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quinta-feira, 28 de abril de 2016

342 - O LIVRO DA LEONARDA * ..............................

                                          
           
Era grande a expectativa naquele livrinho, tanto mais que tinha deixado para trás um quid pro quo com a editora, fiel e canina defensora da autora, questões de estética a que a editora faltou com a ética e a quem tive que ludibriar para conseguir um dos exemplares. (1)

Grande era realmente a expectativa, tanto mais que adoro lê-la, tal como adoro cadelas, verdade que por questões práticas tenho uma gata, o que não me impede adorar a canzoada do meu filho. Isto anda tudo ligado, também estive algumas vezes naquela ilha, e nas Berlengas, de convalescença, com a Carmelinda e o velho Baltazar, que era faroleiro e óptimo cozinheiro, já lá vão uns bons quarenta anitos.

Mal compro o jornal a primeira coisa a ler é a Leonarda, como eu e o meu filho tratamos entre nós a Ana Cristina Leonardo, de quem somos leitores fiéis. Adoramos os seus enormes textos e a sua extraordinária clareza e capacidade de análise e síntese, aquilo é cultura, cultura destilada, depurada, poderão portanto aquilatar das minhas expectativas. Nem foi a capa nem o trabalho de handcraft pingando aos poucos uma boa estratégia de marketing, mostrada gota a gota, que me convenceram, aliás tão grande era a expectativa que quando recebi o pacote e o sopesei pensei logo nos meus queridos dezanove euros.

Corri para dentro e abri-o precipitadamente, mesmo assim, saquei-o forçada e desajeitadamente do envelope e fiquei a mirá-lo e a remirá-lo. Deixei que a emoção tomasse conta de mim calmamente e, num repente quebrou-se o feitiço, isto é, deixei de embirrar com aquela capa psicadélica que inicialmente me lembrara a bancada de mestre Paulino, sim, esse mesmo, o dos "pássaros de poeta", sempre abarrotada de tintas entornadas, misturadas, experimentadas, esqueci tudo o resto ao ver-me transportado para os meus doze, treze anos, para o meu primeiro emprego, a SOMEFE, o senhor Nelson guarda livros, os grandes alfarrábios cinzentos do Deve e do Haver que me calhava transportar de lado para lado, a capa de pano, manchada, tal qual esta capa da Leonarda, depois as caixas de arquivo antigas, o mesmo padrão embora mais miudinho, mais tarde sujeito a uma evolução que tornou as caixas e o padrão num amarelo abelha imitando, mal, a pele dos leopardos das neves. 

Na sala ao lado o velho Rosado, digo o senhor Rosado o patrão, frente a ele um militar reformado dos abastecimentos, o Coronel Varela salvo erro, a seu lado um senhor Piteira de modos afectados, amaneirados, e de casaco, sempre o mesmo casaco de espiga, e emparelhando com ele uma ela, havia uma ela que alegrava todo o pessoal do escritório, das oficinas e da fundição, os cabelos louros, um louro pintado, lábios tintos de vermelho vivo, Francisca, acho que era assim que se chamava, D. Francisca, ou D. Maria, sempre pestanejando para o senhor Piteira e revolvendo de ciúmes as entranhas ao senhor Nelson. 

A esta hora decerto quase todos enterrados, e eu para aqui lembrando-os, de livro ao peito, nunca me enganaram, em especial aquela parelha, aqueles dois... 


     
 Leopardo das neves, provavelmente uma fêmea, uma “Leoparda”

E, abraçado ao livro da Leonarda tal qual em menino abraçara os calhamaços da contabilidade corro para a salinha, ainda não o abri e já o amo o raio do livro, o mestre Palolo rindo porque ao debruçar-me sobre o balcão do atendimento pressionara os intestinos e largara um valente traque, mestre Palolo rindo, o Malato rindo, esse não ri mais pois há tempos deu-lhe um badagaio, uma trombose ou coisa assim que o deixou arrumado e já só diz dádá dádi, eu todo vermelho de corado, o senhor Nelson rindo também.

Mestre Palolo que anos mais tarde me convidaria a frequentar os convívios de tertúlias  d’A Trave, onde pontificavam o seu mano, António Palolo, José Cachatra, mestre Paulino Ramos, mestre expressionismo, mestre impressionismo, o senhor abstracto, messier surrealisme, Pássaros de Poeta, Évora, a Urbana, o senhor Amado, as minhas tias, o Sinca Ariane novo, Sesimbra. Finalmente abro-o, exemplar único, fait à la main, procuro-lhe o número, se fosse numerado o meu seria o 1283/72, não é, é o ISBN qualquer coisa, capa dura, cartão, como o cartão das tais velhas caixas de arquivo, papel de primeira, impressão personalizada, dedicatórias e citações em inglês, francês, etrusco e sumério, isto é cultura porra.

 É leve e foi caro mas valeu a pena, handcraft, cosido à la main, à mão, coisa pessoal, não vem assinado mas assinei-o eu, Baião, com um grande rabisco a rematar o ó, agora é meu, pessoal e intransmissível, nem irá para a estante, não tem lombada, perder-se-ia entre os outros troféus, cerimoniosamente irei colocá-lo onde todos o vejam, como bibelô largado descuidadamente no aparador, reparo bem e são mesmo citações de Clézio, Dickinson e Francis Ponge, quanto não vale isso porra ? Quanto ? Digam ! E as Fotos ? 

A falésia, a flora, o farol novo, finalmente dou-me conta do papel vegetal e apalpo-o entre os dedos, os olhos fechados, segurando sem apertar a banha que a mãezinha me mandara buscar à mercearia do senhor Gerardo, na volta correndo atrapalhado para que a banha não tivesse tempo de derreter, o papel, grosso como este, opaco ou transparente dependendo da gordura impregnando-o. 

Anos mais tarde o professor Silva, os transferidores, compassos e tira-linhas, os meus dedos pretos da tinta da china, a folha de papel vegetal impecável, sem um borrão, círculos, circunferências, revoluções, rectângulos, cones, todos os sólidos desenhados com primor, limpo uma lágrima, depois uma cascata delas, vou lê-lo às escondidas, só para mim, só eu…

Por este turbilhão que vi, vivi e senti queria agradecer mas, folheio-o e dou com um conselho que me traz de volta ao bom senso, realmente as pessoas devem ser deixadas em paz….