A noite
estivera enluarada e fresca, por isso a malta entretivera-se a largar os fios
da amurada do navio pescando lulas e chocos até altas horas, a bem dizer
até que arrefeceu demasiado e todos se recolheram aos respectivos beliches. Nem
todos, os que estavam de quarto entraram ao serviço para preparar a largada do
navio, o “NRP Pereira da Silva” regressara de uma longa viagem pelo Mediterrâneo
e aportara aqui com um problema hidráulico no leme, mas o problema estava
resolvido.
Eu cirandava por ali, curioso das fainas de cada um, dormira até tarde embalado pela
ondulação da rebentação a que nem a amarração fugia e agora do sono nem cheiro.
O frio atirou-me para o quente aconchego da sala do radar, na parte superior
das obras mortas do navio, o comandante há muito traçara o destino e
recomendara o rumo, que os especialistas apontavam na imensa folha de papel
vegetal sem fim que o maquinismo ia fazendo correr na mesa, riscando-o nela com lápis
dermatográficos pretos, vermelhos e azuis, uma mistura de cor e cera, não fosse
o navio naufragar e a água apagar os vestígios das suas manobras. À falta de
caixas negras e equipamento digital, lápis e papel à prova de água davam alguma
garantia, desde que não afundasse a mais de cem ou duzentos metros, a partir
dali chegar-lhe seria já um desafio.
Quando
largámos ainda a ténue claridade da manhã fazia dançar nas águas as
luzes de Lagos, ia eu pensando nela por já termos passado manhãs na Praia dos Índios, a Meia-Praia. Quando dobrámos a ponta de Sagres o mar mostrou-se encapelado e o rumo foi alterado de norte para noroeste, havia que
fazer frente às vagas com a proa e não levar com elas de través no costado o
que poderia tombar o navio. Pensava nela porque aquele contratempo não nos iria
permitir chegar a meio da tarde a Lisboa, nem talvez ao fim da noite, e o fim-de-semana
que há semanas ambicionávamos, esperávamos e combináramos dezenas de vezes iria
uma vez mais por água abaixo, já que de água estamos tratando.
Muito antes da ponta de Sagres já nós apontáramos ao largo, lembrei-me então que seiscentos anos antes incipientes caravelas haviam cruzado estas mesmíssimas águas rumo a Alcácer-Quibir, onde estragaram o fim-de-semana, tal como horas depois de apontada a proa às ondas e rumando a noroeste ultrapassámos a linha imaginária nordeste/sudoeste traçada pela coragem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral uns bons anos antes.
Da sala de comando vinha a confirmação das posições que o sextante pingava e os radaristas de serviço anotavam, em relação a elas o equipamento observava varrendo tudo em redor do navio, e que no vegetal da carta era marcado como sendo o centro do mundo, centro marcado por uma luzinha a ele apontando, que o radarista marcava a vermelho, azul ou preto, a partir dali uma mesa mecanográfica calculava azimutes, milhas tragadas, nós galgados, velocidades e posições. Não havia GPS por essa época, nem GPS nem telemóveis nem SMS. Porém para mim o centro do mundo era ela e não aquela sala, a luzinha ou o navio, ou os pingos do sextante, era para ela que o meu rumo e o meu pensamento apontavam, as ondas alterosas só me transtornavam o caminhar, não o destino, sabia-a à minha espera nas Residências da Gulbenkian a Stª Maria, ou, se a deixassem, na Doca da Marinha, onde o navio atracaria.
Para
o adormecer e apaziguar enchi o bucho de azeitonas, salgadas atenuavam as náuseas e o vazio
provocado pelos solavancos da embarcação, cuja proa se erguia ao embater
frontalmente nas ondas para logo mergulhar a pique no vão criado pelo deslocar
delas que num instante levantavam a popa, dando o navio uma queda de vários metros
e fazendo-nos sair o estômago pela boca. Era demasiado, a nau poderia até partir-se
em duas ao embater desamparada no fundo desse mar cavado, mais parecia um
submarino que uma fragata, e as obras vivas, não raro, passavam mais tempo fora que
dentro de água, era assustador e tenebroso. O comandante mandara rumar a Sesimbra mal fosse possível,
e assim foi. Ali nos resguardámos dos vagalhões e dos abismos do
mar, seriam umas onze horas da noite, talvez um pouco mais.
Alguns
de nós fomos a terra numa chalupa, invadimos cafés e restaurantes, todos tinham
fome e sede, e a todos custava andar e equilibrar-se, como se o chão firme se
movesse. Tentei ligar-lhe mas das Residências não atenderam. Não sabendo quando
chegaria comprei num quiosque um postal ilustrado que ali mesmo preenchi e
selei, uma cara linda por trás do balcão adivinhou-me o pensamento sorrindo-me maliciosamente.
-
Como disse que se chamava menina ? Foi Zéza que disse ? Zézinha ? Bom fim-de-semana Zéza
e não se esqueça de meter o postal no correio. Nunca lhe perdoaria !
Beijei
o postal, sorri para a Zézinha bonitinha malandrinha marotinha simpatiquinha e
pela cumplicidade adivinhada no seu olhar soube que não se esqueceria do meu
recomendado pedido. Antes da manhã despertar o mar acalmara tão repentinamente
como encapelara e rumámos finalmente a Lisboa e ao Tejo. Deviam ser umas dez ou
onze da manhã quando passámos por baixo da Ponte Salazar. Não seria um fim-de-semana
totalmente perdido mas, chegar e não chegar, formaturas, dispensas, atravessar
o Tejo para a outra margem se atracássemos no Arsenal do Alfeite, antes das três nunca pisaria a Praça do Comércio,
apanhar ainda o 32 até à Gulbenkian e jamais lá estaria antes das cinco da tarde, o
que significava somente lanche, jantar e talvez uma soirée.
E
assim foi, acabámos mão na mão, ombro no ombro, vendo um filme, “O Regimento Vermelho Feminino” * ou qualquer coisa assim, filme icónico e Maoista
que era só o que passava no Cinema Universal, ali ao Rego, e onde já víramos “O
Couraçado Potemkin” * outro filme de culto, à rua da Beneficência e onde passado
o PREC e a euforia dos filmes vermelhos viria a funcionar o “Rock Rendez-Vous“,
que tivemos o prazer de inaugurar assistindo ao concerto de Rui Veloso que dali
lançaria a figura carismática do Chico Fininho.
Enfim,
era uma rua cheia de animação e motivos para tal, onde ainda por cima adorávamos
amesendar, quer fosse no “Bem Comer” ou no “Carne Alentejana” que nessa altura
eram mais tascas que restaurantes e nem tinham os preços impraticáveis de hoje.
Foi vez
única, nunca mais me separei da Luisinha até hoje, curiosamente quarenta anos
depois voltei a encontrar a Zéza marotinha, a Zézinha simpatiquinha, bonitinha e
malandrinha nada mais nada menos que atrás do balcão dos correios da minha
terra, onde é a gerente, e à frente de uma catrefa de filhos, trupe que vai
gerindo com parcimónia e harmonia.
Olhámo-nos,
talvez demoradamente, eu de carta na mão, ela erguendo o carimbo, e de repente
os dois, quase em simultâneo;
- Eu
já vi esses olhos !
- Eu conheço esse sorriso não lembro é de onde !
- Eu conheço esse sorriso não lembro é de onde !
Quarenta anos passados ... A vida
tem cada uma …