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segunda-feira, 16 de julho de 2018

518 HÁ POUCAS MULHERES BONITAS partes 1 a 7


                  JÁ HÁ POUCAS MULHERES BONITAS … 1

Com a patinha, a minha Mimi puxou a cabeça decapitada da sardinha, filou-lhe as unhas, enredou-se nuns restos do aparelho e das artes ao qual ainda se encontrava presa uma linha, linha que vim a saber ao ajudá-la a desenvencilhar- se dela, estender-se até Vilnius.

Sim, daqui até lá, à Lituânia,  não daqui ou do Festival da Sardinha de Portimão, antes da vila de Olhão, vila tão afastada das revoltas matemáticas e repressões ortodoxas como a sardinha anda agora dos nossos mares e das latas de conserva. Haja decência pois a jurisprudência não tem aqui lugar.

Eu não podia estar mais feliz, por ter encontrado este rio tumultuoso carregando a história de enxurrada, história essa que eu amo e sobre cujas passadeiras vou saltitando de surpresa em surpresa, sempre sob a excitação e temor de escorregar nos lismos de alguma das pedras, ou torça um pé e me estatele no caudal desta ficção onde receio ficar empalado, como acontecia aos soldados americanos se calhava caírem e sumirem-se no fundo das armadilhas montadas p’los vietcongs, afim de caçarem os modernos cossacos da infantaria alada que os zurzia sem qualquer efeito e sem piada.

Tivesse eu caído e certamente o doutor Francisco Fernandes Lopes me acudiria, tão bem ou melhor que o Tamanqueiro acudira ao Olhanense ao qual pela primeira vez na vida fez sorrir, pôs a sorrir. Sorriu o Olhanense então e sorriu agora, pois confirmo com agrado quão estava enganado o prior Sebastião de Sousa, é certo que passaram duzentos e sessenta anos mas como diz o bom povo, e não somente o de Olhão, mais vale tarde que nunca e, pelo que sei, vejo e constato, não se poderá dizer nunca ter ido a Olhão, pois se é de lá, nasceu mesmo lá…

HÁ CADA VEZ MENOS MULHERES BONITAS… 2


Como não havia de ser ela de têmpera se filha da terra cuja grandeza João Rosa nas suas crónicas nos canta e conta, em especial aquando da resistência aos franceses por volta do ano da graça de 1800, ano em que os olhanenses, famintos, estropiados, os quais ajudados por uma tropa-fandanga fizeram frente e expulsaram do reino do Allgarve o inimigo.

Por essa mesma altura e numa sincronia perfeita o pai de Bóris chacinava p’ra meter na ordem a cidade de Vilnius, inda que nenhum documento ateste esta genealogia mas tão caricata ligação seja romanescamente comprovada pela liberdade da ficção e, em caso de dúvida metódica se possam invocar as leis de Mendel e sobretudo a cartografia Ptolemaica* pois é sabido ter como base e ponto de partida uma superfície isotrópica e uniforme, a qual por sua vez possibilita a construção de posições abstractas, tais como as coordenadas terrestres, e uma terceira dimensão que por sua vez contém os métodos da ilusão ou, como isto anda tudo ligado, invoquemos sem a olvidar, a mais convencional simbologia dos mapas.

Quanto à questão espácio-temporal, a principal característica do mapa-múndi Ptolemaico, a sua cartografia assegura que os elementos representados num mapa devam ser co-síncronos, resultando numa separação entre o tempo e o espaço, da geografia para a história, justificando mais que a jurisprudência, a liberdade de que gozam nesta saga os elementos biográfico/geográfico/histórico/cronográficos, liberdade quasi impossível de imaginar no espaço exterior ao romance.   

Foram tempos em que terão penado muito mas não quasi** tanto quão Mário de Sá Carneiro, que se fora jovem sem esperar pelo mano-rei, quasi tanto sim quanto os de Vilnius. Também aqui, em Portugal, o drama das invasões fazia esquecer a fuga da corte para o Brasil, a incapacidade do rei, a inutilidade das cortes e da nossa tropa na defesa do reino, a eterna dependência, agora dos ingleses, os quais aproveitando a maré se penduraram em nós e inda hoje nomes sonantes como Sandeman, Croft, Tawny, Andresen, Dow's, Graham's, Cokburns, Taylors, Warre's, Crusted, Burmester, Offley, fazem as delicias do nosso paladar, seja como aperitivos ou digestivos cuja antiguidade em muitos casos remonta à época das invasões, antiguidade que as marcas publicitam com veemência ocultando-nos somente o modo e proveniência das fortunas feitas com as vinhas “compradas” a todos os desgraçados quantos as tinham nas margens do Douro.

A vinda dos franceses e a ida da corte para o Brasil haveria, qual cortina de fumo, de fazer as vazas do actual euro e união europeia a quem culpamos de toda a nossa desgraça, incompetência, inabilidade, oportunismo, caciquismo e espirito de manada ou instinto de rebanho. É bom ter um bode expiatório a quem atirar as culpas, eu disse culpas ? Essas nunca são nossas, Bóris dominava teórica e perfeitamente a situação, D. Leonarda a pena e a paixão, só desconheço se como a Bóris tanta erudição lhe terá vindo depois de beber até cair no chão.

Nada que me preocupe, é fazer como eu faço após cada ressaca, duas saquetas de chá preto da Tetley, um bule de água bem quente e esperançar não queimar a língua, é prático, rápido e cómodo. Por alguma razão inventaram as saquetas de chá que, calhando um dia ir a Olhão, levarei no bolso, meia dúzia chegarão, agora que a tropa francesa abandonou Faro e a ameaça se esfumou há muito dessa vila linda de céu azul de esmalte, só espero que o vento nesse dia esteja de levante, talvez por lá esteja o mano-rei e lhe crave um cigarrito.

        Que esteja ao menos D. Leonarda, provavelmente quem, inspirada por D. Catarina de Bragança, terá levado para o Algarve o hábito do chá, não me custa acreditar, imaginosa como é e já agora imaginando-a, após horas em redor de um fuso tecendo como Penélope teceu o seu velo, duas linhas riscadas por cada três alinhavadas até lograr ligar todos os factos ocorridos, não ocorridos e por ocorrer, provando à saciedade que isto anda mesmo tudo ligado, dera-se ao luxo de descansar passando então para a sala, visto serem quase cinco horas da tarde, e de seu natural o chá querer-se bem quente, de preferência a escaldar. Naturalmente irei aproveitar a ocasião para dar dois dedos de conversa, por que não, se há cada vez menos mulheres bonitas …

** QUÁSI

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse àquem...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim - quási a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ansias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indicios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sôbre os precipícios...

Num impeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de azul - e fôra além.
Para atingir, faltou-me um golpe de aza...
Se ao menos eu permanecesse àquem...

** Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'



MULHERES, AINDA HÁ BONITAS E SIMPÁTICAS … 3


Nunca tive dúvidas quanto ao facto disto andar tudo ligado, nem dúvidas quanto ao dito do mundo avançar pulando como bola colorida entre as mãos duma criança. Por isso me alegrou sobremaneira a história de Madame S querendo transformar em Caterine tudo quanto Rousseau demonstrara relativamente ao bom selvagem, esforço a desenvolver com Caterine de quem se dizia ser filha do demónio, mas não somos todos ?

Sagaz como ele demónio, Caterine aproveitou, aprendeu e beneficiou, com muito mais pompa e circunstância, coisa raríssima, que a senhora presidente da dita acerca da qual não poderemos garantir tenha alguma vez tomado café na Brasileira do Chiado, como não poderemos jurar ter Bóris deambulado pela selva e roças do Brasil ou p’la foz do Amazonas.

Nestas coisas de juras é D. Leonarda mui certeira pois raramente se engana, não constando haver vez que não tenha tido mão ou se abanque com a banca, nestes pormenores dos players e dos dealers uma mão lava a outra e as duas lavam a cara, é preciso é que o marfim escorra, digo o money money, sendo bem conhecida a sua mestria para fazer manilha e compor bouquets, inda que nunca se tivesse dado por comerciar tulipas ou especular com bolbos.

Por falar em tulipas e bolbos ocorreu-nos que por aquele ano de 1925 Bóris se encontraria na Holanda e bem perto dela, na Alemanha, Hitler lançara por 12 marcos o seu célebre Mein Kampf, o que gerou acesa polémica, enquanto D. Leonarda alheia à controvérsia salpicava com uns pés de cravinho e uns pozinhos de noz-moscada o peru que preparava para meter no forno, quando alguém indeterminado sorvendo os olores em suspensão e com voraz apetite largou largo desabafo destinado a acompanhar a tentadora ave a caminho do forno,

- Uau ! Lá vai ele para Dachau !

tendo de imediato levado uma cotovelada pois se estava em 1925 e de Dachau por agora nem sombras quanto mais fornalhas.

Enquanto o sedutor peru caminhava para o crematório, D. Leonarda, munida de um pequeno copo de brande invertido desenhava com canela em pó argolinhas nas travessas de arroz doce. A todos D. Leonarda convidara para a sua mesa, o que prova não estar fora de moda a solidariedade dos olhanenses, confirmando-se continuar sendo o sentimento de igualdade mais forte ali que em qualquer outra parte ou lugar. Bebemos à saúde de Bartolomeu Constantino, da sua 36ª pena de prisão, erguemos de novo os copos em honra do causídico Afonso Costa a quem as circunstâncias não permitiram concretizar o desejo de se bater em duelo de pistolas com o juiz pronunciador de tão despropositada pena, e numa outra rodada relembrou-se Manuel Zorra The Sea Fox and your adventures, no momento em que alguém inopinadamente alvitrou haver ali parecenças com a vida corajosa e aventureira de Linda de Suza avec sa valise de carton, alentejana de Beringel, mas a ideia foi abandonada por extemporãnea com uma critica cerrada de,

- Hoje não acertas uma

por a dita senhora não ser sequer ainda nascida à data em que estávamos querendo inclui-la na rodada e beberricada homenagem.

Ficaram-se os convivas por Raúl Brandão e pelo novel fenómeno do Cinema Paraíso, tendo nascido em Olhão com duas salas concorrentes digladiando-se como os núbios nas arenas romanas, bárbaro mas necessário ao contentamento do operariado de oitenta fábricas conserveiras que o fim da guerra de catorze / dezoito havia de arrebentar. E implodidas as fábricas de conserva a conversa escorregou no óleo de olive derivando para a beleza cubista do bairro operário * cubista e obra do arquitecto Carlos João Chambers de Oliveira Ramos, bairro em cujas soteias o siroco se sente soprar mais forte, incendiando espíritos e enlouquecendo homens e mulheres. Por desmancha-prazeres alguém invocou o modelo ROC, fabricado em Palmela pela W, que também já fabricara o EOS, modelo cuja designação expressa um carácter jovem, caprichoso e despreocupado, vivendo amores intensos mas efémeros como era próprio da deusa com esse nome, fábrica que também produzira e produz o modelo Scirocco, rápido como o vento ghibi que sopra do norte de África, mas o diálogo ficou por aqui pois uma vez mais o infeliz que o conduzia “não acertava uma” …

Portanto, e não direi hoje soube-me a tanto por não termos iniciado ainda o repasto, por agora estamos sentados em redor uma mesa quadrada, travessa do peru fumegando e largando eflúvios de especiarias, naperons cobrindo as travessas de arroz doce decoradas com arabescos de canela, as rolhas saltando nas garrafas e os berlindes sumindo-se nos pirolitos, será caso para dizer que lá fora talvez, a julgar pela paz que embala o sono das cadelas, mas não ali, ali não vive gente brava, bruta ou repentista, ali vive pelo menos uma mulher bonita e simpática, porque sim, porque ainda as há assim. 


* (Bairro Operário mais tarde destruído, e projectado outro com idênticas características para a firma construtora Lucas & Ventura da qual faria parte um cunhado do mesmo arquitecto, Carlos Chambers Ramos que dera iniciativa à arquitectura modernista em Portugal, este seu projecto que por razões talvez económicas nunca chegou a ser construído, O Bairro Municipal de Olhão. 

MULHERES BONITAS, AINDA AS HÁ SIM …  parte 4


Continuo embalado na história de Boris o mano-rei, e finalmente encontro quem reconheça a guerra como um tempo de oportunidades. Em boa verdade desde que o mundo é mundo tudo foi conseguido pela força e exceptuando os tempos da poesia trovadoresca e dos cavaleiros em defesa das graciosas damas, dos pobres e dos oprimidos, de que D. Quixote de La Mancha é o expoente máximo, não me recordo de quaisquer épocas em que não tenha sido assim. A guerra abate pruridos, rebate burocracias, cria urgências, supera-as, faz surgir personagens decididos e desenvencilha-se de todas as teias que os parlamentos tecem, o mesmo fazendo com as redes que deitam, e nunca ao mar, tomando-se por mor da guerra e em minutos decisões que de outro modo demorariam meses ou anos a ser tomadas, e fariam acreditar estar feito o que nem iniciado estivesse.

Além de com as guerras ser excitado o génio inventivo e, sabendo toda a gente ser mais fácil destruir que construir e muito mais rápido, as guerras apresentam a grande vantagem de que qualquer reconstrução mobiliza de longe muito mais gentes que a destruição ou a simples construção. Uns estudiosos de Oxfordshire calcularam certa vez entre 1919 e 1939 que os mortos num conflito potenciam as oportunidades dos sobreviventes numa razão de um para três, o que significa que os vinte milhões de mortos na IGG primeira grande guerra * terão directa ou indirectamente beneficiado as vidas de 60 milhões de seres humanos espalhados pelo globo. Imaginem agora as vantagens e bem-estar trazido a todos nós pelos mais de 2 biliões de vidas caídas em todo o planeta durante a IIGG, segunda grande guerra… **

Não sabemos se Boris percorreu ou não todo o globo. Como bastas vozes afirmam não o ter ele feito em 80 dias, nem em mais ou menos tempo, teremos que lhes dar crédito, às vozes, não a Boris que embora sumido vai deixando um rasto pela GB, Holanda, Andorra e Maiorca, catrapiscando, seduzindo, desposando e iludindo matronas e não matronas, bancos, hotéis e ingénuos incautos, ordinary people vitimas de sua própria ignorância, e vero acusado do aproveitamento de tendências veladas ou declaradas de androginismo. Quem sabe, quem por essa época ligava a essas coisas como hoje, hoje que sem a mínima dúvida todos dariam superior e suprema importância à sua farda de capitão do exército e talvez, quando muito perguntassem se do Exército de Salvação, da REAPN, do Banco Alimentar ou da Refood, sei lá, tudo dependendo certamente das dragonas, até do brilho dos botões do dólman que o pessoal perde-se por pormenores ricos de trivialidade ofuscante e vacuidade fortemente acentuada.

Portanto, desde factos e acusações de se deitar com noivas, viúvas, solteiras ou com os respectivos maridos, nada que incomode Boris, a potência nunca lhe faltava, acompanhava a Revolução Industrial e a técnica, o modernismo, apontando sempre para cima para o futurismo. Ele nem era homem que se negasse ou que se ficasse fosse para o que fosse, fosse uma orgia a dois, a três, uma pedrada de haxixe, ou uma requintada e esotérica volta ao volante da Cadillac, a linha mais individualista da época, pois a religião cristã protestante que abraçara na Holanda corria-lhe nas veias, a par de uma perversão congénita talvez aprendida com Albertina, a perceptora francesa que cuidara de sua mãe em menina e dele mesmo trinta anos mais tarde quando fora criança. Quem vai ou consegue agora apurar as origens de tão íntimas inclinações ou suspeitas ?  Sigmund Freud seria homem para fazê-lo e embora vivo por esses anos, logo contemporâneo de Boris, não consta que se tivessem cruzado nem nada nos garante tivesse Freud já desenvolvida a sua teoria da introspecção psicanalítica.

Devido a estas debilidades e outras contrariedades do seu currículo a verdade é que os espanhóis lhe lançaram a mão em Andorra, depuseram-no para logo o colocarem na fronteira portuguesa, chegando a Olhão procurando barco para Marrocos, não suspeitando ou mal suspeitando este nosso amigo de personalidade russa estar a sair duma confusão para se atirar de cabeça dentro de outra muito maior, a qual faria da sua vida uma montanha russa, passe a antanáclase.

Os dias passados em Olhão viriam a ser astuciosamente observados, depurados e registados por curiosa olhanense dedicada às palavras, à escrita, à literatura, ao romance e poética. Não que buscasse protagonismo ou apresentasse tendências exibicionistas, mas ninguém o sabia ou adivinhava então, que a partir desse momento quanto ela iria contribuir para que a até aí atribulada vida de Boris se viesse a equiparar contudo à de um menino de coro.

Doravante e nas suas mãos, suas dela olhanense de gema, clara de ovo de serpente e segundo testemunhas péssima na prática de parapente, que nunca fez, nunca ninguém a vira fazer, todavia excelsa manipuladora de alfabetos, símbolos gráficos, da semiótica das letras e dos algarismos, a vida de Boris iria ser catapultada para o infinito.

Cão de fila como Boris era, mulherengo como o sabemos, nada lhe recusou abrindo-lhe o passado e o futuro. Não sabemos quanto terá pesado na disponibilidade, simpatia e empatia de Boris o facto de se encontrar diante de, ou confrontado com uma mulher bonita, mas que fique registado que até em Olhão, ou apesar de Olhão, ou mesmo em Olhão ainda há mulheres bonitas, ainda as há sim …



SE AINDA AS HÁ BONITAS ? CLARO QUE SIM  parte 5


A produção, ora aí está. Já José Mário Branco a cantava em 79, inda que não adivinhasse estar fazendo futuro, nem Boris comprometido com ela. A produção, a grande mentira dos gulags, dos gulags e fora dos gulags. O gulag fez Boris lembrar-se de Marie Louise, a mim recordou-me a “A Vigésima Quinta Hora” do romeno Constantin Virgil Gheorghiu e as atribuladas atribulações pelas quais Boris está passando, p’la loucura do mundo, agarrado a um baralho de cartas em volta duma fogueira, ou abraçando um molhe delas que apesar de tudo lhe vão chegando às mãos e lhe garantem a sobrevivência e o amor de Marie Louise.

 Índices de produção, a grande mentira dos gulags, e do mundo, o grande equívoco dos tempos modernos. Curiosa e divertidamente quem mais e mais exigia quer índices quer produção soçobrou primeiro e os gulags são hoje uma recordação indecente e, quem sabe, uma promessa… ou uma ameaça pairando num mar de possibilidades porque em potência a possibilidade está lá, sempre lá esteve, e estava lá quando ela pequenina e levada pela mão percorria os corredores das celas de Peniche, o nosso gulag de imitação e onde os inconformados com a tradição eram encerrados, quais monges, nas celas húmidas, frias e escuras de onde somente os seus sonhos partiam livres, levados pelo vento, esperando ser arrastados para o país dos sovietes onde outros gulags e outros homens por sua vez eram encarcerados e se evadiam sonhando com outras paisagens, outros países, o que confirma ser o mundo um mar de enganos onde só os que não sonham escapam a tais enleios, onde só os que não sonham se escapam a ser enleados… Nos gulags tudo o art.º 58 permitia, entendo, nós temos o fado do 31 …

“Antes estrangeiro e acusado de espionagem que russo acusado de traição” não haja então dúvidas de que o homem é o cão do próprio homem, o homem é o carrasco do homem, e qualquer homem em qualquer parte do mundo pode ser preso por ter cão e por não ter. Sabemos que Boris não tinha cão, nem culpas, mas que interessa isso à engrenagem quando entra em funcionamento a trituradora ? Mais que o homem o alvo é a dignidade, cientificamente manipulada, pela fome, pelo desprezo, pelo ostracismo, pela indiferença, pela escravatura, pelo degredo, pela prisão, pelo exilio, por arbitrariedades e iniquidades. Sobreviver aos gulags deste mundo, sobreviver a Caxias, Aljube, Peniche ou Tarrafal é ser erigido em colosso, metamorfoseado em monumento.

E os dias fluíam, até que repentinamente,

- Louvado sejas oh eterno Deus de Israel !

que isto é mesmo assim, o infinito é o mesmo, o universo é só um, mas os deuses chegam e sobram, dá um para cada bairro, cada rua, e está explicada a questão, a religião é o ópio do povo e por ali, onde nasceu o refrão nascia também a submissão, a igreja tornara-se ortodoxa, não porque recusasse os dogmas ou a primazia papal mas para melhor servir os seus amos na terra que os céus estavam reservados ao Sputnik, cuja aparição estava  presa por uma questão de dias, e ao que mais viria...

Pausa, passa por momentos Bóreas, fala mais alto e tudo gela e arrasa até se recolher à sua caverna na Trácia, não sem antes deixar um manto de neve que nem um limpa neve dos mais modernos limparia em duas semanas. Mas calma não divaguemos, estamos em 1956, não em 2018, o Paizinho morrera há três anos, e Bóris juntamente com outros prisioneiros estavam a dias de ser libertados por Nikita Khrushchev como prova de boa vontade pela visita de Konrad Adenauer à URSS no ano anterior, ano em que alguém temendo que pudessem ser libertados do campo e voltassem à RFA dois SS prisioneiros denunciados por Heinrich Muller, mais conhecido pela alcunha Gestapo Müller e líder da Gestapo, autoproclamado comunista e queixando-se ter sido por eles torturado em Berlim, estava eu dizendo, alguém temendo fossem libertados lhes limpou o sebo.

Porém não será ainda desta vez que Boris encontrará a liberdade, e numa daquelas reviravoltas em que a história é useira e vezeira aparece escalado, juntamente com o seu amigo Anatole (não o de França) para desentupirem as latrinas do gulag. Podia ser pior diz o outro, ao menos assim congelada a merda não deita cheiro. E enquanto trabalham teorizam, sobre as ironias do destino, a ironia e o sentido de humor de Deus., a ressurreição, a perversão, acabando por apostar quem sobreviveria mais tempo nos gulags, se os ateus se os religiosos, o que felizmente chegamos a saber pois D. Leonarda, a narradora, no-lo diz.

Contudo não é difícil de adivinhar, todos sabemos que quem ri por último ri melhor, ou ri mais, Boris não era religioso e quanto ao sentido de humor ficava-se muito atrás de Anatole (não o de França) do qual humor e ironia eram apanágios. Que isto seja suficiente para ficarmos sabendo que, ateus ou religiosos no final serão os amantes do humor quem sobreviverá pois o crente sente-se abandonado por Deus enquanto o ateu se agarrará a qualquer esperança a qualquer homem, e isso será o bastante para lhe evitar o derrame de lágrimas e manter um sorriso na cara, seja ele irónico ou não pois como todos nós sabemos não há idiota que não afirme a pés juntos que sorrindo a vida ganhará novo sentido.

Posto isto, a disponibilidade e clareza com que a história nos foi contada, poderemos afirmar que ainda há narradoras simpáticas, empáticas, e vá lá, bonitas, no caso merece o elogio, até porque o mundo seria muito mais triste se houvesse dúvidas quanto a isso, se ainda as haverá ou não bonitas, claro que sim.


………………………. Continua ………………………



 A MAIS BONITA DA RODA  …       parte 6


Deliciava-me eu lendo O Centro Do Mundo estiraçado no banco do jardim, olhando o parque das crianças desde há muito sem as ditas, quando me fixei na quadrícula de grossas cordas entrelaçadas, em treliça cúbica, cujos pontos de contacto nos vértices se encontravam reforçados por um nó plástico, colorido, forte, rijo e duro, não fossem as criancinhas ao trepar, faltar-lhes o pé, caírem, voarem, estatelarem-se, e fez-se luz ! Ali estava formalizada a vida de Bóris, no espaço quadrangular das possibilidades potenciais, articulado, preso ou seguro por aqueles nós plásticos, quais pontos cardeais, e em cada um deles um facto histórico, em cada um uma verdade, interligando-se entre si como uma teia, uma rede, uma quadrícula.

Estava ali a resposta ao Miguel Fernandes Duarte * Abstracta e na minha frente apresentava-se a estrutura do romance que Bóris arrastava desde Vilnius finalmente explicada aos gentios, exposta. Quase me levantei para a apalpar, verificar se era verdadeira, confirmar, porém uma rajada de vento suão trouxe até mim o cheiro nauseabundo duma qualquer cabeça de sardinha voltando a fazer-se luz ! Isto anda tudo ligado, o romance por Bóris trazido terá encalhado na cabeça degolada duma sardinha numa qualquer rua de Olhão e aí estava a questão explicada, explicadinha, porque como toda a gente sabe um romance não surge do pé para a mão, nem espera por nós ao virar de cada esquina, mas garanto-vos, uma cabeça de sardinha é outra coisa, é outra loiça, não sendo ideia minha essa da cabeça da sardinha é todavia ideia que se aproveite, inda que falha de um banho-maria ou nem estivesse mergulhada em azeite de oliva.  

Mas voltando à vaca fria, que é como quem diz à mão de vaca, com grão ou sem grão, a verdade é que a agitação do mundo por incrível que nos pareça chegava ao gulag, dando a Bóris e a mais umas centenas, ou milhares, esperanças de verem deferido o requerimento solicitando clemência e clamando por inocência que há muito preenchera endereçando-o a Moscovo sem que lá tivesse chegado, aliás nenhum deles fora sequer enviado. Nem o isolamento natural e forçado dos campos de prisioneiros abafava os rumores arrastados pelos sussurros do vento, o Paizinho morrera em 53, portanto havia dois anos ou três, seguira-se-lhe Béria, um bera que fora acusado, julgado, sentenciado, condenado e executado na mesma manhã, tempo demasiado para quem tão pouco valia bem vistas as coisas. Nikita Khrushchev já prometera soltar uns presidiários alemães como prova de boa vontade pela visita à URSS no ano anterior e consequente legitimação do regime e devida a Konrad Adenauer.

No lager, digo no campo, digo no gulag ninguém sabia, mas sabemos nós ao dominarmos o ritmo do pinga-pinga dos factos nesta história em que as páginas estão seguras por eles factos ou penduradas deles por pioneses, dizia eu, aqui vai mais um facto ignorado pela população prisional mas por nós conhecido, o Sputnik estava para ser solto, atirado, lançado, sê-lo-ia exactamente no dia 4 de Outubro do ano seguinte, 1957, pelas 7:28 da tarde, portanto acumulavam-se os indícios e os augúrios que alimentavam a esperança dos prisioneiros como quem alimenta uma fornalha, perdão, retiro o vocábulo fornalha, estamos ainda muito próximos de 45 e a palavra carrega uma simbologia péssima, negativa, o que contudo não retira um grama ao ânimo que estes desgraçados sentiam atiçar-lhes o sangue nas veias e as expectativas.

Desconheciam eles que naquele ano, talvez naquele preciso momento decorria em Moscovo o XX Congresso do PCUS e o paizinho, já o podemos escrever com letra pequena sem medo de represálias, era denunciado, incriminado, tratado abaixo de cão, e por várias vezes foi sujeito a ressurreição p’ra que de novo o pudessem matar e matá-lo melhor, enterrando-o pela quinta, sexta ou sétima vez, porque antes da oitava já toda a gente concluíra que o paizinho fora um fenómeno histórico, nascera antes de tempo e falecera tarde demais, salvara a mãe Rússia mas deixara-lhe os alicerces minados, assentes em areia movediça, lama desnatada a que faltava a firmeza da ética, da moral e muitos outros cimentos os quais fariam com que ela não durasse muito, e não durou, em 89 caiu, o muro soçobrou como um castelo de cartas e com ele a URSS e seus satélites, como se assolada por um tsunami arrastando tudo, mesmo tudo.

Devido a isso ou porque o dia estivesse mesmo muito frio ninguém no campo trabalhava nesse dia e todos estavam estranhamente alegres, expectantes. No pátio coberto de neve alguns prisioneiros juntavam-se em grupinhos e as conversas de uns sobrepunham-se por vezes às conversas de outros grupos mais próximos, num deles um maltrapilho queixava-se da sua sorte, a pena ia já em doze anos e nem sabia quando terminaria, tudo porque alguém o denunciara e acusara de ter chamado contra revolucionário a Karl Radek ** prisioneiro a quem de pronto outro dos interlocutores respondeu,

- E eu estou aqui vai para dez porque jurei que Karl Radek não era nenhum contra-revolucionário.

gerou-se no círculo um silêncio só compreensível por quem vivesse paredes meias com o absurdo e, como se o terceiro elemento se calasse e nada dissesse um dos outros dois espicaçou-o, e tu ? Tu o que dizes, que tens para contar ?

- Eu ? Nada, eu sou o Karl Radek.

Se isto não é um absurdo, se a ideia aqui condensada não é um ponto importante onde escorar um romance não sei o que seja, nem o que possa sê-lo. Como poderemos esperar que Boris, ou mesmo D. Leonarda nos contem uma história certinha se este mundo está num total desacerto, se nem Boris nem ela jogarão com o baralho todo, pois é ela mesma quem nos diz, Olhão estava cheio de peculiaridades, e só quem não saiba o que isto é pode ignorar o mal que faz, peculiaridades são piores que pedras nos rins, ou quistos no fígado, peculiaridades só os sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki teriam mais e mais fortes que o pessoal de Olhão, os quais para além disso ainda aguentam com o calor se calha estar de levante, ou será sotavente, agora perdi-me, estou confundido.

De tanto piar às tantas julgo estar no ritmo certo mas quando calha  e por dá cá aquela palha dou comigo a dançar com a mais feia quando, em boa verdade, contínuo dançando com a moçoila mais bonita desta roda.




** https://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Radek


A RAPARIGA DÁ COMIGO EM DOIDO, parte 7 e última

Bóris sabe, só ele sabe por que desapareceu, já por uma ou duas vezes apalpara terreno e não conseguira apoio ou sinal positivo, encorajamento, de modo relutante ela fizera frente a ambos os avanços, fizera-lhes orelhas moucas, não que desgostasse de música pois se lhe falassem de literatura ou se debruçassem sobre a arte do romance ninguém duvidaria que tal matéria seria música para os seus ouvidos. Porém Boris estava nos antípodas das suas preferências, nele detestava as polainas, as meias brancas, a bengala, com castão ou sem castão, o gesto de cruzar ou descruzar as pernas, as calças de vinco vincado, o raccoon coat e até o ar demasiado asseado.

Para culminar Boris não gostava de cães, em boa verdade as cadelas dela também o detestavam. Era demasiado, a sua personalidade nunca deixaria de chocar com a de Bóris e ela mulher madura, segura de si e após tantos anos e finalmente bem instalada na vida, comodamente diria, não estaria com disposição para mudanças comprovadamente contundentes com o seu volúvel, sensível e metafísico caracter. Chegara a uma idade em que mudanças de hábitos de elevado teor incomodam mais que o prazer que porventura possam proporcionar, pelo que, mulher de costumes arreigados, negar-se-ia sempre a trocar o saquinho de pevides e a alfarroba pelo balde de pipocas, pormenor aparentemente subtil mas que Boris contudo não percebera.

Optimista e confiante Boris depressa a esqueceu, e não tendo conseguido barco para Marrocos foi parar nem sabemos como à Alemanha de Hitler e ao país dos sovietes onde acaba por ser encarcerado, conforme a história que os meus amigos e amigas acabam de ler. Afogado no mar de atribulações que a segunda guerra mundial fizera encapelar supomos que a esquecera, nesse particular Boris não seria muito diferente de qualquer outro, nem do portuga que se julga tudo e todos e afinal não é ninguém, nem sabe ser ele e nem é.  

Mas não ela a quem ele ficara atravessado na garganta como uma espinha de sardinha, talvez da mesma sardinha que aparecera degolada numa tarde ensolarada e num passeio térreo da linda vila de Olhão. Ela não conseguira esquecê-lo e mal pôde, mal teve vagar, oportunidade, vá de indagar, perguntar, questionar, porque no final é isso que nos diz, e conta, todo o arrazoado exotérico de personagens convocadas a dar seu testigo e a quem eram colocadas sempre as mesmas questões, todas elas em redor do inesquecível Boris.

Desta investigação, destes testemunhos resulta um desfilar das gentes e memórias de Olhão, através de cuja edição e apresentação pública estou em crer ter D. Leonarda feito mais pela sua linda vila que todos os planos quinquenais e presidenciais da autarquia, passados e futuros. Do turismo à curiosidade poucos recusarão conhecer o roteiro por Boris Skossyreff percorrido em Olhão, D. Leonarda mostrou-se perita em excitar-nos tanto a curiosidade quão a atenção.

Eu sabia os algarvios contrabandistas, todavia não os conhecia dedicados à pesca de bacalhau nos mares árcticos e de cuja faina D. Leonarda faz uma descrição perfeita, soberba, e que se estende dos tempos em que eram praticada com base na arte xávega até aos tempos nos quais o futurismo era príncipe consorte e rei, tendo esquecido unicamente o admiral Tenreiro de má memória, o que nada me admira dadas as inclinações detectadas e cuidadosamente veladas. 

Este meu caudal palavroso tem um fito, aliás dois fitos e uma fita, o fito de me entreter lendo, uma leitura critica, e em simultâneo elaborar uma tão completa quão possível sinopse da obra em causa, se é justo que, dada a extensão atingida continue chamando-lhe sinopse, mas como designá-la ou classificá-la ?  Pequeno ensaio ? Não me fere a ideia, nem distorce a intenção, colocar ao peito de D. Leonarda uma fita de cor bem viva atravessada à tiracolo e agradecer-lhe, parabenizá-la, homenageando-a pela sua louvável, extravagante, inusitada, esquisita e excepcional obra.

Infelizmente nem todos conseguirão alcançar o maravilhoso prodígio desta criação, a beleza de Ana Cristina Leonardo, que conheço aparentemente bem, sei onde pára, o que faz, até já a lobriguei nalgumas fotos, e na Tv, sei que as adora e adora passear as cadelas, perdoem-me a redundância, e sei pois acabei neste momento a leitura d’O CENTRO DO MUNDO, obra sobrenatural, portentosa, construída pacientemente como quem completaria um Lego, obra que a partir de pequenos factos históricos, dispersos, aleatórios, por vezes propositada e ficcionalmente deturpados a fim de sobrelevarem pela ironia a própria história forçando-a a um humor a que ela dificilmente cede ou se acostuma, dizia eu ter D. Leonarda construído um romance pujante a partir de nadas, de nanhas como se diz na minha terra, ou, para utilizar a sua própria e peculiar linguagem, hodiernamente partindo de Pokémons, construindo uma teia, tecendo uma história pícara onde factos dispersos mas veros se entrecruzam com a ficção, originando uma fórmula estruturante de longe muito mais impressionante que o Atomium, de Bruxelas, consulte-se a Wikipédia, porque isto anda tudo ligado e porque é assim que se faz a ficção, já a fissão é diferente e consegue-se de diferente modo.

D. Leonarda demonstrou-nos à saciedade ser possuidora duma beleza única, admirável, e superiormente entendida em literatura a ponto de nos demonstrar e fazer compreender que o romance, a ficção, a sua génese e construção, é sobretudo ter a ousadia e a capacidade de erguer uma casa, em Olhão ou não, cubista ou não, começando-a pelo telhado mas conferindo-lhe unidade e solidez. Muito se poderia dizer acerca desta sua superlativa obra. Já uma vez tinha dito de Ana Cristina Leonardo ser ela uma autêntica enciclopédia ambulante* mas como sou do Boavista e jogo no Olhanense hoje fico-me por aqui pois não desejo que tomem por exagerado o meu testemunho. Até por D. Leonarda nada me pagar, nem me dever nada, nem eu a ela devo mais que um grande muito obrigado por este fantástico romance, inventado, criado aparentemente do nada, e diria eu que num novo velho género, uma nova escola, nova tendência e muito mais que o realismo mágico, pois desta vez confrontamo-nos com o fantástico maravilhoso ou o maravilhoso fantástico que passará doravante a ser conhecido e reconhecido pelo romance género “al-gharbio”. Obrigado Ana Cristina Leonardo.













           



sábado, 30 de abril de 2016

343 - O LIVRO DA LEOPARDA *................................


Não sei quando foi que me enganei e meti na cabeça que o cacilheiro era aquele, por isso quando me vi nas Berlengas fiquei sem saber quem culpar que não eu. Falara-se em farol e em cadelas e a minha mente divagara para noroeste, onde certa vez para cumprir uma convalescença passara umas férias de sonho com a Carmelinda, o problema deu-se passadas semanas, instáveis como são as mulheres, depois de bem tratado e recebido acabei afastado como um cão, uma cadela a Carmelinda.

Por isso estava na ria quando dei por mim, dormira bem e só acordara a páginas tantas, ainda sonhando com a antiga base de Centro de Aviação Naval do Algarve, com a I Guerra Mundial, com minas, com um tempo que em boa verdade dobrou em mim as razões para duvidar daquela paisagem mas, desde o início nas nuvens, nem me admira ter embalado no engano, não fora Clézio, que me acompanhava perseguindo sem sucesso o cão, ter-me dado uma cotovelada muito provavelmente nem teria acordado do processo em que me enredei.

Não estou em férias, contudo deixei-me levar por esta leitura leve e indolente que me trocou as voltas, terá sido a similitude das capas a dar-me a volta já que me mentalizara e prepara para uma outra obra, para um tour de force, e colocara à mão dicionários e enciclopédias, um passe-vite para diluir e dois passadores para coar e destilar um soluto altamente concentrado, sei lá, como o leite condensado ou o ketchup, ligara mesmo a máquina do café e arrumara a seu lado duas embalagens grandes de capsulas da Delta Q nº 10, e quando afinal puxo as redes, não é que viessem vazias, eu é que estranhei logo a sua lassidão, isso e uma insustentável leveza, preparara-me para as puxar, para me esforçar e no instante quase caí de cu com a reacção à força aplicada e que não teve contraponto.

Não chegou a ser uma desilusão, foi mais uma descompressão, e vindo o dia de sol, sem ventos nem chuviscos, céu limpo, livre de nimbos, cúmulos, cirros e estratos, morador que sou e entalado entre o mosteiro da Cartuxa de Santa Maria de Scala Coeli e o Alto de S. Bento, tendo à minha beira extenso colorido e atapetado florido de ervas e malmequeres, agarrei num extracto bancário acabadinho de chegar, enfiei um boné e um blusão leve a fim de tornear a Torralva e feito cigano atrevi-me a galgar muros e prados até conquistar a Torre do Geraldo na encosta de S. Bento, onde a história dá por degolados pelas tropas de Geraldo Sem Pavor dois sarracenos que estariam de vigia e sonhando com Xerazade correria o ano de 1165.

Não levei comigo cão nem cadela, sei que ao voltar terei esperando-me uma corridinha da Mimi, direitinha a mim de rabo espetado no ar, atrapalhando-me o andar e roçando-se-me nas pernas. Foi precisamente ao regressar e imbuído destes pensamentos que ia sendo colhido por uma das embarcações de Mestre Casaca, traz nas artes da xávega uma dúzia de táxis, ou mais, e ainda o pronto-socorro, que em todo o dia não param, para cá e para lá, andam loucos desde que alguém agitou os mares e Neptuno lhes atiçou a Uber, não há farol aqui mas montou uma altíssima antena para os radiotáxis e que os russos devem conseguir ver da estação espacial.

Caminhei umas boas duas horas, rebolei-me nas ervas, li, ouvi música, noutros tempos teria mandado um charro abaixo, porém agora tenho que manter conduta exemplar ou não me perdoariam. Foi tarde tão descontraída que chegado a casa levava ainda atravessado nos dentes um comprido tronco de palmeira que só larguei para conseguir transpor o portão e farejar tudo com muita atenção,

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
                                                 Mário de Sá-Carneiro

Volto a dar pelo silêncio, um silêncio de que nunca me dera conta mas há mais de duas horas me acompanha. Verdade que descomprimi, é um direito que me assiste, e de vez em quando até sabe bem, distender a mente e os músculos, em especial os músculos, foi o que vi na Leoparda, rastejando entre as flores e as ervas, confundindo-se com a vegetação, descomprimindo, como eu e, em vez de malhar no ferro frio tentando meter a densidade do universo numa coluna de x palavras ou y caracteres que certamente a obrigam a mamar, quero dizer aguentar, respeitar, cumprir, tirou férias e agarrando na cadela foi desarvorar, apanhar ar, tirar vacances, tal qual eu tirei os ténis ao chegar a casa e me estendi no sofá, sofrido das cruzes, um pé descalçando o outro e versa vice. 

Nem demorou que os Reebok caminhassem ao calhas no meio da sala, não tarda irá o boné o polo, e a Leoparda, como será ao chegar a casa ? A música baixinha ? Dedicada à cozinha ? Arrumadinha ?

Era eu uma vez estudante e, não lembro já o porquê, procurei umas colegas num quarto que tinham arrendado no burgo, a Eduarda Branco, a Teresa qualquer coisa e a Dalila não sei quantos uma algarvia do Burgau, eu nem queria acreditar, jamais vira tamanha desarrumação, e tanto sutiã tanta calcinha tanta cueca até debaixo das camas, senti-me ligeiramente deslocado e enfastiado, acabámos o estágio e nunca mais as vi, nunca mais consegui esquecer tal nem deixar de me preocupar com o facto de sim ou não, se já terão lavado aquela roupa suja toda… 

Mas ela não lava roupa p’a descontrair, ela sonha, ela voa, ela plana, abre os braços e lá vai ela, ela e a cadela, tal qual eu, não eu com os Beatles, muito menos com o amaneirado do McCartney, eu é mais com a pesca, com a Micas do Quiosque Primavera, a Célia da Padaria Pão Da Terra, a Serafina das análises, a Cândida da farmácia, a Maria Júlia da pizzaria, a Lourdes da frutaria, ela perdeu a relação ou as relações disse a páginas tantas, pois eu procuro é mantê-las, cultivá-las, ela entrava em campo e chutava, chutava ou fintava e fintava, já eu quando entrava em campo fumava, fumava … Que tomará para sonhar assim ? Lá que descomprime, descomprime, e lá se vai a realidade…


Aliviar é a segunda coisa que mais gosto de fazer, aliviar-me, larguei o passe-vite e os passadores ou coadores, aumentei o volume ao Jorge Nice a fim de abafar por essa via outros ruídos e sentei-me, como que num cadeirão, numa cadeira de baloiço ou num trono e ali me deixei ficar, meditando, nas Berlengas, no farol, nos petiscos do velho Baltazar, a propósito a coisa que mais gosto é comer, comer e meditar, e ali estava eu e a cadela da Carmelinda, sim, primeiro um anjo para mim depois uma autêntica cadela, só faltou morder-me, sei do que as mulheres são capazes quando estão zangadas, temam-lhes as represálias…

Tranquei a página à editora não vá ela querer ferrar-me…

Por isso voltei a sentar-me, p’a descontrair de novo, p’a descontrair mais, e preparei-me para focar a atenção na Grande Golpada, ou na Golpada à Italiana, Um Golpe à Italiana, livro numa mão, comando na outra mas na hora H o CD emperrou e népia, perdi a calma…


Felizmente a Leoparda andava calma, tirara férias, e a sua calma trouxe paz à aldeia que costumava rondar, paz e contenção, é bom fugir à pressão, à compressão dos dias, antes levar com alguns chuviscos no toutiço e aguentar a pressão atmosférica, essa ao menos descomprime, eu descomprimi deste turbilhão que vi, vivi e senti, queria agradecer mas, um velho conselho traz-me de volta ao bom senso, virei bicho cortês, cavalheiro, foi isso, armei-me de bom senso, sensibilidade e bom senso. 

A pressão atmosférica muda-nos, humaniza-nos, atrai os chuviscos, pode até molhar-nos claro, se não corrermos as janelas de caixilho, quanto às pessoas, as pessoas realmente devem ser deixadas em paz…  






quinta-feira, 28 de abril de 2016

342 - O LIVRO DA LEONARDA * ..............................

                                          
           
Era grande a expectativa naquele livrinho, tanto mais que tinha deixado para trás um quid pro quo com a editora, fiel e canina defensora da autora, questões de estética a que a editora faltou com a ética e a quem tive que ludibriar para conseguir um dos exemplares. (1)

Grande era realmente a expectativa, tanto mais que adoro lê-la, tal como adoro cadelas, verdade que por questões práticas tenho uma gata, o que não me impede adorar a canzoada do meu filho. Isto anda tudo ligado, também estive algumas vezes naquela ilha, e nas Berlengas, de convalescença, com a Carmelinda e o velho Baltazar, que era faroleiro e óptimo cozinheiro, já lá vão uns bons quarenta anitos.

Mal compro o jornal a primeira coisa a ler é a Leonarda, como eu e o meu filho tratamos entre nós a Ana Cristina Leonardo, de quem somos leitores fiéis. Adoramos os seus enormes textos e a sua extraordinária clareza e capacidade de análise e síntese, aquilo é cultura, cultura destilada, depurada, poderão portanto aquilatar das minhas expectativas. Nem foi a capa nem o trabalho de handcraft pingando aos poucos uma boa estratégia de marketing, mostrada gota a gota, que me convenceram, aliás tão grande era a expectativa que quando recebi o pacote e o sopesei pensei logo nos meus queridos dezanove euros.

Corri para dentro e abri-o precipitadamente, mesmo assim, saquei-o forçada e desajeitadamente do envelope e fiquei a mirá-lo e a remirá-lo. Deixei que a emoção tomasse conta de mim calmamente e, num repente quebrou-se o feitiço, isto é, deixei de embirrar com aquela capa psicadélica que inicialmente me lembrara a bancada de mestre Paulino, sim, esse mesmo, o dos "pássaros de poeta", sempre abarrotada de tintas entornadas, misturadas, experimentadas, esqueci tudo o resto ao ver-me transportado para os meus doze, treze anos, para o meu primeiro emprego, a SOMEFE, o senhor Nelson guarda livros, os grandes alfarrábios cinzentos do Deve e do Haver que me calhava transportar de lado para lado, a capa de pano, manchada, tal qual esta capa da Leonarda, depois as caixas de arquivo antigas, o mesmo padrão embora mais miudinho, mais tarde sujeito a uma evolução que tornou as caixas e o padrão num amarelo abelha imitando, mal, a pele dos leopardos das neves. 

Na sala ao lado o velho Rosado, digo o senhor Rosado o patrão, frente a ele um militar reformado dos abastecimentos, o Coronel Varela salvo erro, a seu lado um senhor Piteira de modos afectados, amaneirados, e de casaco, sempre o mesmo casaco de espiga, e emparelhando com ele uma ela, havia uma ela que alegrava todo o pessoal do escritório, das oficinas e da fundição, os cabelos louros, um louro pintado, lábios tintos de vermelho vivo, Francisca, acho que era assim que se chamava, D. Francisca, ou D. Maria, sempre pestanejando para o senhor Piteira e revolvendo de ciúmes as entranhas ao senhor Nelson. 

A esta hora decerto quase todos enterrados, e eu para aqui lembrando-os, de livro ao peito, nunca me enganaram, em especial aquela parelha, aqueles dois... 


     
 Leopardo das neves, provavelmente uma fêmea, uma “Leoparda”

E, abraçado ao livro da Leonarda tal qual em menino abraçara os calhamaços da contabilidade corro para a salinha, ainda não o abri e já o amo o raio do livro, o mestre Palolo rindo porque ao debruçar-me sobre o balcão do atendimento pressionara os intestinos e largara um valente traque, mestre Palolo rindo, o Malato rindo, esse não ri mais pois há tempos deu-lhe um badagaio, uma trombose ou coisa assim que o deixou arrumado e já só diz dádá dádi, eu todo vermelho de corado, o senhor Nelson rindo também.

Mestre Palolo que anos mais tarde me convidaria a frequentar os convívios de tertúlias  d’A Trave, onde pontificavam o seu mano, António Palolo, José Cachatra, mestre Paulino Ramos, mestre expressionismo, mestre impressionismo, o senhor abstracto, messier surrealisme, Pássaros de Poeta, Évora, a Urbana, o senhor Amado, as minhas tias, o Sinca Ariane novo, Sesimbra. Finalmente abro-o, exemplar único, fait à la main, procuro-lhe o número, se fosse numerado o meu seria o 1283/72, não é, é o ISBN qualquer coisa, capa dura, cartão, como o cartão das tais velhas caixas de arquivo, papel de primeira, impressão personalizada, dedicatórias e citações em inglês, francês, etrusco e sumério, isto é cultura porra.

 É leve e foi caro mas valeu a pena, handcraft, cosido à la main, à mão, coisa pessoal, não vem assinado mas assinei-o eu, Baião, com um grande rabisco a rematar o ó, agora é meu, pessoal e intransmissível, nem irá para a estante, não tem lombada, perder-se-ia entre os outros troféus, cerimoniosamente irei colocá-lo onde todos o vejam, como bibelô largado descuidadamente no aparador, reparo bem e são mesmo citações de Clézio, Dickinson e Francis Ponge, quanto não vale isso porra ? Quanto ? Digam ! E as Fotos ? 

A falésia, a flora, o farol novo, finalmente dou-me conta do papel vegetal e apalpo-o entre os dedos, os olhos fechados, segurando sem apertar a banha que a mãezinha me mandara buscar à mercearia do senhor Gerardo, na volta correndo atrapalhado para que a banha não tivesse tempo de derreter, o papel, grosso como este, opaco ou transparente dependendo da gordura impregnando-o. 

Anos mais tarde o professor Silva, os transferidores, compassos e tira-linhas, os meus dedos pretos da tinta da china, a folha de papel vegetal impecável, sem um borrão, círculos, circunferências, revoluções, rectângulos, cones, todos os sólidos desenhados com primor, limpo uma lágrima, depois uma cascata delas, vou lê-lo às escondidas, só para mim, só eu…

Por este turbilhão que vi, vivi e senti queria agradecer mas, folheio-o e dou com um conselho que me traz de volta ao bom senso, realmente as pessoas devem ser deixadas em paz….