Não
sei quando foi que me enganei e meti na cabeça que o cacilheiro era aquele, por
isso quando me vi nas Berlengas fiquei sem saber quem culpar que não eu.
Falara-se em farol e em cadelas e a minha mente divagara para noroeste, onde certa
vez para cumprir uma convalescença passara umas férias de sonho com a
Carmelinda, o problema deu-se passadas semanas, instáveis como são as mulheres, depois de bem
tratado e recebido acabei afastado como um cão, uma cadela a Carmelinda.
Por
isso estava na ria quando dei por mim, dormira bem e só acordara a páginas
tantas, ainda sonhando com a antiga base de Centro de Aviação Naval do Algarve,
com a I Guerra Mundial, com minas, com um tempo que em boa verdade dobrou em
mim as razões para duvidar daquela paisagem mas, desde o início nas nuvens, nem
me admira ter embalado no engano, não fora Clézio, que me acompanhava perseguindo
sem sucesso o cão, ter-me dado uma cotovelada muito provavelmente nem teria
acordado do processo em que me enredei.
Não
estou em férias, contudo deixei-me levar por esta leitura leve e indolente que
me trocou as voltas, terá sido a similitude das capas a dar-me a volta já que
me mentalizara e prepara para uma outra obra, para um tour de force, e colocara
à mão dicionários e enciclopédias, um passe-vite para diluir e dois passadores
para coar e destilar um soluto altamente concentrado, sei lá, como o leite
condensado ou o ketchup, ligara mesmo a máquina do café e arrumara a seu lado duas
embalagens grandes de capsulas da Delta Q nº 10, e quando afinal puxo as redes, não é que viessem vazias, eu é que estranhei logo a sua lassidão, isso e uma
insustentável leveza, preparara-me para as puxar, para me esforçar e no
instante quase caí de cu com a reacção à força aplicada e que não teve
contraponto.
Não
chegou a ser uma desilusão, foi mais uma descompressão, e vindo o dia de sol,
sem ventos nem chuviscos, céu limpo, livre de nimbos, cúmulos, cirros e
estratos, morador que sou e entalado entre o mosteiro da Cartuxa de Santa Maria de Scala Coeli e o Alto de S. Bento, tendo à minha beira extenso colorido e
atapetado florido de ervas e malmequeres, agarrei num extracto bancário
acabadinho de chegar, enfiei um boné e um blusão leve a fim de tornear a
Torralva e feito cigano atrevi-me a galgar muros e prados até conquistar a
Torre do Geraldo na encosta de S. Bento, onde a história dá por degolados pelas
tropas de Geraldo Sem Pavor dois sarracenos que estariam de vigia e sonhando
com Xerazade correria o ano de 1165.
Não
levei comigo cão nem cadela, sei que ao voltar terei esperando-me uma
corridinha da Mimi, direitinha a mim de rabo espetado no ar, atrapalhando-me o
andar e roçando-se-me nas pernas. Foi precisamente ao regressar e imbuído
destes pensamentos que ia sendo colhido por uma das embarcações de Mestre
Casaca, traz nas artes da xávega uma dúzia de táxis, ou mais, e ainda o pronto-socorro,
que em todo o dia não param, para cá e para lá, andam loucos desde que alguém
agitou os mares e Neptuno lhes atiçou a Uber, não há farol aqui mas montou uma
altíssima antena para os radiotáxis e que os russos devem conseguir ver da
estação espacial.
Caminhei
umas boas duas horas, rebolei-me nas ervas, li, ouvi música, noutros tempos
teria mandado um charro abaixo, porém agora tenho que manter conduta exemplar
ou não me perdoariam. Foi tarde tão descontraída que chegado a casa levava
ainda atravessado nos dentes um comprido tronco de palmeira que só larguei para
conseguir transpor o portão e farejar tudo com muita atenção,
Eu
não sou eu nem sou o outro,
Sou
qualquer coisa de intermédio:
Pilar
da ponte de tédio
Que
vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro
Volto
a dar pelo silêncio, um silêncio de que nunca me dera conta mas há mais de duas
horas me acompanha. Verdade que descomprimi, é um direito que me assiste, e de
vez em quando até sabe bem, distender a mente e os músculos, em especial os
músculos, foi o que vi na Leoparda, rastejando entre as flores e as ervas, confundindo-se
com a vegetação, descomprimindo, como eu e, em vez de malhar no ferro frio
tentando meter a densidade do universo numa coluna de x palavras ou y
caracteres que certamente a obrigam a mamar, quero dizer aguentar, respeitar, cumprir,
tirou férias e agarrando na cadela foi desarvorar, apanhar ar, tirar vacances,
tal qual eu tirei os ténis ao chegar a casa e me estendi no sofá, sofrido das
cruzes, um pé descalçando o outro e versa vice.
Nem demorou que os Reebok caminhassem
ao calhas no meio da sala, não tarda irá o boné o polo, e a Leoparda, como será
ao chegar a casa ? A música baixinha ? Dedicada à cozinha ? Arrumadinha
?
Era
eu uma vez estudante e, não lembro já o porquê, procurei umas colegas num
quarto que tinham arrendado no burgo, a Eduarda Branco, a Teresa qualquer coisa
e a Dalila não sei quantos uma algarvia do Burgau, eu nem queria acreditar,
jamais vira tamanha desarrumação, e tanto sutiã tanta calcinha tanta cueca até
debaixo das camas, senti-me ligeiramente deslocado e enfastiado, acabámos o
estágio e nunca mais as vi, nunca mais consegui esquecer tal nem deixar de me
preocupar com o facto de sim ou não, se já terão lavado aquela roupa suja toda…
Mas
ela não lava roupa p’a descontrair, ela sonha, ela voa, ela plana, abre os
braços e lá vai ela, ela e a cadela, tal qual eu, não eu com os Beatles, muito
menos com o amaneirado do McCartney, eu é mais com a pesca, com a Micas do
Quiosque Primavera, a Célia da Padaria Pão Da Terra, a Serafina
das análises, a Cândida da farmácia, a Maria Júlia da pizzaria, a Lourdes da
frutaria, ela perdeu a relação ou as relações disse a páginas tantas, pois eu
procuro é mantê-las, cultivá-las, ela entrava em campo e chutava, chutava ou
fintava e fintava, já eu quando entrava em campo fumava, fumava … Que tomará
para sonhar assim ? Lá que descomprime, descomprime, e lá se vai a realidade…
Aliviar
é a segunda coisa que mais gosto de fazer, aliviar-me, larguei o passe-vite e
os passadores ou coadores, aumentei o volume ao Jorge Nice a fim de abafar por
essa via outros ruídos e sentei-me, como que num cadeirão, numa cadeira de
baloiço ou num trono e ali me deixei ficar, meditando, nas Berlengas, no farol,
nos petiscos do velho Baltazar, a propósito a coisa que mais gosto é comer,
comer e meditar, e ali estava eu e a cadela da Carmelinda, sim, primeiro um
anjo para mim depois uma autêntica cadela, só faltou morder-me, sei do que as
mulheres são capazes quando estão zangadas, temam-lhes as represálias…
Tranquei
a página à editora não vá ela querer ferrar-me…
Por
isso voltei a sentar-me, p’a descontrair de novo, p’a descontrair mais, e preparei-me
para focar a atenção na Grande Golpada, ou na Golpada à Italiana, Um Golpe à
Italiana, livro numa mão, comando na outra mas na hora H o CD emperrou e népia,
perdi a calma…
Felizmente
a Leoparda andava calma, tirara férias, e a sua calma trouxe paz à aldeia que
costumava rondar, paz e contenção, é bom fugir à pressão, à compressão dos
dias, antes levar com alguns chuviscos no toutiço e aguentar a pressão
atmosférica, essa ao menos descomprime, eu descomprimi deste turbilhão que vi,
vivi e senti, queria agradecer mas, um velho conselho traz-me de volta ao bom
senso, virei bicho cortês, cavalheiro, foi isso, armei-me de bom senso, sensibilidade
e bom senso.
A pressão atmosférica muda-nos, humaniza-nos, atrai os chuviscos,
pode até molhar-nos claro, se não corrermos as janelas de caixilho, quanto às
pessoas, as pessoas realmente devem ser deixadas em paz…