quarta-feira, 17 de abril de 2019

597 - EU FUI BER O RUI BELOSO, by Luísa Baião *




Fui à Feira de S. João e fiquei petrificada logo ali naquela entrada que dá para o nosso Íbis. Que feira mais arrumada ! Tinha até carreiros de água serpenteando ondulantes por onde antes sufocábamos e errando desesperábamos p’ra bencer os ambulantes.

Mais abante, surpresa ! Uma fonte, uma beleza refrescante, apaixonante, p’ra quem p’la feira se enleia em passeio mirabolante. Alegre e claro, bem disposta ao Jardim rumei então, pois foi para isso que bim, oubir nessa noite fresca e de uma boz que refresca, uma ou outra canção.

Habia já ao chegar luzes no ar  iluminando e fustigando a mole humana comprimida, p’ra ber e oubir bradando, o nosso homem do norte. Nem sempre nos calha tal sorte por isso lá fui esperançada de, ao cheiro de urzes cantando, ir mitigando saudades de outros tempos, outras eras, em que, bibendo em inocência não adibinhaba inda bir a ser lançada às feras.

Buscando alegria fui pois de sandálias e lebeza, com a certeira certeza de não me ir arrepender de uma bez, sem muis exemplos, deitar a noite a perder. E quando os primeiros acordes me puseram em alboroço, deixei o coração ficar louco e oubi-o a gritar-me:

- Hoje não dormes !

Tal e qual eu assim fiz, como quem traça com giz no negro que o céu mostraba, qu’essa noite me baldava a formalismos e outros trajos, já que não é por pôr andrajos uma bez por outra na bida que deixo de ser quem sou ou passo a andar perdida.

 

Ginguei as ancas para os lados, em debaneios estudados e gestos belhos de ensaiados, mas que deram resultado quando menina e moça era, e confesso, birei os olhos a namorados que tive até ficarem quadrados.

Saltaram notas e sons de banda bem afinada que depressa deram asas a toda aquela rapaziada. Desbairada também eu, me atirei mui exaltada para cima de um candeeiro, é que o parceiro que lebaba, estaba já c’um grão na asa e não oubiu o conbite que bradei para ali bailarmos. Com o candeeiro bailei e bem me saracoteei com o fluir de melodias, tão belhas quantos os dias que desde menina contei.

E as notas derrapabam loucas pr’a fora das pautas, bi muitas boando alegres por cima das copas altas de árbores que, ou eu me engano ou dançabam também elas, como outros moços imberbes que a meu lado abanabam os abanos.

Passaram por mim fantasmas que não bia há muito tempo, almas queridas de emoções que guardarei sempre cá dentro. Um Xico muito fininho, um génio de lamparina, um ingénuo de rubi, um Grão Bizir de Porto Cobo e um espertinho de aldeia a trabalhar na cidade. Boltei a ber com meus olhos o rapaz da Piedade, alentejano de gema. Pr'a não biber da caridade se fez ao mundo mundano mas que nunca negou a pena, a saudade e o prazer, se calhaba à mão ter farnel pr’a merendar, é qu’esta coisa da idade tem coisas que têm porras, como ter o belho hábito de beber café de borras.

E o pobo foi sereno, nem bateu no cantador, nem lhe jurou pela pele, antes mui pelo contrário, cantou com ele em binário e silencioso clamor. Sei que será para alguns motibo de perplexidade, mas a turba demonstrou possuir maioridade, nem hoube nexexidade, mesmo quando de ânimos em pleno e em sintonia berraram, de bradar p’lo PR, pois cantores e tocadores eram gente de respeito e ao respeito se deram.

Pulei e saltei contente como faz mui boa gente sem peias nem preconceitos e quando dali parti, disposta com o que oubi a secar sede tamanha, ufana enchi os meus peitos e fui direita à hortinha buer umas cervejinhas.

Calharam que nem pitéu digno de reis e princesas, frescas que estabam no copo e me custaram um guinéu, porque ainda por aqui bibe quem faça as contas ao mundo sabendo que tudo o que há, ou se dibide e reparte, ou se faz de um mar de enganos modo de biber sem arte.


* By Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, ‎19‎ / 06 / 2003 pelas ‏‎19:09h, publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER nos dias seguintes.

596- LEVAR A CARTA A GARCIA...by Luísa Baião *


       Reza a história dos finais do século XIX ter existido pelo menos um homem que, se fosse hoje vivo, imenso nos ensinaria a todas, muito especialmente aos homens e mais concretamente a todos que, erigidos em maioria há décadas assumiram a (i) responsabilidade de nos governar.

       Não quero imaginar quantos corariam de vergonha, como não pretendo que considerem esta crónica um panfleto feminista, não é esse o caso, o assunto é bem mais grave.

       Reza a história que durante a guerra Hispano – Americana tendo rebentado revoltas separatistas em Cuba, nesses tempos (1867 – 1898),debaixo do domínio espanhol, os EUA, defendendo também já nesses tempos e preventivamente os seus próprios interesses, terão apoiado os rebeldes independentistas na sua sublevação contra Espanha.

Não dispondo essa época recuada, sobretudo esse remoto lugar, de meios de comunicação mais eficazes que os sinais de fumo e surgida a necessidade de um general americano articular apoios com os revoltosos chefiados por um rebelde de nome Garcia, chamou a si um dos oficiais em quem depositava maior confiança tendo-lhe entregue uma carta, ou mensagem provavelmente lacrada, com a singela menção de ser entregue a Garcia.

É neste ponto que a história nos lega a sua lição já que, desconhecido o paradeiro de Garcia, embrenhado nas montanhas e na selva que meio século mais tarde viria a dar cobertura a Fidel de Castro, recheada de carreiros labirínticos, povoados inlocalizáveis e com toda uma ilha para percorrer buscando o desconhecido paradeiro de Garcia, o nosso oficial não hesitou perante a incomensurável missão que lhe havia sido confiada. Não fez perguntas, não alardeou dificuldades, não alvitrou sequer a improbabilidade de ser nessas contingências mal sucedido.



Deve ter pensado para com os seus botões que o que é para fazer, faz-se e que o melhor seria começar de imediato. Partiu confiante de que por uma tarefa bem desempenhada só lhe caberia mérito, que do cumprimento dos objectivos determinados resultaria proveito para a sua nação, que por intermédio do seu general nele depositara o cumprimento da tarefa e a responsabilidade pelos resultados.

Não só hoje mas por cá, ministros, autarcas, médicos, vereadores, juristas, educadores, fiscalistas, estudantes, empresários, todos nós, políticos e apolíticos, vimos demonstrando uma incapacidade inata para levar a carta a Garcia.

Inspirou-me esta crónica o facto de sexta-feira passada, 31 de Outubro, ter decorrido no Garcia de Resende um debate sobre cidadania e civismo, de que nos arredámos orgulhosamente. Nem a presença do Dr. João Salgueiro, cidadão e reputado economista captou o interesse da cidade, dos seus empresários, das nossas elites (?), nem a presença do presidente da nossa autarquia arrastou os desinteressados munícipes para a curiosidade pela coisa pública, pela coisa deles, nossa, nem a presença do presidente da Associação de Estudantes da Universidade logrou conquistar a presença de um único estudante. Cem pessoas se tanto, ali se encontraram buscando resposta às perguntas que conduzissem ao caminho que leva a Garcia.

Moral da história? Perguntarão vocês, simples, se cada português se compenetrasse da importância do seu desempenho nos resultados por si obtidos na quota parte que lhe toca no desígnio nacional, talvez hoje não estivéssemos a vender o nosso património e, ainda que tenha demorado um pouco mais a imaginar, vendendo o impensável, as nossas próprias dívidas e a estrangeiros ! Verdadeiro reconhecimento das nossas naturais incapacidades.

Aliás pouco importará se é estrangeiro ou conterrâneo, já que na realidade quando se iniciar a cobrança dessas dívidas, por certo através de execuções em tribunal, a culpa será de novo dos outros, dos estrangeiros, bárbaros insensíveis perante o fecho de empresas, dos despedimentos que arrastarão, dos dramas que semearão.

Bem pode Jorge Sampaio bradar em Madrid, pois por aqui decerto nenhuma lhe ligariam. **

* By Maria Luísa Baião, escrito em ‎28/11/‎05, ‏‎pelas 21:57h e publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER provavelmente no mês seguinte.


Hermes
Hermes

segunda-feira, 15 de abril de 2019

595 - PALAVRAS, LEVA-AS O VENTO ... PAROLI ...

               

Ela era bonitinha, formosinha e alegre. Cobiçando-a ele mirou-a de alto a baixo pela enésima vez, medindo-lhe as palavras, os trejeitos, as formas, as expressões, os sorrisos e as gargalhadas, tentando adivinhar-lhe as intenções.

Havia na rebeldia dos seus cabelos, e nela, uma vontade disfarçada de se entregar, de se submeter a quem tomasse conta dela, seria uma rebeldia de trazer por casa e com a qual se enganava a ela mesma e à solidão vivida a que se acomodara. Talvez tivesse dado a si própria algum tempo até reencontrar o amor, até que a sua busca acusasse na conta corrente um saldo a favor, positivo, um saldo que lhe aliviasse o sofrimento e a consciência, um saldo que lhe devolvesse os sonhos e a inocência de outros tempos, um saldo que a resgatasse da desilusão em que se transformara a sua vida.

Ele sofria em silêncio, a vida roubara-lhe há bem pouco tempo sonhos e rebeldia. Tinham-no cercado nuvens negras carregadas de um desamor do mais escuro alguma vez visto, donde se desprendiam gota a gota e instilando em si quer a solidão quer a desilusão dos dias e das noites, como quem cientificamente aplica num condenado a tortura do sono.

Se o visse agora, de ombros caídos e olheiras fundas, o velho e sábio Azekel* um velho tucokwe, velho mui velho que meio século atrás viveu junto ao Cunene, na aldeia dos hereros, povo da etnia bantu com povoado perto de Calueque, sempre e pachorrentamente mirando com solene paciência e excelsa exactidão aqueles que passavam, teria dito deste desgraçado:

- A mordedura de um cão só se consegue curar com o pelo de outro cão.

O amor era portanto a solução, urgia encontrar outro amor, um grande amor que lhe enchesse sonhos, cama, dias, e lhe cortasse cerce sofrimento e desilusão, devolvendo ao desgraçado o direito a sonhar de novo, a rebeldia inata a si mesmo e natural nele, um amor que lhe transmutasse os dias negros a que tristemente se acomodara, o tornaram choroso e a quem unicamente uma solidão inocente alimentava, dias mais ditados e vividos pelo coração que pela consciência, todo ele incapaz de aceitar o carma, o fado, o destino a dor e a perda com que Deus o carregara.

Urgia portanto, quer a um quer a outro mudar-lhes a aura, buscar o amor, sacudir o desamor desses dias, sacudir dos ombros a desilusão que o tempo lhes atirara para cima e procurar de novo a inocência dos sonhos, o alívio da consciência que um abraço sempre traz como bónus.

Nele tal mantra teria que funcionar como o resgate que o arrancasse ao martírio a que voluntariamente se entregara e fruto de uma fidelidade absurda mas jurada mas, há sempre um mas, como se apaga o amor de um coração que, qual cofre, o guardou com devoção e ternura, como ? Como relembrar a letra do segredo e a chave esquecida, ambas deitadas fora depois de fechado o coração ?


E não buscava ela o mesmíssimo amor de que ele se mostrava tão necessitado ? Então como não via ele nela a paixão e a cura dos seus males, tão ridente ela se mostrava, tão empática, tão disponível, tão sempre à mão ? Que coisa seria que os travaria então levando-os a calar-se e a encolher-se apesar do calor, apesar do frio ? Certamente só Deus saberá, porque apesar da ternura os tentar e a vontade empurrar para os braços um do outro nunca sucumbiram ou cederam à mãe natureza.

Não me cabe nem posso falar por eles, sou um simples espectador e narrador, não devo nem posso mais que adivinhar-lhes o pensamento, os sentimentos, tomar-lhes o pulso ao sono, ou antes aos pesadelos, mas, entre uma alma em busca de marido e outra alma cujo amor e fidelidade se rendera e jurara fidelidade a uma ilusão, somente um choque ou uma desilusão acordarão.

Certamente evitando acender nela o fogo ele evita-a e, não querendo ela tomar a iniciativa por tal não lhe parecer correcto ou temendo lhe chamem oferecida, não o encoraja e então, ainda que de vez em quando almocem ou jantem juntos, como bons amigos, seria contudo caso para dizer que entre eles nem o pai morre nem a gente almoça, pois não se decidem...

A propósito, são quase horas de almoço, vamos a ele.




Manuscrito num guardanapo, Segunda-feira, dia 15 do mês de Abril de 2019 pelas 12:30h à mesa do New Concept Coffee & Shop - Urbanização da Cartuxa, em Évora.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

594 - NOVAS CRÓNICAS, OUTRAS CRÓNICAS, by Maria Luísa Baião *


Raramente recuso um desafio em especial se o mesmo constitui algo que me motive, agrade, e sobretudo seja por mim entendido como um desafio diversificado, como o serão estas crónicas, diferentes semana após semana, mas sempre viradas para os problemas do presente, sobretudo aqueles que nos digam directamente respeito, quer enquanto cidadãs (ãos) do mundo, quer acima de tudo como cidadãs (ãos) do Alentejo.

Há muito que o Director deste Jornal me lançara o convite, mais um repto que um convite, a que considerasse à minha disposição as páginas do seu prestigiado diário, assunto que mais que uma vez veio à baila, isto é, sempre que nos encontrávamos. Mal sabia que as suas palavras eram música para os meus ouvidos, ouro sobre azul, adorando como adoro, falar convosco escrevendo.

Aqui estarei todas as sextas-feiras, dando-vos conta das minhas impressões, mas acima de tudo expondo um olhar muito próprio, um olhar de mulher, numa perspectiva muito pessoal mas que certamente não deixará de se identificar com muitas (os) de vós.

Escrever é para mim uma forma de estar convosco, sabemos quanto o tempo é precioso por escasso, e na impossibilidade de com todos privar esta é uma, a única forma ainda que minorada de o fazer. Não será contudo a distância ou a ausência que impedirão que chegue até vós o meu testemunho, a intimidade dos meus pensamentos, que não receio repartir.

A cidadania tanto é um direito quanto um dever de todas (os) nós. Escrever, dividir convosco temores e apreensões, desejos e emoções, anseios e aspirações, será uma forma igualmente solidária de exercermos, praticarmos e cumprirmos essa cidadania.

O mundo é demasiado complexo para que o ignoremos, a cidadania e a democracia exigem a cada dia que passa a nossa participação mais ou menos empenhada, daremos se necessário um só passo de cada vez, mas faremos juntas (os) essa caminhada.

Para as (os) que já me conhecem tudo será mais fácil, para as (os) novas (os) leitoras (es) direi que é para mim um enorme prazer poder contar convosco, da mesma forma que poderão contar comigo, aqui neste espaço semana após semana buscando motivos para que todas nós, Diário do Sul incluído, possamos dizer que valeu a pena.


 Interrogar-se-ão porventura com o aparentemente absurdo título escolhido para estas crónicas, KOTA DE MULHER, surgiu por obra e graça do espaço político que se pretendeu conceder à mulher, como se não fosse por direito um espaço dela, a quem se alguma culpa podemos apontar é ao facto de “perder” tanto da sua vida a criar os filhos, esses filhos que numa atitude altruísta lhe pretendem dar agora o espaço, o tempo, a oportunidade, a dízima do que lhe devem.

E porquê com “K” ? porque nunca consegui esquecer a ironia, o sarcasmo, a sátira , implícita na frase “anarca” que no pós 25 de Abril imperava em tantas paredes; “ a porka da politika”. Ora sucede que eu não considero a política dessa forma, mas antes como uma causa nobre, (eventual e pontualmente servida, ou usada por gente menos nobre), ainda que não tenha evitado deixar escapar um irónico sorriso quando veio à tona o assunto das cotas.

Resultado, toma lá com um K, carregado evidentemente de toda a ironia, sarcasmo e sátira com que os “anarcas” pretenderam recheá-lo. Pelo menos um mérito teve em mim o assunto das cotas, levou-me a uma participação civica mais activa entre as quais se inscreve esta coluna que semanalmente com gosto e alegria escreverei a pensar em vós.

Feita a apresentação, com amizade me despeço de todas (os), com a garantia de que para a semana, todas as semanas, todas as sextas-feiras, aqui estarei convosco.


* By Maria Luísa Baião, escrito sexta-feira, ‎5‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2001, ‏‎23:04h e a primeira publicação no jornal DIÁRIO SUL dada à estampa nesse mesmo mês.



593 - O PORTINHO DO CANAL , by Luísa Baião *


Portugal afundar-se-á um dia dizem-no agora os números que há muito o bom senso conhecia. Há tanto quantos os anos que Milfontes eu não via e, enquanto a água para o mar corria, floresceu esta vila de tal maneira que se tornou um espanto. E tão harmoniosamente cresceu que vila já não me pareceu, antes trabalho laborioso bordado por cerzideira abnegada, animada e esperançada em mil amores.

Não é um malmequer que se nos oferece à chegada, antes um roseiral onde qualquer de nós se perderá endiabrada no meio de mil casinhas perfumadas, por caprichoso beiral rematadas e onde o desacerto dos homens ou bolsa endinheirada não logrou ainda erguer aos céus a sua ânsia ávida que, por todo o litoral se ergue como hirto falo da ganância.

Linda é ainda essa vila de mil fontes salpicada. E para tesouro lhe chamarmos só falta mesmo uma outra estrada que a ela nos conduza, que sereias cantem uma Ode a quem Mira sua beleza, a quem não escusa suas águas pois não são só elas que ao partir nos deixam mágoas.

Nem tão pouco as fráguas que delas afloram, tornando mais belas as viagens que nos oferecem miragens de corpos em oferenda a hélio, ilusão de verão de resultado méleo, fruto dos modernos valores que a muitas toldam a razão. Há bem mais de vinte anos que a ninguém lembra cuidar dum regaço de areal entre a marginal e a orla espumante, onde nem o suave rebentamento das ondas o pensamento nos salpica. Espaço de ciganos e ciganas, espaço nosso, fugitivas da rotina e dos enganos, espaço que a preguiça estica em evasivas de avestruz não consentidas. Que alguém a esse palmo de terra faça jus.

Frui esses curtos dias, vi fitas, ouvi melodias mil e mil frutos do mar quis devorar. E foi pelo pecado da gula que, não encontrando na vila onde me saciar, gentios astutos me alvitraram rumar ao Portinho do Canal. Descontente com esse tacanho modo de servir ou entender que felizmente já poucos teimam em manter, enfunei as velas e rumei ao sítio onde todas, mas todas, aconselho, desde o primeiro dia devem ir.

Uma cozinha com brio que nunca ofereceu fastio, suporta típica balaustrada sobre um mar onde nem uma barquinha se sentirá abandonada. Para as acolher o canal, para nos acolher esse beiral gastronómico, sem baixela de cristal mas com um menu em estrela e de sabor astronómico. E, enquanto em aleivosia as ondas da maresia formavam castelos de espuma, coisa alguma atormentava os meus manjares de rainha, inda que uma Tv em ladainha omnipresente, teimasse moer a gente.

 Num hemiciclo homens falavam, repetindo à exaustão um pesadelo, um quinhão que há muito a todos cansava, enquanto ali mais ao lado a serra ardia sem apelo. Há muito deixei de os ouvir, não vale a pena o flagelo. Será mais fácil um camelo carpir com desvelo sentido a perda de um qualquer bandido, que ouvir esses sonantes falar sem que nos tenham mentido.

Virei o olhar para o mar, onde reflexos raiados na crista de ondas montados lembravam lindas estrelícias, enquanto suave ondular trazia até mim sonhando, blandícias de encantar que me deixaram cismando.

Quão mais olhava e cismava melhor via sobre as águas, jardins, canteiros e arranjos, como se todos os arcanjos se tivessem combinado p'ra tornar o mar matizado de odores brejeiros emanados de jasmins nele bordados.

Barcos de todas as cores desfraldavam as bandeiras c’os nomes dos seus amores em cores azul-turquesa e rubi de amoras copiados, misturando corações em framboesa pintados, dando alma a cada mestre e a cada leme plantado. Dois cães, dois amores-perfeitos em correria por ali rematavam este quadro que vos conto porque vi, não por estar em esquadro armado ou cavalete empoleirado.

Vá ao Portinho por mim, que deixo recomendado, é apontar ao Cercal, o resto é caminho andado.
  

* By Maria Luísa Baião, texto inédito, escrito às 16:25 h duma sexta-feira, ‎22‎ de ‎Julho‎ de ‎2009 em Vila Nova de Mil Fontes, ‏‎após lauto almoço comigo, seu marido, e o nosso comum amigo Francisco Pândega, precisamente nesse restaurante.