Mostrar mensagens com a etiqueta Carmelinda. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Carmelinda. Mostrar todas as mensagens

sábado, 30 de abril de 2016

343 - O LIVRO DA LEOPARDA *................................


Não sei quando foi que me enganei e meti na cabeça que o cacilheiro era aquele, por isso quando me vi nas Berlengas fiquei sem saber quem culpar que não eu. Falara-se em farol e em cadelas e a minha mente divagara para noroeste, onde certa vez para cumprir uma convalescença passara umas férias de sonho com a Carmelinda, o problema deu-se passadas semanas, instáveis como são as mulheres, depois de bem tratado e recebido acabei afastado como um cão, uma cadela a Carmelinda.

Por isso estava na ria quando dei por mim, dormira bem e só acordara a páginas tantas, ainda sonhando com a antiga base de Centro de Aviação Naval do Algarve, com a I Guerra Mundial, com minas, com um tempo que em boa verdade dobrou em mim as razões para duvidar daquela paisagem mas, desde o início nas nuvens, nem me admira ter embalado no engano, não fora Clézio, que me acompanhava perseguindo sem sucesso o cão, ter-me dado uma cotovelada muito provavelmente nem teria acordado do processo em que me enredei.

Não estou em férias, contudo deixei-me levar por esta leitura leve e indolente que me trocou as voltas, terá sido a similitude das capas a dar-me a volta já que me mentalizara e prepara para uma outra obra, para um tour de force, e colocara à mão dicionários e enciclopédias, um passe-vite para diluir e dois passadores para coar e destilar um soluto altamente concentrado, sei lá, como o leite condensado ou o ketchup, ligara mesmo a máquina do café e arrumara a seu lado duas embalagens grandes de capsulas da Delta Q nº 10, e quando afinal puxo as redes, não é que viessem vazias, eu é que estranhei logo a sua lassidão, isso e uma insustentável leveza, preparara-me para as puxar, para me esforçar e no instante quase caí de cu com a reacção à força aplicada e que não teve contraponto.

Não chegou a ser uma desilusão, foi mais uma descompressão, e vindo o dia de sol, sem ventos nem chuviscos, céu limpo, livre de nimbos, cúmulos, cirros e estratos, morador que sou e entalado entre o mosteiro da Cartuxa de Santa Maria de Scala Coeli e o Alto de S. Bento, tendo à minha beira extenso colorido e atapetado florido de ervas e malmequeres, agarrei num extracto bancário acabadinho de chegar, enfiei um boné e um blusão leve a fim de tornear a Torralva e feito cigano atrevi-me a galgar muros e prados até conquistar a Torre do Geraldo na encosta de S. Bento, onde a história dá por degolados pelas tropas de Geraldo Sem Pavor dois sarracenos que estariam de vigia e sonhando com Xerazade correria o ano de 1165.

Não levei comigo cão nem cadela, sei que ao voltar terei esperando-me uma corridinha da Mimi, direitinha a mim de rabo espetado no ar, atrapalhando-me o andar e roçando-se-me nas pernas. Foi precisamente ao regressar e imbuído destes pensamentos que ia sendo colhido por uma das embarcações de Mestre Casaca, traz nas artes da xávega uma dúzia de táxis, ou mais, e ainda o pronto-socorro, que em todo o dia não param, para cá e para lá, andam loucos desde que alguém agitou os mares e Neptuno lhes atiçou a Uber, não há farol aqui mas montou uma altíssima antena para os radiotáxis e que os russos devem conseguir ver da estação espacial.

Caminhei umas boas duas horas, rebolei-me nas ervas, li, ouvi música, noutros tempos teria mandado um charro abaixo, porém agora tenho que manter conduta exemplar ou não me perdoariam. Foi tarde tão descontraída que chegado a casa levava ainda atravessado nos dentes um comprido tronco de palmeira que só larguei para conseguir transpor o portão e farejar tudo com muita atenção,

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
                                                 Mário de Sá-Carneiro

Volto a dar pelo silêncio, um silêncio de que nunca me dera conta mas há mais de duas horas me acompanha. Verdade que descomprimi, é um direito que me assiste, e de vez em quando até sabe bem, distender a mente e os músculos, em especial os músculos, foi o que vi na Leoparda, rastejando entre as flores e as ervas, confundindo-se com a vegetação, descomprimindo, como eu e, em vez de malhar no ferro frio tentando meter a densidade do universo numa coluna de x palavras ou y caracteres que certamente a obrigam a mamar, quero dizer aguentar, respeitar, cumprir, tirou férias e agarrando na cadela foi desarvorar, apanhar ar, tirar vacances, tal qual eu tirei os ténis ao chegar a casa e me estendi no sofá, sofrido das cruzes, um pé descalçando o outro e versa vice. 

Nem demorou que os Reebok caminhassem ao calhas no meio da sala, não tarda irá o boné o polo, e a Leoparda, como será ao chegar a casa ? A música baixinha ? Dedicada à cozinha ? Arrumadinha ?

Era eu uma vez estudante e, não lembro já o porquê, procurei umas colegas num quarto que tinham arrendado no burgo, a Eduarda Branco, a Teresa qualquer coisa e a Dalila não sei quantos uma algarvia do Burgau, eu nem queria acreditar, jamais vira tamanha desarrumação, e tanto sutiã tanta calcinha tanta cueca até debaixo das camas, senti-me ligeiramente deslocado e enfastiado, acabámos o estágio e nunca mais as vi, nunca mais consegui esquecer tal nem deixar de me preocupar com o facto de sim ou não, se já terão lavado aquela roupa suja toda… 

Mas ela não lava roupa p’a descontrair, ela sonha, ela voa, ela plana, abre os braços e lá vai ela, ela e a cadela, tal qual eu, não eu com os Beatles, muito menos com o amaneirado do McCartney, eu é mais com a pesca, com a Micas do Quiosque Primavera, a Célia da Padaria Pão Da Terra, a Serafina das análises, a Cândida da farmácia, a Maria Júlia da pizzaria, a Lourdes da frutaria, ela perdeu a relação ou as relações disse a páginas tantas, pois eu procuro é mantê-las, cultivá-las, ela entrava em campo e chutava, chutava ou fintava e fintava, já eu quando entrava em campo fumava, fumava … Que tomará para sonhar assim ? Lá que descomprime, descomprime, e lá se vai a realidade…


Aliviar é a segunda coisa que mais gosto de fazer, aliviar-me, larguei o passe-vite e os passadores ou coadores, aumentei o volume ao Jorge Nice a fim de abafar por essa via outros ruídos e sentei-me, como que num cadeirão, numa cadeira de baloiço ou num trono e ali me deixei ficar, meditando, nas Berlengas, no farol, nos petiscos do velho Baltazar, a propósito a coisa que mais gosto é comer, comer e meditar, e ali estava eu e a cadela da Carmelinda, sim, primeiro um anjo para mim depois uma autêntica cadela, só faltou morder-me, sei do que as mulheres são capazes quando estão zangadas, temam-lhes as represálias…

Tranquei a página à editora não vá ela querer ferrar-me…

Por isso voltei a sentar-me, p’a descontrair de novo, p’a descontrair mais, e preparei-me para focar a atenção na Grande Golpada, ou na Golpada à Italiana, Um Golpe à Italiana, livro numa mão, comando na outra mas na hora H o CD emperrou e népia, perdi a calma…


Felizmente a Leoparda andava calma, tirara férias, e a sua calma trouxe paz à aldeia que costumava rondar, paz e contenção, é bom fugir à pressão, à compressão dos dias, antes levar com alguns chuviscos no toutiço e aguentar a pressão atmosférica, essa ao menos descomprime, eu descomprimi deste turbilhão que vi, vivi e senti, queria agradecer mas, um velho conselho traz-me de volta ao bom senso, virei bicho cortês, cavalheiro, foi isso, armei-me de bom senso, sensibilidade e bom senso. 

A pressão atmosférica muda-nos, humaniza-nos, atrai os chuviscos, pode até molhar-nos claro, se não corrermos as janelas de caixilho, quanto às pessoas, as pessoas realmente devem ser deixadas em paz…  






quinta-feira, 28 de abril de 2016

342 - O LIVRO DA LEONARDA * ..............................

                                          
           
Era grande a expectativa naquele livrinho, tanto mais que tinha deixado para trás um quid pro quo com a editora, fiel e canina defensora da autora, questões de estética a que a editora faltou com a ética e a quem tive que ludibriar para conseguir um dos exemplares. (1)

Grande era realmente a expectativa, tanto mais que adoro lê-la, tal como adoro cadelas, verdade que por questões práticas tenho uma gata, o que não me impede adorar a canzoada do meu filho. Isto anda tudo ligado, também estive algumas vezes naquela ilha, e nas Berlengas, de convalescença, com a Carmelinda e o velho Baltazar, que era faroleiro e óptimo cozinheiro, já lá vão uns bons quarenta anitos.

Mal compro o jornal a primeira coisa a ler é a Leonarda, como eu e o meu filho tratamos entre nós a Ana Cristina Leonardo, de quem somos leitores fiéis. Adoramos os seus enormes textos e a sua extraordinária clareza e capacidade de análise e síntese, aquilo é cultura, cultura destilada, depurada, poderão portanto aquilatar das minhas expectativas. Nem foi a capa nem o trabalho de handcraft pingando aos poucos uma boa estratégia de marketing, mostrada gota a gota, que me convenceram, aliás tão grande era a expectativa que quando recebi o pacote e o sopesei pensei logo nos meus queridos dezanove euros.

Corri para dentro e abri-o precipitadamente, mesmo assim, saquei-o forçada e desajeitadamente do envelope e fiquei a mirá-lo e a remirá-lo. Deixei que a emoção tomasse conta de mim calmamente e, num repente quebrou-se o feitiço, isto é, deixei de embirrar com aquela capa psicadélica que inicialmente me lembrara a bancada de mestre Paulino, sim, esse mesmo, o dos "pássaros de poeta", sempre abarrotada de tintas entornadas, misturadas, experimentadas, esqueci tudo o resto ao ver-me transportado para os meus doze, treze anos, para o meu primeiro emprego, a SOMEFE, o senhor Nelson guarda livros, os grandes alfarrábios cinzentos do Deve e do Haver que me calhava transportar de lado para lado, a capa de pano, manchada, tal qual esta capa da Leonarda, depois as caixas de arquivo antigas, o mesmo padrão embora mais miudinho, mais tarde sujeito a uma evolução que tornou as caixas e o padrão num amarelo abelha imitando, mal, a pele dos leopardos das neves. 

Na sala ao lado o velho Rosado, digo o senhor Rosado o patrão, frente a ele um militar reformado dos abastecimentos, o Coronel Varela salvo erro, a seu lado um senhor Piteira de modos afectados, amaneirados, e de casaco, sempre o mesmo casaco de espiga, e emparelhando com ele uma ela, havia uma ela que alegrava todo o pessoal do escritório, das oficinas e da fundição, os cabelos louros, um louro pintado, lábios tintos de vermelho vivo, Francisca, acho que era assim que se chamava, D. Francisca, ou D. Maria, sempre pestanejando para o senhor Piteira e revolvendo de ciúmes as entranhas ao senhor Nelson. 

A esta hora decerto quase todos enterrados, e eu para aqui lembrando-os, de livro ao peito, nunca me enganaram, em especial aquela parelha, aqueles dois... 


     
 Leopardo das neves, provavelmente uma fêmea, uma “Leoparda”

E, abraçado ao livro da Leonarda tal qual em menino abraçara os calhamaços da contabilidade corro para a salinha, ainda não o abri e já o amo o raio do livro, o mestre Palolo rindo porque ao debruçar-me sobre o balcão do atendimento pressionara os intestinos e largara um valente traque, mestre Palolo rindo, o Malato rindo, esse não ri mais pois há tempos deu-lhe um badagaio, uma trombose ou coisa assim que o deixou arrumado e já só diz dádá dádi, eu todo vermelho de corado, o senhor Nelson rindo também.

Mestre Palolo que anos mais tarde me convidaria a frequentar os convívios de tertúlias  d’A Trave, onde pontificavam o seu mano, António Palolo, José Cachatra, mestre Paulino Ramos, mestre expressionismo, mestre impressionismo, o senhor abstracto, messier surrealisme, Pássaros de Poeta, Évora, a Urbana, o senhor Amado, as minhas tias, o Sinca Ariane novo, Sesimbra. Finalmente abro-o, exemplar único, fait à la main, procuro-lhe o número, se fosse numerado o meu seria o 1283/72, não é, é o ISBN qualquer coisa, capa dura, cartão, como o cartão das tais velhas caixas de arquivo, papel de primeira, impressão personalizada, dedicatórias e citações em inglês, francês, etrusco e sumério, isto é cultura porra.

 É leve e foi caro mas valeu a pena, handcraft, cosido à la main, à mão, coisa pessoal, não vem assinado mas assinei-o eu, Baião, com um grande rabisco a rematar o ó, agora é meu, pessoal e intransmissível, nem irá para a estante, não tem lombada, perder-se-ia entre os outros troféus, cerimoniosamente irei colocá-lo onde todos o vejam, como bibelô largado descuidadamente no aparador, reparo bem e são mesmo citações de Clézio, Dickinson e Francis Ponge, quanto não vale isso porra ? Quanto ? Digam ! E as Fotos ? 

A falésia, a flora, o farol novo, finalmente dou-me conta do papel vegetal e apalpo-o entre os dedos, os olhos fechados, segurando sem apertar a banha que a mãezinha me mandara buscar à mercearia do senhor Gerardo, na volta correndo atrapalhado para que a banha não tivesse tempo de derreter, o papel, grosso como este, opaco ou transparente dependendo da gordura impregnando-o. 

Anos mais tarde o professor Silva, os transferidores, compassos e tira-linhas, os meus dedos pretos da tinta da china, a folha de papel vegetal impecável, sem um borrão, círculos, circunferências, revoluções, rectângulos, cones, todos os sólidos desenhados com primor, limpo uma lágrima, depois uma cascata delas, vou lê-lo às escondidas, só para mim, só eu…

Por este turbilhão que vi, vivi e senti queria agradecer mas, folheio-o e dou com um conselho que me traz de volta ao bom senso, realmente as pessoas devem ser deixadas em paz….