Era grande a
expectativa naquele livrinho, tanto mais que tinha deixado para trás um quid
pro quo com a editora, fiel e canina defensora da autora, questões de estética a
que a editora faltou com a ética e a quem tive que ludibriar para conseguir um
dos exemplares. (1)
Grande era
realmente a expectativa, tanto mais que adoro lê-la, tal como adoro cadelas, verdade
que por questões práticas tenho uma gata, o que não me impede adorar a canzoada
do meu filho. Isto anda tudo ligado, também estive algumas vezes naquela ilha, e nas Berlengas, de
convalescença, com a Carmelinda e o velho Baltazar, que era faroleiro e óptimo cozinheiro,
já lá vão uns bons quarenta anitos.
Mal compro o jornal
a primeira coisa a ler é a Leonarda, como eu e o meu filho tratamos entre nós a
Ana Cristina Leonardo, de quem somos leitores fiéis. Adoramos os seus enormes
textos e a sua extraordinária clareza e capacidade de análise e síntese, aquilo
é cultura, cultura destilada, depurada, poderão portanto aquilatar das minhas
expectativas. Nem foi a capa nem o trabalho de handcraft pingando aos poucos
uma boa estratégia de marketing, mostrada gota a gota, que me convenceram, aliás tão grande era a expectativa que quando recebi o pacote e o
sopesei pensei logo nos meus queridos dezanove euros.
Corri para dentro e
abri-o precipitadamente, mesmo assim, saquei-o forçada e desajeitadamente do envelope e
fiquei a mirá-lo e a remirá-lo. Deixei que a emoção tomasse conta de mim
calmamente e, num repente quebrou-se o feitiço, isto é, deixei de embirrar com
aquela capa psicadélica que inicialmente me lembrara a bancada de mestre
Paulino, sim, esse mesmo, o dos "pássaros de poeta", sempre abarrotada de tintas entornadas, misturadas, experimentadas, esqueci
tudo o resto ao ver-me transportado para os meus doze, treze anos, para o meu
primeiro emprego, a SOMEFE, o senhor Nelson guarda livros, os grandes
alfarrábios cinzentos do Deve e do Haver que me calhava transportar de lado
para lado, a capa de pano, manchada, tal qual esta capa da Leonarda, depois as
caixas de arquivo antigas, o mesmo padrão embora mais miudinho, mais tarde
sujeito a uma evolução que tornou as caixas e o padrão num amarelo abelha
imitando, mal, a pele dos leopardos das neves.
Na sala ao lado o velho Rosado,
digo o senhor Rosado o patrão, frente a ele um militar reformado dos
abastecimentos, o Coronel Varela salvo erro, a seu lado um senhor Piteira de
modos afectados, amaneirados, e de casaco, sempre o mesmo casaco de espiga, e emparelhando
com ele uma ela, havia uma ela que alegrava todo o pessoal do escritório, das
oficinas e da fundição, os cabelos louros, um louro pintado, lábios tintos de
vermelho vivo, Francisca, acho que era assim que se chamava, D. Francisca, ou D. Maria, sempre pestanejando para o senhor Piteira e revolvendo de ciúmes as entranhas ao senhor Nelson.
A esta hora decerto quase todos enterrados, e eu para aqui
lembrando-os, de livro ao peito, nunca me enganaram, em especial aquela
parelha, aqueles dois...
E, abraçado ao
livro da Leonarda tal qual em menino abraçara os calhamaços da contabilidade
corro para a salinha, ainda não o abri e já o amo o raio do livro, o mestre
Palolo rindo porque ao debruçar-me sobre o balcão do atendimento pressionara os
intestinos e largara um valente traque, mestre Palolo rindo, o Malato rindo,
esse não ri mais pois há tempos deu-lhe um badagaio, uma trombose ou coisa
assim que o deixou arrumado e já só diz dádá dádi, eu todo vermelho de corado,
o senhor Nelson rindo também.
Mestre Palolo que
anos mais tarde me convidaria a frequentar os convívios de tertúlias d’A Trave, onde pontificavam o seu mano,
António Palolo, José Cachatra, mestre Paulino Ramos, mestre expressionismo, mestre
impressionismo, o senhor abstracto, messier surrealisme, Pássaros de Poeta,
Évora, a Urbana, o senhor Amado, as minhas tias, o Sinca Ariane novo, Sesimbra. Finalmente abro-o, exemplar único, fait à la main, procuro-lhe o número, se
fosse numerado o meu seria o 1283/72, não é, é o ISBN qualquer coisa, capa
dura, cartão, como o cartão das tais velhas caixas de arquivo, papel de
primeira, impressão personalizada, dedicatórias e citações em inglês, francês,
etrusco e sumério, isto é cultura porra.
É leve e foi caro
mas valeu a pena, handcraft, cosido à la main, à mão, coisa pessoal, não vem
assinado mas assinei-o eu, Baião, com um grande rabisco a rematar o ó, agora é
meu, pessoal e intransmissível, nem irá para a estante, não tem lombada,
perder-se-ia entre os outros troféus, cerimoniosamente irei colocá-lo onde
todos o vejam, como bibelô largado descuidadamente no aparador, reparo bem e
são mesmo citações de Clézio, Dickinson e Francis Ponge, quanto não vale isso porra
? Quanto ? Digam ! E as Fotos ?
A falésia, a flora, o farol novo, finalmente
dou-me conta do papel vegetal e apalpo-o entre os dedos, os olhos fechados,
segurando sem apertar a banha que a mãezinha me mandara buscar à mercearia do
senhor Gerardo, na volta correndo atrapalhado para que a banha não tivesse
tempo de derreter, o papel, grosso como este, opaco ou transparente dependendo da
gordura impregnando-o.
Anos mais tarde o professor Silva, os transferidores,
compassos e tira-linhas, os meus dedos pretos da tinta da china, a folha de
papel vegetal impecável, sem um borrão, círculos, circunferências, revoluções,
rectângulos, cones, todos os sólidos desenhados com primor, limpo uma lágrima, depois
uma cascata delas, vou lê-lo às escondidas, só para mim, só eu…
Por este turbilhão
que vi, vivi e senti queria agradecer mas, folheio-o e dou com um conselho que
me traz de volta ao bom senso, realmente as pessoas devem ser deixadas em paz….
* Nota: ver, ou ler também "O Livro da Leoparda":
* http://mentcapto.blogspot.pt/2016/04/343-leoparda.html
http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/223-farol-berlenga-grande.html
* http://mentcapto.blogspot.pt/2016/04/343-leoparda.html
http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/223-farol-berlenga-grande.html
http://mentcapto.blogspot.pt/2014/06/195-na-mesma-como-lesma.html
(1) A minha resposta, posterior ao arrazoado da Editora, ** (link abaixo) coloquei-a num comentário no fim do texto:
** http://www.hierrolopes.com/#!Uma-temperamentalíssima-editora-para-um-temperamentalíssimo-leitor/aqz82/57223f550cf2d19e2972138a
(1) A minha resposta, posterior ao arrazoado da Editora, ** (link abaixo) coloquei-a num comentário no fim do texto:
** http://www.hierrolopes.com/#!Uma-temperamentalíssima-editora-para-um-temperamentalíssimo-leitor/aqz82/57223f550cf2d19e2972138a