurar assistindo ao concerto de Rui Veloso que dali lançaria a figura carismática do Chico Fininho.

Enfim, era uma rua cheia de animação e motivos para tal, onde ainda por cima adorávamos amesendar, quer fosse no “Bem Comer” ou no “Carne Alentejana” que nessa altura eram mais tascas que restaurantes e nem tinham os preços impraticáveis de hoje.

Foi vez única, nunca mais me separei da Luisinha até hoje, curiosamente quarenta anos depois voltei a encontrar a Zéza marotinha, a Zézinha simpatiquinha, bonitinha e malandrinha nada mais nada menos que atrás do balcão dos correios da minha terra, onde é a gerente, e à frente de uma catrefa de filhos, trupe que vai gerindo com parcimónia e harmonia.

Olhámo-nos, talvez demoradamente, eu de carta na mão, ela erguendo o carimbo, e de repente os dois, quase em simultâneo;

- Eu já vi esses olhos !
             - Eu conheço esse sorriso não lembro é de onde !

Quarenta anos passados ... A vida tem cada uma …






terça-feira, 10 de maio de 2016

345 - O PRÉMIO VALMOR ERA EU *…........………



A cena não é fácil pra mim, não que a tenha esquecido, ninguém esquece uma rejeição, ainda por cima coisa única na vida, ainda por cima numa idade tão tenra, ainda hoje não sei como não fiquei traumatizado, revoltado ou mesmo gago. Nem sei que não viu em mim a Quinita Santos para me ter recusado, tal como não sei porque depois disso não dei em incendiário ou bombista ou coisa do género, teria justificação acho eu e Freud decerto explicaria.

A coisa conta-se em poucas penadas, não que me agrade, como disse faço por nem lembrar essa rejeição, por isso nem sei precisar se ela ia no banco detrás ou se entrou na carreira em Montemor, a verdade é que só depois a vi e, não me interessando já nada, nem para nada, esqueci a razão que aduziu para a viagem a Lisboa, a mim, contei-lhe com alguma presunção, tratava-se do abandono desta cidadezinha de província, numa tentativa de encontrar a sorte na capital onde já tinha à minha espera um contrato. Esclareço que com a presunção e vaidade de quem tinha catorze ou quinze anos, no máximo dezasseis.

Arranjara emprego no escritório do Hotel Lys, mais tarde Lis, em plena Avenida da Liberdade, junto aos Restauradores, hotel cujo edifício tinha sido alvo da atribuição do Prémio Valmor, mas mesmo depois de alguns meses de vivência em Lisboa eu não estava elucidado sobre o que era esse prémio, só muito posteriormente vim a saber estar o prémio ligado à arquitectura e não, por exemplo, ao culturismo, que por essa época assolapava a capital e por arrastamento, a mim. Isto devido ao facto das senhoras do chá me chamarem inicialmente por “o nosso alentejano”, ou “o nosso eborense”, e mais tarde cada uma ter tido ensejo de me reclamar como o “seu prémio Valmor”. Toda a minha confusão vinha daí, e demorou tanto tempo a desvanecer-se quanto tinha demorado a instalar-se. A fachada do hotel era linda de estilo, era bonita, porém os funcionários não tinham ordem de entrar ou sair pela porta principal, ordens do senhor Garcia, o gerente velho e rezingão, para nós estava reservada uma entrada de serviço, gente menor, e é possível descortinar nas fotos bem visível à direita do edifício um portãozinho para o pessoal, dando acesso a uma escada exterior afundando até três ou quatro pisos abaixo do nível da rua e onde se situavam os armazéns, a copa, os serviços, as caldeiras, a dispensa dos víveres, que se fosse visitada pela ASAE teria originado um terramoto, e ainda os quartos dos funcionários. O meu quarto situava-se ao lado das caldeiras, quentinho no inverno mas o inferno no verão, até ao dia em que o Éden ou o Tivoli passou uma fita de guerra em que as caldeiras de um navio explodiam sob o impacto de um torpedo aliado e aquela maltinha ficou toda cozidinha. Nunca mais ali dormi.  

Esse insuportável quartito moldou muito do meu estilo de vida em Lisboa, já que tudo fazia para não voltar a ele antes das duas ou três da manhã, altura em que se tornava suportável e a partir da qual conseguia dormir alguma coisa. Depressa magiquei um estratagema, sendo eu quem no escritório controlava a ocupação dos quartos, depois de arranjar nos serviços de limpeza uma chave mestra de que fiz cópia, passei a dormir todas as noites num qualquer quarto vago à minha escolha e que abandonava antes das nove, altura a quem entrava ao serviço e tinha que estar já lavado e comido, a mesma altura em que as funcionárias iniciavam o seu deambular pelo hotel tratando dos quartos que iam vagando. Como eu fui amado, como me amaram lá, como me amavam ! Apesar de grande idiota fui e tenho sido um homem feliz.

Acho que nem chegou a um ano a minha experiência no Hotel Lys, contudo ele e Lisboa viriam a influenciar inclusive alguns dos meus relacionamentos futuros, quer tivesse tido eu neles um papel activo quer esse papel tenha sido meramente passivo, no final o que conta é o saldo, foram relacionamentos que partilhei e vivi, talvez desafiadores, talvez estranhos, de qualquer modo e felizmente sem resultados desastrosos a assinalar (links no final do texto). 

         É que, para me socorrerem ou apoiarem na integração na capital muito se esforçaram as senhoras habitués no salão de chá do Lys, senhoras nessa altura, hoje não lhes chamaria jovens mas senhoras ainda não seriam, era gente à volta dos quarenta, quanto muito cinquenta e com uma pedalada que, não fora a minha frescura e teria custado a acompanhá-las. Uma delas, de entre todas a mais beata e a mais devota tomou-me sob a sua protecção iniciando-me nas noites do “bas fond” alfacinha, onde era rainha e dominadora, a quem acabei por escolher os cabedais, os chicotes, as algemas e outros adereços MILF** enquanto ela me oferecia blusões de cabedal, capacetes com viseira de astronauta, uma novidade na época, coisas que íamos comprar à Butimoto Corba, uma loja para motards ali aos Anjos, na intersecção da rua do Condeça & Ferreira, dealer da Kawasaki, e do Stand Vidal, que vendia motas usadas e novas multimarcas. Eu tinha uma Solex com a qual corria Lisboa em peso e, desde que só mostrasse o blusão, o capacete e as botas à maneira, as miúdas eram um maná. Adoravam o meu look, o cheiro a óleo e a gasolina.

Vem a arenga de hoje responder à Sandra, olhem só do que ela me foi lembrar, Sandra que, já nem sei a que propósito me atirou com um Lys, a que somei uma bocarra provocatória da Zéza, apelidando-me de pinga-amor, a mim, um homem dedicado, com um casamento exemplar e feliz que já leva muito mais de trinta anos. Quem vê caras não vê corações, o mundo é como um carrocel numa feira *** e não pára, nunca pára, umas vezes saltei-lhe para cima outras levei dele encontrões. Não se experimenta incólume um carrocel em andamento, não se mete lá o pé, ou se lhe salta para cima ou se fica vendo-o girar ca de longe. A vida pode ser um chupa-chupa de algodão doce, mas é preciso que nos lambuzemos dela. O poeta disse-o “ Confesso que Vivi”.****

Cabendo-me a mim no escritório os débitos dos clientes, bafejava com ousada condescendência e perdão as contas das amigas do chá das cinco, coisa que elas me retribuíam com mimos e atenções. A desabrida Solex em que corria Lisboa fora oferta de uma delas, e anos mais tarde ter-me dedicado a restaurar uma BSA 250 Gold Star teve muito que ver com o sonho vivido nessa altura, ser boletineiro da Marconi cavalgando essas motas impressionantes distribuindo telegramas por toda a capital, como quem na Feira Popular desafiava a gravidade no poço da morte, calçando umas fenomenais botas de cabedal pelos joelhos…

Essa mota, depois de restaurada e melhor que em nova foi por sua vez posta à venda por mim no Stand Vidal passados alguns anos, a merda das motas inglesas nunca deixaram de babar óleo pela junta da cabeça lixando-me imensos pares de calças caríssimos o que me irritou bastante pois não dispunha de caneleiras até aos joelhos como a malta da Marconi ou a minha amiga D. Senhora Hermínia nas suas sessões de sado masoquismo e MILF das noites quentes e loucas de Lisboa.*****

Verdade que nessa época da minha vida vivi muito, vivi muito e vivi depressa, contudo tive oportunidade de me redimir de todos os excessos e pecados nos anos em que leccionei no Oratório de S. José, Salesianos, gramei dezenas ou centenas de missas diárias logo às primeiras horas de cada manhã, se para outra coisa não serviram ao menos limparam-me a alma.

Desde então não me tenho mantido casto, mas quase.

Capice ?





  
*** https://youtu.be/VEoCAUZSfwA   - Winner of Eurosong in Vienna 1967. Sandie Shaw - Puppet on a String -  em português, " O Amor É Como Um Carrocel "

segunda-feira, 2 de maio de 2016

344 - OBNUBILADOS ..................................................

illustración de Kaethe Butcher

Não era o túnel do Marão, que aliás anda em obras de Stª Engrácia, a terra toda revolvida, mais parece ter caído ali um avião, mas é o túnel que sempre aproveito quando calha estarmos juntos. Entre a cabeça e os ombros, no lugar do pescoço fica um túnel por onde, deslizando nos lençóis de seda, faço sumir o braço que, como um cinto de segurança lhe atravessa e segura o peito num carinho acolhedor e lhe permite acolher-se ou encolher-se na conchinha do meu amplexo.

É complexo este ritual que distendemos no tempo e que se repete, sempre e nunca igual, assim haja oportunidade, pois de motivo nem carecemos. Antes diria padecemos, por nem precisarmos de causa mas instigarmos os sintomas. Enquanto isso o outro braço cabriola de alto a baixo e percorre-lhe o corpo de viola, subindo e descendo vales e morros, detendo-se aqui no estreito da cintura, ou ali, em duas maçãs maduras que lhe dão e completam a formosura, acolá, em atrevida investidura onde, ou como, ou porque é dia da mãe e lhe afago o ventre quente e liso com nada inocente candura e ainda menos juízo.

E, se e quando as caras coladas, febris, onde esta barba rija e dura que não arranha nem perfura arrasta atrito doseado como uma linha de branquinha, o mais certo é deixar um de nós afogueado e o outro em doce loucura. Aperto então o meu abraço, num aconchego de regaço em que ajeitamos a conchinha e, brincando c’o umbigo dela segredo-lhe; querida enfiarei o dedinho até te encontrar o baço. Risota pegada, cócegas, voltas e reviravoltas para, no fim, nos quedarmos na mesma, esfomeados, mais apertados, mais enlouquecidos, mais abraçados que nunca.

Como num tambor, sinto-lhe no baixo-ventre as vibrações das gargalhadas e pressiono-lhe a pele como que querendo ouvir-lhe também o tam tam tam do coração. Regularmente, a mão termina sumindo-se por baixo do elástico e, como cabeleireiro aquilatando os cabelos da cliente, assim a ponta dos meus dedos lhes aprecia a espessura, a densidade, a maciez para, num repente, eu gaiato e a prima Esmeralda sorrindo-me num desafio:

- És capaz de adivinhar onde as mulheres têm o cabelo mais encaracolado Bertinho ?

Era manhosa a Esmeralda e até aos seus dezanove vinte anos a diferença de idades sempre lhe serviu para reinar comigo, para me gozar ou atrapalhar, eram dois ou três anos que lhe davam sobre mim uma maturidade acrescida, porém não passava daí, não era mal-intencionada, era simplesmente manhosa e um tanto ou quanto maliciosa. Claro que acabou por me pegar na mão e, apagando a luz, me conduziu e posteriormente mostrou o lugar onde as mulheres tinham o cabelo mais encaracolado. Estupidamente a mente poluída tinha sido a minha, pelo menos os dela não eram encaracolados, pelo contrário, eram bem lisos, macios e sedosos. Quando abri os olhos já ela, matreira, tinha composto as roupas e espetado diante deles um mapa de África no qual se destacava uma preta de carapinha. 

Esqueçamos a Esmeralda coitada, que já nem está entre nós, a queda de um avião nos alpes franceses há um ano atrás foi-lhe fatal, lembram-se ? Às mãos daquele jovem e louco piloto que se trancara na cabine*. Nem os ossinhos lhe encontraram, nem tão pouco poderemos dizer a terra lhe seja leve, apenas uma bolsinha com os documentos. Não foi caso único, antes assim coitada, nem deu por ela chegar… nem doeu…

E, enquanto eu perdido nos meus pensamentos, ela afogueada, fechando e abrindo as pernas numa aflição que me apressei a serenar-lhe, entalando nelas a mão e acalmando-a com a pressão de um carinho, logo alternando ou aliviando com uma terna caricia mal o respirar tranquilizou e os dois, novamente cúmplices, matando um esfolando o outro e chutando para o fundo da cama tudo que estava a mais ou atrapalhando para, e agora sim, a minha mão na sua nuca, acariciando-lhe os cabelos, os lábios aflorando-lhe a orelha, a face, a boca, o mindinho tacteando, abrindo, entrando e aberto o caminho vão dois, são agora dois, escorregando, deslizando, acariciando, as coxas contraindo-se, apertando-se, sobrepondo-se, os olhos que se fecham, as mentes que se obnubilam, o desejo tomando a dianteira, os corpos que rolam, tu por cima, não não, tu, de repente uma tenaz, umas pernas enlaçando-me enquanto algo sugando-me voraz, faço-me leve, descarrego o peso nos cotovelos, os cabelos que se emaranham, os lábios que se afloram, as línguas que se enrolam e as bocas que se mordem, os pelos que se tocam e nos excitam, o tudo que se quer e que se dá, tudo, todo, toda a aflição, não, não é aflição é precipitação, não, também não é precipitação, é antes uma aflição sem precipitação ou uma precipitação nada aflitiva, é pressa, pressa de chegar donde não se quererá partir antes ficar, fazer durar, prolongar, amo-te, não te mexas amor, não tires, quero ficar assim sempre, beija-me novamente,

Beijooooooooooooooooooooooooooooooooo

Não me acordes…



sábado, 30 de abril de 2016

343 - O LIVRO DA LEOPARDA *................................


Não sei quando foi que me enganei e meti na cabeça que o cacilheiro era aquele, por isso quando me vi nas Berlengas fiquei sem saber quem culpar que não eu. Falara-se em farol e em cadelas e a minha mente divagara para noroeste, onde certa vez para cumprir uma convalescença passara umas férias de sonho com a Carmelinda, o problema deu-se passadas semanas, instáveis como são as mulheres, depois de bem tratado e recebido acabei afastado como um cão, uma cadela a Carmelinda.

Por isso estava na ria quando dei por mim, dormira bem e só acordara a páginas tantas, ainda sonhando com a antiga base de Centro de Aviação Naval do Algarve, com a I Guerra Mundial, com minas, com um tempo que em boa verdade dobrou em mim as razões para duvidar daquela paisagem mas, desde o início nas nuvens, nem me admira ter embalado no engano, não fora Clézio, que me acompanhava perseguindo sem sucesso o cão, ter-me dado uma cotovelada muito provavelmente nem teria acordado do processo em que me enredei.

Não estou em férias, contudo deixei-me levar por esta leitura leve e indolente que me trocou as voltas, terá sido a similitude das capas a dar-me a volta já que me mentalizara e prepara para uma outra obra, para um tour de force, e colocara à mão dicionários e enciclopédias, um passe-vite para diluir e dois passadores para coar e destilar um soluto altamente concentrado, sei lá, como o leite condensado ou o ketchup, ligara mesmo a máquina do café e arrumara a seu lado duas embalagens grandes de capsulas da Delta Q nº 10, e quando afinal puxo as redes, não é que viessem vazias, eu é que estranhei logo a sua lassidão, isso e uma insustentável leveza, preparara-me para as puxar, para me esforçar e no instante quase caí de cu com a reacção à força aplicada e que não teve contraponto.

Não chegou a ser uma desilusão, foi mais uma descompressão, e vindo o dia de sol, sem ventos nem chuviscos, céu limpo, livre de nimbos, cúmulos, cirros e estratos, morador que sou e entalado entre o mosteiro da Cartuxa de Santa Maria de Scala Coeli e o Alto de S. Bento, tendo à minha beira extenso colorido e atapetado florido de ervas e malmequeres, agarrei num extracto bancário acabadinho de chegar, enfiei um boné e um blusão leve a fim de tornear a Torralva e feito cigano atrevi-me a galgar muros e prados até conquistar a Torre do Geraldo na encosta de S. Bento, onde a história dá por degolados pelas tropas de Geraldo Sem Pavor dois sarracenos que estariam de vigia e sonhando com Xerazade correria o ano de 1165.

Não levei comigo cão nem cadela, sei que ao voltar terei esperando-me uma corridinha da Mimi, direitinha a mim de rabo espetado no ar, atrapalhando-me o andar e roçando-se-me nas pernas. Foi precisamente ao regressar e imbuído destes pensamentos que ia sendo colhido por uma das embarcações de Mestre Casaca, traz nas artes da xávega uma dúzia de táxis, ou mais, e ainda o pronto-socorro, que em todo o dia não param, para cá e para lá, andam loucos desde que alguém agitou os mares e Neptuno lhes atiçou a Uber, não há farol aqui mas montou uma altíssima antena para os radiotáxis e que os russos devem conseguir ver da estação espacial.

Caminhei umas boas duas horas, rebolei-me nas ervas, li, ouvi música, noutros tempos teria mandado um charro abaixo, porém agora tenho que manter conduta exemplar ou não me perdoariam. Foi tarde tão descontraída que chegado a casa levava ainda atravessado nos dentes um comprido tronco de palmeira que só larguei para conseguir transpor o portão e farejar tudo com muita atenção,

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
                                                 Mário de Sá-Carneiro

Volto a dar pelo silêncio, um silêncio de que nunca me dera conta mas há mais de duas horas me acompanha. Verdade que descomprimi, é um direito que me assiste, e de vez em quando até sabe bem, distender a mente e os músculos, em especial os músculos, foi o que vi na Leoparda, rastejando entre as flores e as ervas, confundindo-se com a vegetação, descomprimindo, como eu e, em vez de malhar no ferro frio tentando meter a densidade do universo numa coluna de x palavras ou y caracteres que certamente a obrigam a mamar, quero dizer aguentar, respeitar, cumprir, tirou férias e agarrando na cadela foi desarvorar, apanhar ar, tirar vacances, tal qual eu tirei os ténis ao chegar a casa e me estendi no sofá, sofrido das cruzes, um pé descalçando o outro e versa vice. 

Nem demorou que os Reebok caminhassem ao calhas no meio da sala, não tarda irá o boné o polo, e a Leoparda, como será ao chegar a casa ? A música baixinha ? Dedicada à cozinha ? Arrumadinha ?

Era eu uma vez estudante e, não lembro já o porquê, procurei umas colegas num quarto que tinham arrendado no burgo, a Eduarda Branco, a Teresa qualquer coisa e a Dalila não sei quantos uma algarvia do Burgau, eu nem queria acreditar, jamais vira tamanha desarrumação, e tanto sutiã tanta calcinha tanta cueca até debaixo das camas, senti-me ligeiramente deslocado e enfastiado, acabámos o estágio e nunca mais as vi, nunca mais consegui esquecer tal nem deixar de me preocupar com o facto de sim ou não, se já terão lavado aquela roupa suja toda… 

Mas ela não lava roupa p’a descontrair, ela sonha, ela voa, ela plana, abre os braços e lá vai ela, ela e a cadela, tal qual eu, não eu com os Beatles, muito menos com o amaneirado do McCartney, eu é mais com a pesca, com a Micas do Quiosque Primavera, a Célia da Padaria Pão Da Terra, a Serafina das análises, a Cândida da farmácia, a Maria Júlia da pizzaria, a Lourdes da frutaria, ela perdeu a relação ou as relações disse a páginas tantas, pois eu procuro é mantê-las, cultivá-las, ela entrava em campo e chutava, chutava ou fintava e fintava, já eu quando entrava em campo fumava, fumava … Que tomará para sonhar assim ? Lá que descomprime, descomprime, e lá se vai a realidade…


Aliviar é a segunda coisa que mais gosto de fazer, aliviar-me, larguei o passe-vite e os passadores ou coadores, aumentei o volume ao Jorge Nice a fim de abafar por essa via outros ruídos e sentei-me, como que num cadeirão, numa cadeira de baloiço ou num trono e ali me deixei ficar, meditando, nas Berlengas, no farol, nos petiscos do velho Baltazar, a propósito a coisa que mais gosto é comer, comer e meditar, e ali estava eu e a cadela da Carmelinda, sim, primeiro um anjo para mim depois uma autêntica cadela, só faltou morder-me, sei do que as mulheres são capazes quando estão zangadas, temam-lhes as represálias…

Tranquei a página à editora não vá ela querer ferrar-me…

Por isso voltei a sentar-me, p’a descontrair de novo, p’a descontrair mais, e preparei-me para focar a atenção na Grande Golpada, ou na Golpada à Italiana, Um Golpe à Italiana, livro numa mão, comando na outra mas na hora H o CD emperrou e népia, perdi a calma…


Felizmente a Leoparda andava calma, tirara férias, e a sua calma trouxe paz à aldeia que costumava rondar, paz e contenção, é bom fugir à pressão, à compressão dos dias, antes levar com alguns chuviscos no toutiço e aguentar a pressão atmosférica, essa ao menos descomprime, eu descomprimi deste turbilhão que vi, vivi e senti, queria agradecer mas, um velho conselho traz-me de volta ao bom senso, virei bicho cortês, cavalheiro, foi isso, armei-me de bom senso, sensibilidade e bom senso. 

A pressão atmosférica muda-nos, humaniza-nos, atrai os chuviscos, pode até molhar-nos claro, se não corrermos as janelas de caixilho, quanto às pessoas, as pessoas realmente devem ser deixadas em paz…  






quinta-feira, 28 de abril de 2016

342 - O LIVRO DA LEONARDA * ..............................

                                          
           
Era grande a expectativa naquele livrinho, tanto mais que tinha deixado para trás um quid pro quo com a editora, fiel e canina defensora da autora, questões de estética a que a editora faltou com a ética e a quem tive que ludibriar para conseguir um dos exemplares. (1)

Grande era realmente a expectativa, tanto mais que adoro lê-la, tal como adoro cadelas, verdade que por questões práticas tenho uma gata, o que não me impede adorar a canzoada do meu filho. Isto anda tudo ligado, também estive algumas vezes naquela ilha, e nas Berlengas, de convalescença, com a Carmelinda e o velho Baltazar, que era faroleiro e óptimo cozinheiro, já lá vão uns bons quarenta anitos.

Mal compro o jornal a primeira coisa a ler é a Leonarda, como eu e o meu filho tratamos entre nós a Ana Cristina Leonardo, de quem somos leitores fiéis. Adoramos os seus enormes textos e a sua extraordinária clareza e capacidade de análise e síntese, aquilo é cultura, cultura destilada, depurada, poderão portanto aquilatar das minhas expectativas. Nem foi a capa nem o trabalho de handcraft pingando aos poucos uma boa estratégia de marketing, mostrada gota a gota, que me convenceram, aliás tão grande era a expectativa que quando recebi o pacote e o sopesei pensei logo nos meus queridos dezanove euros.

Corri para dentro e abri-o precipitadamente, mesmo assim, saquei-o forçada e desajeitadamente do envelope e fiquei a mirá-lo e a remirá-lo. Deixei que a emoção tomasse conta de mim calmamente e, num repente quebrou-se o feitiço, isto é, deixei de embirrar com aquela capa psicadélica que inicialmente me lembrara a bancada de mestre Paulino, sim, esse mesmo, o dos "pássaros de poeta", sempre abarrotada de tintas entornadas, misturadas, experimentadas, esqueci tudo o resto ao ver-me transportado para os meus doze, treze anos, para o meu primeiro emprego, a SOMEFE, o senhor Nelson guarda livros, os grandes alfarrábios cinzentos do Deve e do Haver que me calhava transportar de lado para lado, a capa de pano, manchada, tal qual esta capa da Leonarda, depois as caixas de arquivo antigas, o mesmo padrão embora mais miudinho, mais tarde sujeito a uma evolução que tornou as caixas e o padrão num amarelo abelha imitando, mal, a pele dos leopardos das neves. 

Na sala ao lado o velho Rosado, digo o senhor Rosado o patrão, frente a ele um militar reformado dos abastecimentos, o Coronel Varela salvo erro, a seu lado um senhor Piteira de modos afectados, amaneirados, e de casaco, sempre o mesmo casaco de espiga, e emparelhando com ele uma ela, havia uma ela que alegrava todo o pessoal do escritório, das oficinas e da fundição, os cabelos louros, um louro pintado, lábios tintos de vermelho vivo, Francisca, acho que era assim que se chamava, D. Francisca, ou D. Maria, sempre pestanejando para o senhor Piteira e revolvendo de ciúmes as entranhas ao senhor Nelson. 

A esta hora decerto quase todos enterrados, e eu para aqui lembrando-os, de livro ao peito, nunca me enganaram, em especial aquela parelha, aqueles dois... 


     
 Leopardo das neves, provavelmente uma fêmea, uma “Leoparda”

E, abraçado ao livro da Leonarda tal qual em menino abraçara os calhamaços da contabilidade corro para a salinha, ainda não o abri e já o amo o raio do livro, o mestre Palolo rindo porque ao debruçar-me sobre o balcão do atendimento pressionara os intestinos e largara um valente traque, mestre Palolo rindo, o Malato rindo, esse não ri mais pois há tempos deu-lhe um badagaio, uma trombose ou coisa assim que o deixou arrumado e já só diz dádá dádi, eu todo vermelho de corado, o senhor Nelson rindo também.

Mestre Palolo que anos mais tarde me convidaria a frequentar os convívios de tertúlias  d’A Trave, onde pontificavam o seu mano, António Palolo, José Cachatra, mestre Paulino Ramos, mestre expressionismo, mestre impressionismo, o senhor abstracto, messier surrealisme, Pássaros de Poeta, Évora, a Urbana, o senhor Amado, as minhas tias, o Sinca Ariane novo, Sesimbra. Finalmente abro-o, exemplar único, fait à la main, procuro-lhe o número, se fosse numerado o meu seria o 1283/72, não é, é o ISBN qualquer coisa, capa dura, cartão, como o cartão das tais velhas caixas de arquivo, papel de primeira, impressão personalizada, dedicatórias e citações em inglês, francês, etrusco e sumério, isto é cultura porra.

 É leve e foi caro mas valeu a pena, handcraft, cosido à la main, à mão, coisa pessoal, não vem assinado mas assinei-o eu, Baião, com um grande rabisco a rematar o ó, agora é meu, pessoal e intransmissível, nem irá para a estante, não tem lombada, perder-se-ia entre os outros troféus, cerimoniosamente irei colocá-lo onde todos o vejam, como bibelô largado descuidadamente no aparador, reparo bem e são mesmo citações de Clézio, Dickinson e Francis Ponge, quanto não vale isso porra ? Quanto ? Digam ! E as Fotos ? 

A falésia, a flora, o farol novo, finalmente dou-me conta do papel vegetal e apalpo-o entre os dedos, os olhos fechados, segurando sem apertar a banha que a mãezinha me mandara buscar à mercearia do senhor Gerardo, na volta correndo atrapalhado para que a banha não tivesse tempo de derreter, o papel, grosso como este, opaco ou transparente dependendo da gordura impregnando-o. 

Anos mais tarde o professor Silva, os transferidores, compassos e tira-linhas, os meus dedos pretos da tinta da china, a folha de papel vegetal impecável, sem um borrão, círculos, circunferências, revoluções, rectângulos, cones, todos os sólidos desenhados com primor, limpo uma lágrima, depois uma cascata delas, vou lê-lo às escondidas, só para mim, só eu…

Por este turbilhão que vi, vivi e senti queria agradecer mas, folheio-o e dou com um conselho que me traz de volta ao bom senso, realmente as pessoas devem ser deixadas em paz….