quinta-feira, 17 de novembro de 2016

397 - TIRAR O CAVALINHO DA CHUVA ............…..


Andava eu concentrado no estudo e apreciação de Enrique Vila-Matas, um jornalista espanhol, escritor conceituado, e às voltas com um seu livro, mais concretamente a sua “História Abreviada da Literatura Portátil“ uma obra absurda que estava a gostar de digerir e eis que a internet me prodigaliza uma sua entrevista, a propósito de um outro livro e da arte da escrita, da literatura, em que ele, lato sensu, eleva esse conceito a um extremo cuja tese defende tudo ser narrável.

Portanto estava neste ponto quando uma minha amiga e a propósito de um pequeno ditirambo meu na minha página pessoal duma rede social, que entrosou, entroncou, encaixou, combinou com modesto texto meu, o anterior a este, me pergunta se o que eu estava a dizer, a escrever, ou descrever, era mesmo uma pinocada (termo dela) termo que posteriormente e de acordo com o espírito do ditirambo alterou para pilonkada, ao que eu respondi sim, estava mesmo a escrever sobre ritmos músicais e sincronização sincopada duma pinocada pontual, pinocada, ou antes pilonkada … Adiante esclareceremos o termo, pois sendo tudo narrável segundo a teoria de Enrique Vila-Matas, este qui pro quo com a minha amiga Ermelinda não pode deixar de ser aproveitado por mim como motivo de salutar ocupação dos meus tempos livres, o que gosto de fazer quer lendo quer escrevendo. 

O texto a que ela se referia, e cujo link vai ser o primeiro no rodapé deste texto é um texto pessoalíssimo, sobre uma situação velhíssima e de difícil leitura se não estivermos atentos. Claro que hoje em dia as pessoas estão desatentas e excessivamente focadas no imediato, tendo dificuldade ou sendo incapazes de imaginar um contexto diferente daquele em que vivem, diferente do presente. Era um texto que recordava Néli, que só me procurava quando todos dormiam, ou quase todos, e que sem barulho se anichava em mim, em conchinha, quando nem o suor ou a areia nos incomodavam, mas travavam. Era esguia e magrinha, era bela, marcháramos uma semana sob condições péssimas e nem isso lhe retirara a beleza, nem o ânimo, nem a doçura…

Uma cena com uns bons anos e na génese da questão trazida à baila pela Ermelinda, esquecida de quando apareceu a musiquinha do Emanuel “Pimba Pimba” toda ela como sabemos explorando as possibilidades ilimitadas da língua portuguesa e da brejeirice. Não pude esquecer-me, ou não pude deixar de me lembrar que há umas décadas, quando não havia CD’s nem MP4 nem MP3 e as cassetes davam os primeiros passos, não havendo WiFi nem internet, não deixava todavia de haver outros povos e outras línguas igualmente alegres e brejeiras os quais, tendo num qualquer dia calhado conseguirem uma boa caçada, um gnu, uma gazela ou uma pacaça, havendo carne ao jantar, e festa e batuque, ou seja música, logo cantos e ritmos estariam assegurados. Foi precisamente aí e numa dessas ocasiões que vi como os outros (em cuja pele custamos a meter-nos) têm ou disfrutam igualmente de matreirice e sentido de humor, não sendo esses atributos exclusivos nossos, colonizadores ou velhos colonizadores, membros honorários da civilização que ora atropelamos...

Pois foi tal e qual assim que, acertando o ritmo com a pancada ou batida do tambor, ela, desvirtuando propositada e sagazmente a letra duma canção popular, (África ainda não teve o seu Giacometti nem a sua pesquisa e recolha de fórmulas orais e étnico musicais do canto tradicional mas, quando acontecer demorarão séculos a compilar pois serão aos milhões), e desvirtuando intencionalmente o vocabulário acertava o ritmo dizia eu, sussurrando-me ao ouvido, Pilonkan, Pilonkan, Pilonkan, desafiando-me a bater forte tal qual o pilão bate na cuba onde é amassada a mandioca, tal qual a palavra, distorcida, ia na boca dela tomando vários sentidos, conforme o contexto em que se inseria ou ela a queria inserir, convidando-me igualmente dessa forma a "dar-lhe" forte e feio, que é como quem diz "bate com o pilão" bem fundo e com força, subentendido evidentemente desde que não partisse o pistilo, ou pilão, nem o almofariz.

Muitíssimas palavras em variadíssimas línguas tomam diversíssimos significados, e esta que me foi sussurrada convidava-me a que me desse, lhe desse forte, ou a "declarar-me", ou a dar-lhe a boa nova do meu amor e a intenção de “fazer” por ela, isto é tomar-lhe a mão, desposá-la, pedi-la em casamento. No fundo estamos falando sobretudo de fórmulas inocentes em que, desvirtuando matreiramente o sentido inicial da palavra, e a levá-la ou elevá-la a uma provocação brejeira, sendo o que dava à canção atrás citada o sentido e o humor, tal qual fazem Emanuel e Quim Barreiros, em que ambos jogam com a duplicidade ou ambiguidade das situações que possam explorar numa frase, numa situação, numa palavra...

O nosso proverbial “bater com a cabeça na parede”, que é como quem diz “marrar contra a parede”, e numa modalidade mais forte “partir os cornos contra a parede”, nada mais simbolizam que a inutilidade de qualquer esforço ou tentativa, tal qual não adiantará absolutamente nada se estiver a “chover no molhado” ou se nos dispusermos ou lamentarmos “chorando sobre o leite derramado”.

Tal como nós África está cheia de provérbios, naturalmente alguns foram adoptados depois de séculos de colonização, e o nosso peculiar “vai pentear macacos” não andará longe de uma imagem que durante algum tempo me foi familiar, os beduínos catando-se, e não somente eles, também os indígenas, em filas de dois ou três ou cinco ou seis de enfiada catando-se uns aos outros de parasitas incómodos e exercício de todo improdutivo se descontado o alívio que tal operação certamente não deixaria de lhes oferecer.

Ora aqui está um texto que não passa de uma boa “conversa de merda” dirão com justiça alguns de vós, ao que eu contraporei que, segundo Enrique Vila-Matas e a sua tese de que tudo é narrável, estará aqui um belíssimo texto, não só para a minha amiga Ermelinda, seguramente a mais interessada numa explicação aprofundada e lógica, mas certamente para todos ou todas para quem o que interessa é ler uma história qualquer desde que, ou quanto mais desbrave ou se intrometa nos pequenos pormenores da vida alheia com que muitos de nós preenchemos a nossa, a nossa, vossa, sua, tua, dele ou dela, deles, delas, não a minha, eheheheh !

Porque se estavam à espera de uma coisa mais para o literário, numa página que uso para meu deleite e prazer pessoal o melhor é irem “tirando o cavalinho da chuva”  ! Ahahahahahahahah !




·         https://youtu.be/4tdsFkvm0ck




·         https://youtu.be/nwcGukMkR8I


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

396 - LEBAM KU BO - O CANTO DA ESPERANÇA


O dia despontava, um rebordo alaranjado acompanhava a linha do horizonte e nem meia hora levaria até vermos esboçadas as primeiras sombras, nas quais nos abrigaríamos, pois por essa altura o sol já castigaria. Todos estavam exaustos, tinham sido oito horas de marcha sem outras paragens que não as estritamente necessárias para fixar o Cruzeiro do Sul e a partir dele calcularmos a nossa posição. Os homens arrastavam os pés ansiando por estender-se, elas não davam parte fraca, mas repetiam exasperadas o gesto de levar os cantis aos lábios secos denunciando um desespero abafado. Uma sombra e, mal a encontrassem, por aquele dia, melhor seria dizer por aquela noite, a marcha estaria terminada e os corpos jogados ao descanso.

Não faltariam muitos quilómetros para a fronteira, a zona de perigo fora ficando perdida na retaguarda, a campanha correra-nos mal, perdêramos dois homens, todas as viaturas e muito material, mas salváramos o coiro. Uma batalha não faz uma guerra e nem tudo estava ainda perdido. Cansados e abatidos homens e mulheres espojavam-se na areia fresca da sombra. Apesar do revés o ânimo não se perdera. Eu observava-os na improvisação de instrumentos que lhe marcassem o ritmo e a velha canção de esperança, Lebam Ku Bo, ia surgindo aos poucos da boca de cada um e cada uma com pedras, armas, ossadas, galhos ou cascalhos marcando o ritmo que lhes corria nas veias. Notável se considerarmos tratar-se de perto de 30 elementos, exaustos e oriundos de meia dúzia de nacionalidades.  

Eri Zuma não me saía debaixo de olho, a sua costumeira tagarelice, ora abafada, não prenunciava nada de bom, uma das baixas do recontro dumas horas antes fora o seu prometido noivo e, não ter chorado nem bradado aos céus preocupava-me, estava acumulando azedume, enchendo a alma de revolta, as mulheres ovambo eram ensinadas a calar a dor mas quando a bolha rebentasse ninguém esperasse coisa boa. Era um grupo excepcional, gente superiormente preparada, corajosa, tenaz, perseverante, resiliente, mas até o aço mais duro em determinadas circunstâncias quebra…     
              

Abrigámo-nos sob a sombra de uma pequena ravina, a partir daquela hora o sol seria inclemente e o Calaári mataria os descuidados. Dois homens, os mesmos que haviam caçado um babuíno* e lhe tinham dado comida salgada, soltaram-no e seguiram-no na busca desenfreada da fonte da preciosa água de que precisavam, água a fonte da vida e onde o macaco os levou directamente apesar de bem escondida entre fragas. Poderiam passar-lhe ao lado que jamais adivinhariam haver ali água em tal quantidade. Os que ficaram limparam e lubrificaram as armas antes de adormecerem resguardados pela sombra da ravina. Naquela zona os helicópteros sul-africanos não se atreveriam a procurar-nos, temiam os cubanos e os velozes Mig para quem eram presas fáceis. Durante a noite, durante a caminhada e no espaço de poucas horas esbarráramos com dois meio enterrados na areia, um deles abatido recentemente, as cores e os estofos ainda não comidos pelo sol, procuráramos água mas tinham levado os cantis juntamente com os mortos, via-se sangue seco, muito sangue.

               

Ainda nos não encontrávamos a salvo, nem suficientemente afastados para não temer os helicópteros e demasiado longe para sermos procurados pelos nossos camaradas de armas, estávamos por nossa conta, felizmente um combate frontal estava fora de hipótese, quase não tínhamos munições e fôramos obrigados a abandonar o armamento pesado se quisemos salvar a pele. O equipamento de comunicações fora também atingido e estávamos nas mãos da divina providência.

Deus e a providência eram ali muito requisitados, por nós e por eles, o inimigo, umas vezes cada um com o seu outras disputando os favores e a graça d’Ele. Não fazia grande diferença, nem faria, na hora da morte só desejávamos que fosse breve, e que não nos complicasse a vida, muito menos a dos outros. Nunca abandonáramos um moribundo, mas felizmente também nunca tivéramos que carregar com nenhum. Certa vez um deles para não nos atrasar a marcha em dias e dias metera o cano na boca e solucionara o problema, resolvera a questão, há homens assim, práticos, pragmáticos, uma padiola é do pior que pode haver para qualquer ferido grave, é uma forca, uma sentença de morte, um mau feitiço atirado para cima de um homem. Viver é fácil, difícil é morrer, exige-nos toda a coragem.

Todos dormem, de duas em duas horas a vigília roda, a noite fora extremamente cansativa, caminhara-se para fugir do inferno e p’ra aquecer, no Calaári as noites são de gelo, entre os menos zero e os quarenta e muitos só os insectos se aguentam. O pico a seguir ao almoço é mortal. Os homens retornaram com vários alforges de água fresca e limpa. Não dará para tomar banho mas todos vão poder dessedentar-se e beber que nem camelos, sobrará para encher os cantis. A sede será doravante o nosso pior inimigo, era importante partir abastecido. Para cúmulo as rações de combate provocam demasiada sede e os homens, esfomeados, adivinhando a fronteira no máximo a um dia de nós, vingam-se da fome e empanturram-se. 

                        

Um dos homens mira-se num estilhaço de espelho apanhado no último héli pelo qual passáramos, ordeno-lhe que se desfaça dele e o enterre bem fundo na areia. Um descuido, um reflexo e a nossa posição pode ser denunciada a milhas e milhas de distância. Todo o cuidado é pouco. Aqueles dois preocupam-me, têm borregas nos pés e recomendo-lhes que os limpem bem e passem nelas gordura das latas de rações. Kristna está assada debaixo dos braços, tem o peito farto e pesado, a presilha do sutiã, o suor e o pó da areia constantemente roçando-lhe a pele feriram-na. Digo-lhe que largue e enterre o sutiã, que passe tintura nas zonas feridas, não sendo casos graves se tivermos cuidado não nos atrasarão. Reiniciamos a marcha ao som de “Lebam ku bo”, o canto da esperança reafirma ser a esperança que conta, a esperança tornou-se a fé destes homens e destas mulheres, esperança de conseguir sair com vida do deserto, de chegar à aldeia, à cidade, esperança de sobreviver à independência frustrada, de ter filhos, família, vida, alguns já andam nisto há quase vinte anos, ou mais, vieram das matas, só conhecem a guerra e as matas, e agora o deserto.

           

Néli fez de mim a sua esperança, faço-me distante, despercebido, duro, todos temos que estar prontos a perder tudo a qualquer momento, o segredo é ter pouco, ter tudo exige capacidade de renunciar a tudo, não quero iludi-la, não quero enganá-la, somente à noite nos procuramos. Há que ser superior a tudo, a todas as tentações, renunciar é sobreviver, o compromisso tolhe, coarcta, prende, compromete, obriga a ceder, tortura, fragiliza, pode matar. Desapego é sobrevivência, liberdade, vida. Tudo isto Néli sabe, quem não sabe cedo ou tarde intui. Ela sabe e só me procura quando todos dormem, ou quase todos, sem barulho anicha-se em mim, em conchinha. Nem o suor ou a areia nos incomodam, mas travam. É esguia e magrinha, bela, marchamos há uma semana sob condições péssimas e nem isso lhe retira a beleza, nem o ânimo, nem a doçura.

Há duas horas que notamos mudanças na vegetação, há mais verde e mais arbustos e árvores, provavelmente estaremos neste momento pisando a linha vermelha de fronteira e entrando em Angola, sobrevivemos a mais uma provação, a mais uma missão, e continuamos cá, para o que der e vier. A guerra será ganha ou não valerá a pena, ou não terá valido a pena.

Brigadeiro, e adido militar, o Chino deve andar agora perto dos setenta anos, mas não parece, os pretos enganam a gente, mesmo com essa idade alguns quase não fazem rugas. Hoje levei-o a almoçar à minha terra, o grande lago deslumbrou-o. Conto-lhe das minhas primeiras paixões no varandil, sobre a cisterna, diz-me constrangido que casara com Néli. Mostra-me uma fotografia de ambos tirada poucos meses antes dela falecer. Um grave problema de rins demasiado tarde associado a paludismo levara-a, um caso extremo e galopante. Ele também fora acometido pela malária mas safara-se devido a ser Major General e a saúde dos membros da forças armadas estar primeiro. De seguida emborcou instantânea e repetidamente dois copos de Reguengos reserva, o sorriso matreiro e os dentes brancos, impecáveis voltaram-lhe à cara numa caricatura simultaneamente inebriada e feliz.

- É a vida, a vida não pára m'ermão.

Alargando os colarinhos, o cinto e os sapatos balbuciou algo como nunca se ter habituado a mais nada que não a farda. Fora guerrilheiro toda a vida, não conhecia mais que a guerra e a mata, nem tempo tivera para aprender uma letra, bem vistas as coisas tem mais cicatrizes que medalhas. Brindámos, rimo-nos do secretismo de antigamente. Agora o Facebook conhecia-nos todos os segredos. Não nos descobrira e juntara passados tantos anos ?

- Brindemos à savana, às picadas, ao Calaári, aos computadores, facebooks, intermetes e MPLA ! … Propôs ele…

Ergui o copo mas recusando-me a brindar, ele sabia bem quais e desde quando vinham as minhas divergências e dissidências com o MPLA. *

- Se lá estivesses serias general ou brigadeiro m'ermão ! À tua !

Fingi nem o ter ouvido, olhei o lago e embrenhei-me no ensopado de cabrito, carne muito parecida à da pacaça observou ele, talvez sim, talvez não…


** Estava-se então no principio da década de oitenta e os problemas no sul de Angola, derivados de tácticas e estratégias profundamente erradas, ditariam os factores subjacentes à minha divergência e afastamento. Erros que ditariam um elevado custo em vidas humanas e somente ultrapassados em 1987 com a Batalha de Cuíto Cuanavale, o maior confronto militar da Guerra Civil Angolana, ocorrido entre 15 de Novembro de 1987 e 23 de Março de 1988. O local da batalha foi o sul de Angola na região do Cuíto Cuanavale na província de Cuando-Cubango, onde se confrontaram os exércitos de Angola FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) e Cuba (FAR) contra a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e o exército sul-africano. Foi considerada a batalha mais prolongada e mortal do continente africano desde a Segunda G. G. e terá provocado para cima de quinhentos mil mortos. 







terça-feira, 8 de novembro de 2016

395 - MONOGAMIA OU MONOTONIA, ENTÃO ?…

          

Eu estava nitidamente empenhado em não a deixar perceber que, a propósito da questão que nos opunha ela demonstrava não estar a ser uma mulher inteligente. A questão era mesmo essa, eu dissera qualquer coisa como mulheres inteligentes, apanhá-las, e ela respondera algo do género se elas deixarem, ora acontece simplesmente que mulheres inteligentes nunca se deixam apanhar. Tenho para mim que só um tipo burro, mas mesmo muito burrinho tentará apanhar uma dessas mulheres e tenho muitíssimas dúvidas que uma mulher dessas, inteligente, em casos como este veja a coisa como um jogo do apanha.

Pessoas inteligentes não se apanham nem se conquistam, encontram-se, aproximam-se, atraem-se, dão-se, enfim, tendem a gravitar-se, há como que uma tendência natural para que se procurem, se busquem ou se descubram e, a partir daí tendam, e a expressão inocente e inócua que pretendo utilizar é precisamente esta, tendem a que a companhia ou presença desfrute de situações comuns a ambos resultando num prazer bivalente que poderá não ser carnal, poderá nunca passar de um conhecimento privilegiado, de uma amizade sincera, de respeito mútuo, numa linha que todavia nada impede que possa ser esticada ou estendida até ao extremo oposto, acabando os dois na mesma cama, lugar aliás ou ponto de partida da questão esgrimida, já que fora eu a dar-lhe origem com um texto* que nessa situação colocava um par de jarras, um macho e uma fêmea. Poderá nem sempre ser assim, há amizades e simpatias entre mulheres, como há entre homens, a questão de género não é para aqui chamada.

No caso presente o detonador fora esse texto e os intervenientes, um casal imaginário digamos, chamemos-lhe um casal de fumadores.

- Até porque se assim não fosse seria adultério.

- E o que é o adultério, perguntei eu a essa minha contestatária amiga, uma vez mais sem mostrar nervosismo ou lhe demonstrar quanto a sua animosidade permanente me exasperava. Com esta jamais eu iria para a cama, ainda ou mesmo que a questão do adultério nem se colocasse.

- O adultério ? Um pecado, uma imoralidade, e uma ilegalidade.

- Mas eu só afirmei que se tratava dum casal imaginário, dum casal de fumadores, em parte alguma os tinha dado por casados ou descasados. Tu é que já estás a imaginar, a condicionar e a limitar as experiências possíveis, o que me diz muito sobre ti e nem de tal te apercebes. E agora atiras-me com essa, pecado o adultério ? Então não foi Deus nosso Senhor quem ordenou que nos amássemos uns aos outros, amai o próximo, não quero parecer antipático mas a tua resposta encerra uma série de contradições, e não só. És tu quem está sempre dizendo haver no mundo ódios a mais e amor a menos, então ? No que ficamos ?

- Está bem, tu percebeste-me não te armes em parvo, vai amar uma, há tantas, escolhe amar uma que não te obrigue a cometeres quaisquer infidelidades.

- Infidelidade, que é isso ? Quem inventou essa ? O teu mundo está cheio de regras, proibições, obrigações, deveres, imposições e castigos, para mim os dez mandamentos da tábua de Moisés já são demasiados, porém parece que não contentes com esses dez os homens inventaram mais.

- Seja como for não deixa de ser uma imoralidade, vocês homens, se pudessem comiam meio mundo e a outra parte.

- Já estás atolando-te de novo, amai-vos e reproduzi-vos, não te diz nada ? Olha que aqui bem perto e passado o estreito de Gibraltar a moralidade muda completamente sem beliscar a tua tão querida fidelidade, um homem pode ter uma data de mulheres sem cometer bigamia, trigamia, quadrigamia ou o diabo a sete, a poligamia é tradição, é aceite, faz parte da moral e os costumes. Uma vez em visita turística a Marrocos o guia, um marroquino bem disposto, a propósito não me recordo de quê definiu muito bem a diferença entre estes nossos dois mundos, dizia ele que monogamia era igual a monotonia, o Deus dele parece ser mais liberal e perdulário que o nosso, que o teu, respondi à tua questão ?

- Não me interessa a tua resposta, e ainda menos a questão, tu estás sempre mortinho por dar a volta às questões, a coisa é simplesmente imoral, é pecado, e digas tu o que disseres é ilegal, há leis, para o casamento, para o divórcio, para a guarda das crianças, para tudo, e acabou-se.

Ora finalmente estamos de acordo, há leis para tudo, e antes de as haver ? Leis dessas nem quinhentos anos terão, e leis ou decretos que obriguem à concórdia e felicidade há ? Tanta celeuma em redor de uma coisa que só tem que ver com a ideia e a felicidade de cada um, sabes o que costuma dizer uma minha cunhada ? É usar e lavar e está pronto para outra, não se gasta com o uso, não terá ela razão ?

- Devem ter um lindo casamento…

- Bem, velho de quase cinquenta anos já ele é, e nunca dei pelo mais pequeno berbicacho entre eles, ou ciúmes, ou azedumes, portanto a coisa terá funcionado lindamente. E se te disser que as minhas infidelidades como tu lhes chamas, salvaram o meu casamento mantendo longe da porta saturação e rotina ?  E se te confessar que nunca, nem por um segundo pensei abandonar esta companheira de há mais de quarenta anos e com quem tenho sido muito feliz ? E se te jurar que nunca menti a ninguém ? A nenhuma mulher ? Sempre fui fiel a mim mesmo e aos meus princípios.

O problema minha cara amiga é as pessoas desconhecerem haver perguntas que nunca devem ser feitas, não resistindo contudo à tentação de as formular. Nunca se deve fazer uma pergunta cuja resposta não nos agrade, e para imensas perguntas que temos na ideia temos também a resposta, quantas vezes antes da própria pergunta. São essas perguntas que devemos sempre calar. Tu consegues ? 

Sim, tenho uma moral e princípios, deixei de fumar há dez anos mas ainda gosto de cruzar as mãos por baixo da cabeça, mirando o tecto, lembrando o cigarrinho que fumava e olhando os dedo dos pés os quais gosto de ver mexendo, e enquanto falo estico as pernas, miro e remiro as unhacas, com as quais sou muito meticuloso, não vá arranhar as canelas de alguma lady Godiva.  

- És um santo tu, quem não te conhecer que te compre…

- Sou mesmo, Stº Humberto Expedito, um santo de pau, pau carunchosos atenção, mas um santo que dispensa as tuas leis, a tua moralidade, a facilidade com que fazes juízos de valor e cavalgas os teus preconceitos, tentando impô-los aos outros. Aposto que também serás democrata, daquelas democratas sempre prontas a pisar o risco para conseguirem o que pretendem, daquelas para quem os fins justificam os meios. Olha, vai falar com o Ronaldo …




sexta-feira, 4 de novembro de 2016

394 - CONFISSÕES DE TRAVESSEIRO .....................

  
Agarrara-se a ele ainda antes de estender a mão para o interruptor do pequeno candeeiro sobre a mesinha de cabeceira, agarrou-se a ele e apertou-o contra si e, na escuridão em que o quarto mergulhara submergiram ela e os seus devaneios. Talvez devêssemos dizer fantasias, pois que o abraçou com euforia e riu como uma criança enquanto cruzava sobre ele as pernas e o abraçava como a um ursinho de peluche gigante que tivera em menina, ou como quem vive uma paixão verdadeira. Tempo e sonhos foram-se dilatando com a escuridão e derramando na cama, agora mais quente, memórias de sonhos passados mas também visões de ilusões futuras em que, abraçados, trocava beijos, umas vezes roubados outras dados ou oferecidos com a sofreguidão piedosa de uma crente ofertando coração, espirito e alma ao seu Senhor, visões sendo por ela alimentadas com um desespero cada vez mais inquietante.

Amo-o, amo-o muito, não quero viver sem ele, é tudo para mim, nem saberia já viver sem esse querer, quero viver assim, como num sonho, como acredito ser possível, como desejo e quero, muito, quero ser dele, eu serei dele e ele meu a vida inteira, o resto das nossas vidas, enquanto Deus nosso Senhor quiser. O amor é maravilhoso e a paixão um milagre, estou apaixonada, louca, estou louca, louca de felicidade, louca de ansiedade, tenho que controlar-me ou ainda fico sem cabelo, já nem sei se me cai se o arranco para me convencer que estou acordada, viva, e de que tudo isto é verdade.

E, desvairada, encantada e embrenhada nos seus próprios sonhos, dava asas às fantasias criadas abraçando-o, enlaçando-o com as pernas, beijando-o, fazendo-o rodar consigo para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, recusando acordar de tão vívido sonho, sonho que um dia passaria à história, deixaria de ser fantasia e seria realidade pura, pura e crua, tão pura e tão crua quão a Santíssima Trindade e a verdade.

Mais que uma vez se sentira arrebatada e desfolhada pelos dedos brandos dele, macios, finos e ágeis, atrevidos, penetrando-lhe os pensamentos, os sonhos, separando-a calma e docemente pétala a pétala, bem-me-quer, bem-me-quer, bem-me-quer, e, por cada pétala um estremeção, um ranger de dentes, ânsia, sofreguidão, volúpia, desejo, ambição, urgência.

Minutos depois do tsunami a bonança, um leito revolvido pela retoiça agora pleno de flores, de pétalas, a respiração retornando-lhe ao normal, o sonho dissipando-se lentamente qual nevoeiro em manhã primaveril, o lençol reclamado para cobrir o corpo nu, suado, molhado, abandonado a si mesmo, encantado ainda, vívido ainda, ela bocejando languida, cruzando as pernas, segurando em si a paixão, retendo o instante, ouvindo-se, sentindo a pulsação devolver-lhe a baixa-mar, a calma volver e, como refluxo da maré deixando na areia da praia rolos de espuma salgada, assim ela se encolhia saboreando a espuma dos dias, fantasiando, sonhando, não já delirando mas antes adormecendo exausta, cansada daquela fugaz agitação ora ultrapassada, tremores e rangeres de dentes esquecidos, ele esquecido.

Ele esquecido para logo lembrado de novo aconchegando-lhe o dormir, ajeitando-a na conchinha para onde a puxara, afagando-a dos cabelos às coxas, deixando que no escuro a mão lhe percorresse as formas ao sabor do mágico encanto que a tolhia, por isso as sentindo deslizando em si, descendo à cintura, subindo a anca como quem, aproveitando o declive duma descida toma embalagem para subir. Talvez fosse inverno, talvez ele sentisse frio porque a mão, agora entre as coxas, procurando o calor como se no inverno e se chegasse ao braseiro quando toda eu, o meu corpo inteiro em ebulição, tal qual café aquecendo na cantarinha de barro junto às brasas com a fervura erguendo-lhe o testo, eu agitando-me alvoraçada e aquela mão atrevida tocando-me, acariciando-me, eu conturbada, eu num completo desassossego, em efervescência, a espuma escorrendo já p’la enfusa como algo entornando, extravasando, espumando, eu uma pucarinha e havendo coisas que eu não quereria era acordar agora, agora não, isto é química entre nós, química perfeita, pura, magia, e acordar é que eu não quero, é química, é ebulição, é fervura, é sensação, é o principio de tudo, é excitação, não pares, é bom, sim querido, não, acordar não, agora não, acordar é que eu não queria, agora queria tudo, todo, tu todo amor querido, tudooooooooooooooo !

Ooooooohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh !!!!

Acordar não ! Não ! Não e não !

Oh ! É o travesseiro ! Não ! Não ! Não !  



quarta-feira, 2 de novembro de 2016

393 - CUCU, CUCA, MINHA JÓIA .............................


Naquela noite em especial ela gostara de o ouvir, gostara e dissera-lho, ao que ele respondeu de modo algo petulante:

- Ainda tu não me ouviste falar durante o dia.

Para quem tenha assistido à cena terá mesmo parecido petulância, contudo não abonará em prejuízo da verdade sabermos não ter havido quaisquer testemunhas.

Nem era véspera de todos os santos, era mesmo o primeiro de Novembro, data que começara sendo assinalada logo pela manhã, todavia num dia tão marcante para os cristãos não consta que os sinos tenham tocado a rebate, ainda que tenham soado repicando todo esse santo dia.

Quer num quer noutro dos cemitérios da cidade, os mortos da família aguardaram solenemente todo o dia a visita que ele lhes não fez, contudo lembrou-os com uma exaltação inusual mas apropriada, sentindo-se nesse feriado mais feliz que o habitual e deveras aliviado por finalmente o Senhor os ter chamado a Si. O sofrimento de ambos tivera finalmente fim e ele, livre dos elevados custos dos esmerados cuidados, serviços de saúde e paliativos que clandestinamente lhes prestavam, pudera então trocar de carro e adquirir em cento e vinte módicas prestações uma admirável viatura que faria as suas delícias e provocaria a inveja dos demais.

Para quem esteja por dentro da cena, da coisa, será fácil acreditar não se ter tratado de petulância, ele era extrovertido e brincalhão, um tipo às direitas, nos antípodas de um petulante, ela comprovou-o no fim desse jantar durante o qual a conversa nem derivara em nenhuma direcção particular, antes abarcara no geral variadíssimos temas sem ao menos aprofundar qualquer deles. Tinha sido um lindo e lauto jantar com flores na mesa e à luz de velas, por se ter ido abaixo a corrente eléctrica ou algum deles se ter esquecido de pagar a conta da luz.

Não era normal acontecer jantarem de modo romântico, nem esquecerem pagar as contas, mas acontecera e, sem luz, recolheram ao quarto mais cedo que seria habitual, nem sequer estavam familiarizados um com o outro e ambos temiam que a coisa pudesse correr mal. Mas não correu, correu até melhor que teriam imaginado, ou sonhado, e ainda que uma vez mais haja tantas testemunhas como quando ele lhe parecera um petulante, ou mesmo não havendo testemunhas, só o Senhor saberá quanto se aplicaram, entregaram e amaram.  
          
Na confusão da excitação e do escuro como breu ele nem logrará negar com veemência ter titilado onde mais lhe tenha agradado, jamais porém esquecerá a tremura experimentada e que o acometeu ao passar-lhe a ponta da língua p’los lábios finos, mais precisamente aquele exacto momento em que outra ponta tocou a sua, momento acerca do qual se tornaria incapaz de afiançar ter alguém accionado o interruptor e desligado a pouca luz que um abajur derramava e onde ela depositara umas calcinhas azuisinhas, rendilhadas, a fim de coar aquela luz metediça e que por isso o quartito nem ficara transparente nem opaco, deixando escapar somente uma aurora azulada, celestial. 

Naturalmente a confusão já se lhe instalara no espírito, confundindo-se-lhe tudo e olvidando-lhe que o corte da corrente eléctrica era uma constante e o accionar do interruptor uma variante ocasional e irracional, possibilidade aceitável únicamente por quem dominasse o sentido das coisas ou da razão e, como corpo na corrente caudalosa dum rio agarrando-se a um tronco, assim ele se deixava arrastar ao sabor da emoção.

Não havendo a certeza de nada lembra tudo isto sem comoção, comoção verdadeira, da que provoca baques no coração. Recorda o abraço apertadinho, o sussurro, o tudo com jeitinho para não a assustar não fosse a passarada esvoaçar para longe, onde se não ouvissem os sinos repicando, ou onde não houvesse o juntinhos, o coladinhos, o pegadinhos, os pontos cardeais vogando sem tino na maré duns alvos lençóis de linho, perdidos ambos numa tempestade de desejos, navegando sem bússola, agarrados a uma manta colorida entretecida por mãos de fada agora sem saberem ao que agarrar-se e agarrando-se a tudo com o desespero do amor, a perseverança do carinho, a violência da ternura, como se estivesse nas suas mãos o destino, a sina, o fado que só Deus podia cantar-lhes quando, de novo lhe voltaram as tremuras ao passar-lhe com a língua nos lábios finos e molhados ao longo dos quais fez deslizar a ponta, esses lábios se lhe entreabriram abrindo-lhe as portas do paraíso e no paraíso uma maçã que comeu sofregamente, uma maçã verde de sabor agridoce cujo sumo o levou a ajoelhar-se como por respeito se venera e ora a um sumo-sacerdote das coisas em que se crê. 

Por isso ávido a sugava, sugava a vida a felicidade e o amor como se o amanhã não existisse e, porque insistisse e lhe parecesse que outra língua, outra ponta tocasse a sua, fechou os olhos desejando ardentemente adormecer quando as coxas dela, macias e quentes se contraíram de encontro às suas faces, onde uma barba de dias arranhava como lixa aquela pele de pêssego cheirando a rosas cujas pétalas, tal qual uma flor, se beijam com amor.

E como Deus descansou ao sétimo dia também eles descansaram e dormiram, juntinhos, coladinhos, pegadinhos, um no outro, os dois em um como prometia solenemente a SATA* no plasma ligado no quarto, ou o Clube Fluvial Portuense no dia de S. Valentim** abrindo aos sócios as entradas acompanhados, acompanhados talvez também por quem com eles partilhasse o juntinhos, o coladinhos, o pegadinhos, acompanhados por quem os auxiliasse na busca dos pontos cardeais, ou quem sabe a superar uma qualquer tempestade ensinando-os a navegar sem bússola, bem tapadinhos com uma manta colorida e feita à mão com devoção. 




segunda-feira, 31 de outubro de 2016

392 - CAÇAR COELHOS COM O GATO ………....…


Se não tens cão caça com o gato, é preciso é que apanhes ratos, diz-nos um velho provérbio nado e criado nas estepes mongóis e que, talvez pela mão de Marco Polo (1254-1324 ) ou Fernão Mendes Pinto (1509-1583 ) tenha percorrido a rota da seda até chegar à Europa, numa época (1347-1353 ) em que a peste negra ou bubônica era temida ou duramente lembrada e os ratos acusados da sua transmissão ou contágio.

Séculos depois um goês, a rota da seda passava pela India sim meus amigos, um goês dizia eu, vem de novo tentar caçar ratos com gatos ou, numa hilariante confusão com um outro ditado popular que correu mundo da Austrália aqui, matar dois coelhos com uma cajadada, matar dois ou três ou quatro, sabido que é ter a Austrália penado as sete passas do Algarve com a praga de coelhos que a fustigou levando a que o imenso país, quase um continente, tivesse sido dividido ao meio no sentido do Diálogo Norte-Sul e elaborado as mais exigentes leis quanto à manutenção, abertura e fecho de cancelas na dita cuja.

O recente êxodo migratório que Portugal conheceu, e conhece pois ainda não foi estancado, aliado à baixa taxa de natalidade e fertilidade dos casais tugas que, sem perspectivas de futuro adiam, atrasam ou simplesmente desistem de ter filhos, é uma autêntica bomba relógio ameaçando a existência dos parvos que ainda por cá ficaram, ou porque são doentes, ou inválidos, ou velhos, ou correndo o risco de me repetir, por serem parvos.

Seja como for daqui a dez ou vinte anos não haverá gente suficiente para alimentar a indústria nem o comércio nem a agricultura nem as pescas nem a Segurança Social nem para ocupar os milhares de empregos surgidos, que ficarão sem pretendentes. Festejaremos então o milagre do pleno emprego, o bater no fundo, o desastre, a calamidade, o abismo, pois já não se tratará de um pântano mas de um abismo absurdo e sem fim.

Porém, na esteira das soluções milagrosas e exímios artifícios a que nos está habituando um mago goês, malabarista dos passes de magia, do faz que faz mas não faz, do que mais vale parecê-lo que fazê-lo, do muito barulho para nada, do é preciso que se faça qualquer coisa para que tudo fique na mesma e pareça que muda e mexe, que está vivo, vem esse estranho mago e faquir com o seu sorriso optimista de prestidigitador tirar ante nós mais um coelho da cartola,  esfolado, ou seja, mais um nó mui mal atado.

Propõe-se o ditoso artista curar-nos sacrificialmente de três ou quatro terrenas mazelas de que padecemos há muito, esquecendo que nos são congénitas, hereditárias. Abrir as portas do país aos membros da CPLP sem necessidade ou exigência de vistos ou autorizações de residência é encher o país de pretos e nem todos eles católicos… Para além de muitos que nem cristãos serão, certamente virão com os olhos postos na Europa, idem para os da Guiné Equatorial* que nem uma palavra de português sabem falar. Portugal será um trampolim, uma porta de acesso à Europa para toda esta gente a quem provavelmente iremos dar tudo que aos nossos negámos, como demos aos refugiados, casinhas onde morar e todas elas tiradas aos tugas que ficaram desempregados. Refugiados esses que, como todos nós sabemos passado algum tempo desertaram para parte incerta desdenhando do que lhes deram.

Realmente quem fica aqui ou é doente ou é parvo, inválido, sádico ou masoquista. Portugal prepara-se para fazer por estes enteados que quer chamar a si o que nunca fez para manter cá os seus próprios filhos. Mas a vinda aos trambolhões de gente sem visto de residência encherá jardins de dorminhocos aos baldões e fará recuar o custo / hora, o salário mínimo, o emprego máximo, os salários, jornas e quejandos tornando este país um milagre para empresários que há anos clamam por medidas que reduzam os custos, promovam a produtividade, a produtividade ora aí está ** como diria o meu amigo José Mário Branco, a fim de finalmente competirmos com os países decentes da Europa e do mundo através da instauração de um moderníssimo esclavagismo.

Encher-se-ão todas as pensões do Beato à Picheleira, de Marvila a Moscavide, da Areosa à Cantareira, e os cofres da Segurança Social, e as gavetas dos processos da acção policial, e os índices da actividade criminal, e os aeroportos de “mulas” pelo Natal… Está mais que visto que os governos anteriores e em especial este governo, que nada fizeram nem fez pelos que cá estavam e estão e os levaram e levam a sair, se prepara para tudo fazer por estes que estão para vir, ou não passasse tudo de presdigitação, de tirar coelhos da cartola, de não aparecer na Cimeira da CPLP que decorre em Brazília de mãos a abanar, por nada mais haver a oferecer que sonhos, sonhos que nem a UE nem Schengen alguma vez consentirão. Trata-se sim de deitar areia para os olhos de todos, de levantar cortinas de fumo para esquecer a ausência de futuro, e até de presente.

Não se pense contudo que somente os governos fizeram quanto puderam para tornar o país a cloaca nacional, os municípios, que não criaram as condições para o desenvolvimento, quando não o dificultaram ou impediram têm também a sua quota parte, como a têm gabinetes e técnicos que de norte a sul se arvoraram em reizinhos do seu reino e bloquearam, e boicotaram intenções e projectos, iniciativas e progresso. Todos são em maior ou menor grau culpados da situação.

Estamos abrindo às cegas e completamente as pernas à pretalhada, descemos abaixo de preto, abaixo de cão, somos uns cães uns para os outros mas nem um canil sabemos gerir, quanto ao goês e se o deixarem venderá seda e anil aos mongóis e aos chinocas, fazendo o pino e percorrendo  em contra-mão uma rota que não devia sequer atrever-se a seguir…Dêem condições aos tugas e eles que façam filhos... 

O busílis está no facto da medida exigir reciprocidade e alguns dos países da CPLP, com Angola à cabeça, não estarem dispostos a aceitar-nos com a mesma bonomia… Os pretos não querem lá brancos, pelo menos os brancos portugueses. Todavia não deixa de surpreender-me e até confundir-me que, ante tamanho disparate, o PR, sempre tão certinho, se resolva desta vez apoiar tão esdrúxula ideia… 


* Guiné Equiatorial, ditadura há 37 anos, um do países mais corruptos do mundo.
** https://youtu.be/_Adp77ivpT8

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

391 - CONVERSÃO, CONVERSAÇÃO, CONFUSÃO


A verdade é que nunca gostara de padres, nem de padres nem da sua conversa mole e, desde os seus tempos de catequese lembrara sempre essa conversa monocórdica como um monólogo de uma moleza dura, incompreensível, um discurso arengado e intransponível para a sua mente jovem. Mais tarde, quando capaz de algum discernimento, alguma sageza, de alguma observação, ou análise, esbarrou com o mesmo discurso intangível, hermético cuja música raramente lhe soava agradável aos ouvidos, criando nele interrogações ao invés de certezas, ao apresentar-lhe como certas as piores dúvidas.

Devido a tudo isso se é hoje baptizado tal deve-se somente à tenra idade em que o foi, por nem ter capacidade de recusa nem argumentação para se opor, nem tinha sequer outra opção, como aconteceu ao recusar a primeira comunhão e se afirmar, ou recusar anos mais tarde um casamento religioso e encenado na igreja como a mãezinha tanto queria.

Sendo verdade que as certezas tremiam não era menos verdade que esse mal não era novo, nem novo nem de agora. Há muitos anos, mais precisamente no fatídico semestre em que namorara a Cândida, a fúria do seu amor, a ânsia, a fome de amor que com ela quisera repartir ou nela saciar fora cegamente travada pelos problemas existenciais que a habitavam;

- Será pecado o beijo ?

interrogação e obstáculo que ela demorou demasiado a ultrapassar e o fizeram perder a fé, a devoção, e minou todos os discursos anteriormente ouvidos sobre esse Deus bondoso, misericordioso, amoroso, e todos os discursos sobre o amor, a dádiva, a entrega, o sacrifício, a abnegação, a penitência e o perdão.

Entre os doze treze anos e os quinze dezasseis, ainda oscilou nas opções, agradavam-lhe as parábolas que incluíssem animais, sobretudo as que terminassem num claro exemplo moral, especialmente aquelas que comportassem um divino e exemplar castigo, com o desaparecimento ou a morte dos prevaricadores, dos pecadores. 

Deus é amor.

Agradavam-lhe os castigos pesados, um Deus tirano, que castigasse impiedosamente a maldade, a Lei de Salomão, o olho por olho na própria Bíblia, a estátua de sal da mulher de Ló, o êxodo dos filhos de Israel conduzidos por Moisés, a travessia do Mar Vermelho que se fecha e trucida os exércitos do faraó, os discursos berrados às ovelhas do alto do púlpito pelo padre Bravo, um bravo que o rebanho entendia e que uma vez ou duas explicou à chapada a um crente menos crente a sapiência e a infalibilidade do Senhor. 

Deus nunca se engana.

Porém, não sendo ele o padre bispo na zona, Deus correu com o transparente padre Bravo e, pela mão ou pela boca do padre Macário voltaram os discursos herméticos cuja pedagogia não era percebida, quanto mais assumida por um rebanho hesitante no rumo e que se foi paulatinamente dispersando da igreja, da paróquia e na vida, tanto mais que o padre Macário nunca foi homem para lhes fazer uns desenhos ou os meter no caminho certo, nem à estalada.

Quanto a ele, digo a mim e à Cândida, o apelo da selva era mais forte, a animalidade exigia urgência na satisfação dos ímpetos temendo que, caso contrário, como ao homem tornado fera, ao bater das doze badaladas, possuído e possesso, me transmutasse em lobisomem. Por isso também eu exigia no momento em que a fé me acossava e a devoção me atormentava e tornava um incubo, que ela por mais cândida que fosse, se submetesse à minha vocação, à minha vontade, ao destino, à sina, ao fado.

Volta não volta a cena voltava a repetir-se, Amália intransigente, ele dominador e inconsequente como sempre, o divórcio mais que uma certeza no horizonte, ambos irredutíveis, irreconciliáveis, ela mantendo-se fiel a Santo Antão, ele derivando para a igreja da Sé, onde por certo não esbarraria nela. Contudo e apesar de tolinha Cândida nunca se submetera à sua vontade, sua dele, pelo que cedo acabaram, cada um retornando à sua paróquia, esquecendo os sonhos e os caminhos que haviam jurado palmilhar juntos, juntinhos. A mesma fé que os unira os separara, um padecendo de dúvidas outro com demasiadas certezas.

Ora é precisamente neste entreacto que aparece o padre Madureira da Silva e o seu discurso da conversão* discurso que eu chamaria antes de tradução pois que o dito padre quase, quase nos faz desenhos para explicar na perfeição como devia ser aberto, claro e sucinto o linguajar da igreja, casa onde mais parece falar-se chinês para um público maltês, cada vez menos disposto a ouvir quem quer que seja, ou a perder tempo com o que não seja imediatismo, futilidade, materialismo e desvario.

Não são a cultura moderna e o neoliberalismo os únicos culpados pela dispersão do rebanho e pelo afastamento da palavra de Deus, é sim o cepticismo que a igreja permitiu, cultivou e até acarinhou no seu mundo, pois neste outro mundo real em que vivemos, na senda do racionalismo e do iluminismo, o grosso do rebanho logrou libertar-se de anátemas ainda que não de dogmas, e fugiu do hermetismo religioso sem que o tenha, (ou a igreja o tenha) substituído por algo mais proveitoso. 

A igreja permitiu gradualmente que a palavra de Deus surgisse ilegível, intraduzível, incompreensível, manipulável, e por fim dispensável por desnecessária. No fundo tratar do homem enquanto ser humano sem perder o pé, como sabemos que se fez desde a antiguidade clássica com Sócrates, Agostinho de Hipona, até aos tempos mais recentes da corrente existencialista e de Simone de Beauvoir, Jean Paul-Sartre, Boris Vian, do nosso Vergílio Ferreira e a nossa Maria Judite de Carvalho, de Kafka, André Malraux, Albert Camus, etc etc etc numa tradição de liberdade e responsabilidade que entre nós nunca foi muito respeitada.

Culpas natural e igualmente também da escola e da igreja, culpas nossas também por não buscarmos um caminho alternativo e avançarmos às cegas. O padre Madureira da Silva vem agora dizer que a igreja há muito devia ter gritado que a conversão é a mudança, é mudança de mentalidade, é escolha, é opção, é um caminho mais claro, mais limpo e com menos escolhos que aquele que o neoliberalismo e outros ismos nos oferecem, convidam e incitam a percorrer. Converter-se não é trocar paganismo por cristianismo ou vice-versa, é trocar o materialismo mercantilista por algo mais concordante com o que quer que seja o humanismo ou a alma, é ser solidário, ser, ser, ser, mais que ter, é ser.

No fundo uma questão de dignidade, para nós e para os demais, uma questão de sanidade, pessoal, mental, moral, e social, uma caminhada para uma concepção social da vida em vez de individual e que substitua a fatalidade que aceitamos sem contestar, uma concepção que nos una, em vez do abandono a que votamos o outro. No fundo a questão da busca de um projecto de sociedade, dum projecto que despreze soluções pessoais ou individuais e procure soluções nacionais, colectivas, no fundo a libertação pela coesão, pela assumpção de responsabilidades universais, acima de egoísmos, acima de privilégios, pelo regresso da palavra de Deus, pelo regresso da igualdade, da paridade, da palavra bem explicada, bem traduzida, se necessário com um desenho, como o padre Madureira da Silva teórica e exemplarmente fez.

Amadeu recortou o texto do jornal, meteu-o num envelope cor-de-rosa com um coração bem vermelho e rebordado a branco, branco de pureza, e deixou-o displicentemente em lugar onde sabia de antemão ser encontrado por Amália. A partir daqui há pormenores da história que posso imaginar mas não conheço, terão jantado juntos como havia muito tempo não faziam, terão procurado o quarto e a cama com alguma apreensão e desconfiança, tê-la-ão abandonado horas depois curados, completos, animados, entusiasmados, decididos, convertidos.

O divórcio foi esquecido, a decisão pendera para um país europeu onde encontrassem democracia, justiça, solidariedade, igualdade, paz, futuro, trabalho, emprego, onde fosse possível sonhar, ter certezas, família, onde imperasse a verdade e a honestidade, a franqueza. Curiosa e casualmente escolheram o menos religioso de todos, é apenas um pouco frio. **
  
* Padre Madureira da Silva, Coluna de Opinião, Diário do Sul, 25 de Outubro de 2016, página 4. 
** Atenção, a leitura deste texto não dispensa a consulta do artigo original do Padre Madureira. 

domingo, 23 de outubro de 2016

390 - ZÍNGARO SIM ZÍNGARO NÃO ........................


Mal as vi o pensamento fugiu-me para as bandas do Minho, de Viana do Castelo, onde uma vez, em férias, esbarrara com um aparato fantabulástico como diria a minha bizinha do 4º Esquerdo. Rodas, folhos e mais folhos nas saias rodadas, blusas alegres e o peito como prateleira, montra ou altar de filigranas de encantar, consagradas por desmedidos corações pendendo-lhes das orelhas.

Sorrisos e peitos francos, largos, num tagarelar nada próprio das alentejanas, muito mais recatadas e que as farão pela calada. Estas duas não, carregavam desmesurada alegria, uma natural desinibição e desprendimento total, contrastando com o soturno ambiente que as rodeava, pouca gente, sobretudo gente muda e calada, ou seja a pouca gente que ainda frequenta cafés pois a maioria desapareceu, fecha-se em casa ruminando taras, complexos, manias e desgostos diversos nem saindo à rua, ou mal saindo à rua deixando os cafés a um terço ou um quarto da frequência e freguesia que apresentavam há meia dúzia de anos. De entre todos eles, cafés, há agora na minha zona um que decidida e declaradamente não aceita ciganos. Não que eles abundem por estas bandas, para ser sincero há meia dúzia de anos que deixei de os ver por aqui com a regularidade que lhes era habitual, eles, as carroças, os cãezinhos, tão ladinos quão as criancinhas ranhosas que em bando os acompanhavam sempre, saltando por quintais, ora em busca de uma bola, ora de uma torneira onde encherem os sebosos jerricans de plástico, ora um par de calças, um sutiã ou uma blusa esquecida no arame, ora com a desculpa de um raminho de hortelã para a panela ou de uma rosa amarela para oferecerem à matriarca da trupe.

No café que ora os não aceita, antes desta nova gerência era habitual parar por ali, eu e eles, ambos de vez em quando, e de quando em vez lá lhes pagava um bolo ou uma sande, desde que assoassem o ranho do nariz. Elas as criancinhas assim faziam e eu contentinho, contentava-me com a minha boa acção do dia e com o meu moralismo de merda. Isto não o pensei eu, atirou-me certa vez à cara um pai cigano que chegara alguns minutos depois do ranhoso.

- Devolve já o bolo ao senhor e diz-lhe que meta o moralismo no cu Caló ! 

Ao ouvir isto as ciganas na sua esteira, fungando filigranas, não se remeteram a risinhos e sorrisinhos abafados como seria de supor entre nós, não, antes desataram sonoras gargalhadas que só não me deixaram todo vermelhaço por ter já há muito tempo perdido a vergonha. Tentei emendar a situação alegando despreocupada e alegremente sermos velhos amigos, eu e eles, os ranhosos, pois já nos encontráramos ali mais vezes pelo que seríamos “amigos de longa data”.

- Isso é outra conversa, ripostou o pai cigano enquanto recomendava ao Caló e ao Kalé que puxassem as moncadas antes que caíssem no Jesuíta, um bolito tão catita, - Que estão à espera para agradecerem a este senhor meus camafeus ?

Os catraios fungaram, a moncada desapareceu-lhes instantaneamente das fúcias mal eles fungaram e o pai cigano sentou-se despreocupadamente na minha mesa ajeitando o sombreiro, pedindo desculpa, e ordenando à gaiatagem que fosse ver das éguas, virou-se a mim atirando-me um:

- A gente nunca sabe com quem lida e tem que estar sempre com um olho no ciganito e outro no portuguesito sabe o senhor ? Arménio Zíngaro, um amigo ao seu dispor.

E lá continuou debitando a sua lengalenga, sendo aqui que a coisa muda completamente de figura e se torna interessante, dado tudo ter começado com uma ranheta, ou uma ranhada e um ou dois ranhosos terem dado azo a uma conversa entre nós bem bem avançada e, atendendo a que eu bebera um Brandymel a seguir à bica por o tempo estar incerto e haver que prevenir, logo ele aproveitou para me recomendar o licor Beirão, de longe o seu preferido, enquanto dissertava sobre aceitação, tolerância e independência, socorrendo-se no entre meio da conversa, de uma garrafa de Beirão que nem sei como viera parara à mesa, e de Miguel Torga, segundo ele o único de entre nós que compreenderia o seu viver, o viver do seu povo, pondo-me com isto de pé atrás e orelhas em riste.

Um cigano discutindo comigo o existir, o estar e o ser, citava-me Miguel Torga puxando da autoridade de ciganos dos quais eu jamais ouvira falar, mas que no seu mundo (no seu universo corrigir-me-ia ele), seriam estrelas no firmamento do tríptico em que nós profanos e pagão cristãos alicerçávamos o nosso viver, terra, mar e ar, não estando eu de todo certo quanto à correcta interpretação e explanação, aqui, ante vós, do completo e complexo discurso que o cigano aventou.

Ainda hoje não sei quem era ou seria tal personagem, chapéu preto, fato preto, coçado, coçadíssimo, sapatos cambados, barba de duas ou três semanas, mais parecia o meu mano Zé, um cheiro penetrante a fumo, a lume de chão, e sobretudo um saber que me surpreendeu pelo inusitado da coisa e pelo popular mas visível enciclopedismo que o enformava de modo admiravelmente incomum.

E enquanto eu cada vez mais surpreendido abria a boca de espanto, ignorando o mundo que ele me apresentava, ou desvendava, de boca espantada ia conhecendo, entre brandis Mel e licores Beirão a galáxia de divindades, pensadores e poetas que o habitavam e impressionavam. Em simultâneo justificava-se alegando ser a tradição oral a mais forte entre o seu povo, o qual se socorria da poesia e da música, como mnemónicas infalíveis numa filosofia de vida que centrava, confiava e assentava na oralidade da narrativa a sua sobrevivência.

Piscando-me o olho enquanto me dava uma joelhada que mais que incomodar-me me permitiu adivinhar um joelho magro, atirou-me esta pérola, como se rematando a surpresa impossível de escamotear em mim:

- Ora o meu amigo veja a quem e porquê deram há poucos dias o prémio Nobel, é que antes de verbo já cá estavam os Zíngaros, os Sinti, os Rom, os seus rapsodos, os seus aedos e a sua vida simples e boémia ou seja, muito antes da prosa já havia ranhosos !

Isto dito como se para encerrar a crítica ao meu inicial moralismo, tendo-se deixado tomar pelo riso que só parou quando me agradeceu o convite e os bolos dos catraios. Antes de desaparecer entre as mesas do Café Giraldo terá dito para a Sara, que as servia nessa manhã:

- Bem haja esse senhor, estimem-no, há poucos como ele !

Fiquei impávido, e eu que nem o convidara para a minha mesa pois fora ele quem abusiva e ostensivamente nela se sentara, tinha agora uma conta calada para quitar, só em brandys seria uma dúzia deles…


 LIBERDADE ** (by Spatzo) *

Nós ciganos temos uma só religião: a liberdade.
Por ela renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória.
Vivemos cada dia como se fosse o último.
Quando se morre, deixa-se tudo: a mísera carroça ou um grande império.
E, julgamos, naquele momento, que foi melhor ter sido um cigano do que um grande rei.
Não pensamos na morte, não a tememos, eis tudo.
Nosso segredo é este: gozar cada dia as pequenas coisas que a Vida nos oferece
e os outros não sabem apreciar: o amanhecer do dia, um banho na fonte, o olhar de alguém
que nos ama.
É difícil compreender essas coisas, eu sei.
Cigano se nasce.
Agrada-nos caminhar sob a luz das estrelas...
Contam-se estranhas histórias sobre os ciganos.
Diz-se que lêem o futuro nas estrelas
e que possuem o segredo do Amor...
As pessoas não crêem no que não saibam explicar.
Mas, nós não procuramos explicar as coisas em que acreditamos.
Nossa vida é simples, primitiva.
Basta-nos ter por tecto o céu, uma fogueira para nos aquecer,
e, nossas canções quando estamos tristes.

* (Vittorio Mayer Pasquale(Spatzo)-poeta cigano.


“É preciso acreditar. É preciso ter em mente que a água nos benze, a lua nos abençoa, o fogo nos consagra, o ar nos liberta e a terra nos transforma. Só assim teremos os pés no chão, os olhos no horizonte e a mente nas estrelas.”
Descendentes Calon e Kalderash

CIGANOS
Tudo o que voa é ave.
Desta janela aberta
A pena que se eleva é mais suave
E a folha que plana é mais liberta.

Nos seus braços azuis o céu aquece
Todo o alado movimento.
É no chão que arrefece
O que não pode andar no firmamento.

Outro levante, pois, ciganos!
Outra tenda sem pátria mais além!
Desumanos
São os sonhos, também...

MIGUEL TORGA