Portugal afundar-se-á
um dia dizem-no agora os números que há muito o bom senso conhecia. Há tanto
quantos os anos que Milfontes eu não via e, enquanto a água para o mar corria,
floresceu esta vila de tal maneira que se tornou um espanto. E tão
harmoniosamente cresceu que vila já não me pareceu, antes trabalho laborioso
bordado por cerzideira abnegada, animada e esperançada em mil amores.
Não é um malmequer
que se nos oferece à chegada, antes um roseiral onde qualquer de nós se perderá
endiabrada no meio de mil casinhas perfumadas, por caprichoso beiral rematadas e
onde o desacerto dos homens ou bolsa endinheirada não logrou ainda erguer aos
céus a sua ânsia ávida que, por todo o litoral se ergue como hirto falo da ganância.
Linda é ainda essa
vila de mil fontes salpicada. E para tesouro lhe chamarmos só falta mesmo uma
outra estrada que a ela nos conduza, que sereias cantem uma Ode a quem Mira sua
beleza, a quem não escusa suas águas pois não são só elas que ao partir nos
deixam mágoas.
Nem tão pouco as
fráguas que delas afloram, tornando mais belas as viagens que nos oferecem
miragens de corpos em oferenda a hélio, ilusão de verão de resultado méleo,
fruto dos modernos valores que a muitas toldam a razão. Há bem mais de vinte
anos que a ninguém lembra cuidar dum regaço de areal entre a marginal e a orla
espumante, onde nem o suave rebentamento das ondas o pensamento nos salpica.
Espaço de ciganos e ciganas, espaço nosso, fugitivas da rotina e dos enganos,
espaço que a preguiça estica em evasivas de avestruz não consentidas. Que
alguém a esse palmo de terra faça jus.
Frui esses curtos
dias, vi fitas, ouvi melodias mil e mil frutos do mar quis devorar. E foi pelo
pecado da gula que, não encontrando na vila onde me saciar, gentios astutos me
alvitraram rumar ao Portinho do Canal. Descontente com esse tacanho modo de
servir ou entender que felizmente já poucos teimam em manter, enfunei as velas
e rumei ao sítio onde todas, mas todas, aconselho, desde o primeiro dia devem
ir.
Uma cozinha com brio
que nunca ofereceu fastio, suporta típica balaustrada sobre um mar onde nem uma
barquinha se sentirá abandonada. Para as acolher o canal, para nos acolher esse
beiral gastronómico, sem baixela de cristal mas com um menu em estrela e de
sabor astronómico. E, enquanto em aleivosia as ondas da maresia formavam
castelos de espuma, coisa alguma atormentava os meus manjares de rainha, inda que
uma Tv em ladainha omnipresente, teimasse moer a gente.
Num hemiciclo homens falavam, repetindo à
exaustão um pesadelo, um quinhão que há muito a todos cansava, enquanto ali
mais ao lado a serra ardia sem apelo. Há muito deixei de os ouvir, não vale a
pena o flagelo. Será mais fácil um camelo carpir com desvelo sentido a perda de
um qualquer bandido, que ouvir esses sonantes falar sem que nos tenham mentido.
Virei o olhar para o
mar, onde reflexos raiados na crista de ondas montados lembravam lindas
estrelícias, enquanto suave ondular trazia até mim sonhando, blandícias de
encantar que me deixaram cismando.
Quão mais olhava e
cismava melhor via sobre as águas, jardins, canteiros e arranjos, como se todos
os arcanjos se tivessem combinado p'ra tornar o mar matizado de odores
brejeiros emanados de jasmins nele bordados.
Barcos de todas as
cores desfraldavam as bandeiras c’os nomes dos seus amores em cores azul-turquesa
e rubi de amoras copiados, misturando corações em framboesa pintados, dando
alma a cada mestre e a cada leme plantado. Dois cães, dois amores-perfeitos em
correria por ali rematavam este quadro que vos conto porque vi, não por estar
em esquadro armado ou cavalete empoleirado.
Vá ao Portinho por
mim, que deixo recomendado, é apontar ao Cercal, o resto é caminho andado.
* By Maria Luísa Baião, texto inédito, escrito às 16:25 h duma sexta-feira, 22 de Julho de 2009 em Vila Nova de Mil
Fontes, após lauto almoço comigo, seu marido, e o nosso comum amigo Francisco Pândega,
precisamente nesse restaurante.