segunda-feira, 15 de abril de 2019

595 - PALAVRAS, LEVA-AS O VENTO ... PAROLI ...

               

Ela era bonitinha, formosinha e alegre. Cobiçando-a ele mirou-a de alto a baixo pela enésima vez, medindo-lhe as palavras, os trejeitos, as formas, as expressões, os sorrisos e as gargalhadas, tentando adivinhar-lhe as intenções.

Havia na rebeldia dos seus cabelos, e nela, uma vontade disfarçada de se entregar, de se submeter a quem tomasse conta dela, seria uma rebeldia de trazer por casa e com a qual se enganava a ela mesma e à solidão vivida a que se acomodara. Talvez tivesse dado a si própria algum tempo até reencontrar o amor, até que a sua busca acusasse na conta corrente um saldo a favor, positivo, um saldo que lhe aliviasse o sofrimento e a consciência, um saldo que lhe devolvesse os sonhos e a inocência de outros tempos, um saldo que a resgatasse da desilusão em que se transformara a sua vida.

Ele sofria em silêncio, a vida roubara-lhe há bem pouco tempo sonhos e rebeldia. Tinham-no cercado nuvens negras carregadas de um desamor do mais escuro alguma vez visto, donde se desprendiam gota a gota e instilando em si quer a solidão quer a desilusão dos dias e das noites, como quem cientificamente aplica num condenado a tortura do sono.

Se o visse agora, de ombros caídos e olheiras fundas, o velho e sábio Azekel* um velho tucokwe, velho mui velho que meio século atrás viveu junto ao Cunene, na aldeia dos hereros, povo da etnia bantu com povoado perto de Calueque, sempre e pachorrentamente mirando com solene paciência e excelsa exactidão aqueles que passavam, teria dito deste desgraçado:

- A mordedura de um cão só se consegue curar com o pelo de outro cão.

O amor era portanto a solução, urgia encontrar outro amor, um grande amor que lhe enchesse sonhos, cama, dias, e lhe cortasse cerce sofrimento e desilusão, devolvendo ao desgraçado o direito a sonhar de novo, a rebeldia inata a si mesmo e natural nele, um amor que lhe transmutasse os dias negros a que tristemente se acomodara, o tornaram choroso e a quem unicamente uma solidão inocente alimentava, dias mais ditados e vividos pelo coração que pela consciência, todo ele incapaz de aceitar o carma, o fado, o destino a dor e a perda com que Deus o carregara.

Urgia portanto, quer a um quer a outro mudar-lhes a aura, buscar o amor, sacudir o desamor desses dias, sacudir dos ombros a desilusão que o tempo lhes atirara para cima e procurar de novo a inocência dos sonhos, o alívio da consciência que um abraço sempre traz como bónus.

Nele tal mantra teria que funcionar como o resgate que o arrancasse ao martírio a que voluntariamente se entregara e fruto de uma fidelidade absurda mas jurada mas, há sempre um mas, como se apaga o amor de um coração que, qual cofre, o guardou com devoção e ternura, como ? Como relembrar a letra do segredo e a chave esquecida, ambas deitadas fora depois de fechado o coração ?


E não buscava ela o mesmíssimo amor de que ele se mostrava tão necessitado ? Então como não via ele nela a paixão e a cura dos seus males, tão ridente ela se mostrava, tão empática, tão disponível, tão sempre à mão ? Que coisa seria que os travaria então levando-os a calar-se e a encolher-se apesar do calor, apesar do frio ? Certamente só Deus saberá, porque apesar da ternura os tentar e a vontade empurrar para os braços um do outro nunca sucumbiram ou cederam à mãe natureza.

Não me cabe nem posso falar por eles, sou um simples espectador e narrador, não devo nem posso mais que adivinhar-lhes o pensamento, os sentimentos, tomar-lhes o pulso ao sono, ou antes aos pesadelos, mas, entre uma alma em busca de marido e outra alma cujo amor e fidelidade se rendera e jurara fidelidade a uma ilusão, somente um choque ou uma desilusão acordarão.

Certamente evitando acender nela o fogo ele evita-a e, não querendo ela tomar a iniciativa por tal não lhe parecer correcto ou temendo lhe chamem oferecida, não o encoraja e então, ainda que de vez em quando almocem ou jantem juntos, como bons amigos, seria contudo caso para dizer que entre eles nem o pai morre nem a gente almoça, pois não se decidem...

A propósito, são quase horas de almoço, vamos a ele.




Manuscrito num guardanapo, Segunda-feira, dia 15 do mês de Abril de 2019 pelas 12:30h à mesa do New Concept Coffee & Shop - Urbanização da Cartuxa, em Évora.