Ao
visitar junto ao Cunene a aldeia dos hereros, povo da etnia bantu com povoado
perto de Calueque, nunca deixei de cumprimentar o velho e sábio Azekel (o que
reza ao Senhor) um velho tucokwe, sempre de faca afiada manuseando o marfim pachorrentamente, com
solene paciência e excelsa destreza. Hoje, ao lembrá-lo pela segunda vez por
ter passado frente à nossa mesa na esplanada uma linda negra, veio-me à ideia
um outro velho, o velho Li, que em Macau e com paciência chinesa esculpia
diligente e pacientemente em pequeníssimos bagos de arroz, casais de namorados
beijando-se, como provavelmente se beijaram Camões e Tin-Nam-Men, a nativa que,
diz a lenda, estaria perdidamente apaixonada por ele, já que o velho Li montara
a banca quase na gruta de Patane, que segundo a história Camões ocupou, e onde terá
escrito os Lusíadas.
Acreditem,
o velho Li prestava muito maior atenção aos pormenores que o velho Azekel
alguma vez prestou, embora cada um de nós tivesse que socorrer-se de uma lupa
se desejasse observar o fruto da sua arte, daí a fila ser grande, a pressa
muita, a impaciência maior ainda, a lente sujíssima atrasando-nos, e o guia
lembrando-nos o tempo todo do pouco tempo que nos restava para chegarmos ao
aeroporto a horas do check in. Não me
recordo do velho Li ter vendido uma única das suas admiráveis estatuetas nos
vinte a trinta minutos em que dezenas, centenas ou milhares de nós por ali
desfilámos, não sei de que viveria aquele velho seco, alimentar-se-ia de arroz
? Aguentar-se-ia à base de ópio ? O assunto despoletara um sururu só abafado
p’la alegria de nos voltarmos a sentar no avião de regresso a Lisboa.
O
velho Azekel não comia o marfim mas governava-se bem dele, se governar-se é o
termo adequado, guardava numa lata ferrugenta todas as moedas e notas que a
tropa lhe desse em troca da sua arte e das duas uma, ou teria umas dezenas ou
centenas de latas cheias enterradas ninguém saberia onde e estaria rico, ou era
um mistério o destino que o pilim levava, o velho nunca saíra nem saía da
aldeia, e se havia coisa de que ele não precisava nem sabia que fazer-lhe seria
ao dinheiro. A sua arte, o reconhecimento geral e a consideração que lhe
votavam bastava-lhe, era feliz e isso saltava à vista de todos. Feliz como as
suas esculturas que a todos que as possuíssem tornavam felizes, estariam
enfeitiçadas diziam alguns, dizia-se, naturalmente ninguém acreditava minimamente em tal,
compravam-lhas por não haver quem esculpisse mulheres como o velho Azekel,
mulheres lindas, mulheres e mamas, seios, peitos, e depois de Deus acredito que
ninguém daria à luz mulheres mais lindas que esse velho, a quem a mulher
africana deveria estar grata, fosse em marfim fosse em pau-preto ou pau-ferro,
melhor que ele só Deus tinha o condão de criar.
Embora
o dinheiro não fosse o móbil o velho vendia as mesmas estatuetas por vezes duas
ou três vezes, ou mais, desculpai-me a redundância, todos as queriam ter, como
se fossem amuleto da sorte, todos as queriam comprar mas infelizmente nem todos
regressavam para as levantar, a vida tem destas coisas, por isso o velho nem
olhava a cara nem os olhos dos que lhe pagavam, tinha tempo de os ver se
voltassem, sabedoria de velho ou intuição dos tempos que corriam por aquela
época. Seja como for guardo eu todas estas recordações e a cara de todos, dos
que foram e regressaram, idem para os que não voltaram, e naturalmente da
beleza negra da mulher africana, esculpida num dente de elefante do mais branco
que há e por motivos pessoais guardara na garagem, numa caixa de papelão cheia
de pó e por trás de toda a tralha que ontem desencantei até achar o suporte da
mota a fim de o montar na dita, fora-me oferecido pelos amigos Aires / Paixão
quando da compra da mota, há três ou quatro anos, e até agora tivera preguiça
de o montar, esquecera até onde o guardara, e na busca dei com a caixa desse
dente de elefante.
Tinha-o
desde 73, mas em 98 por motivos pessoais embalara-o e chutara-o para a garagem.
Tudo por saber, desde essa ocasião em especial quão importantes são para as
mulheres os seios, à minha companheira surgira um problema num deles, fora
obrigada a removê-lo. Meia dúzia de anos mais tarde e mercê da reconstrução
fora eu chamado pela Dr.ª Maria A. a pronunciar-me:
-
Querido, veja neste catálogo e dentro desse conjunto de três qual deles lhe
agrada mais e diga de sua justiça. Não se perca nos outros cinquenta e tal…
e eu disse, escolhi o par
empinado, pequeno e empinado, e assim foi feito, reconstruido um e retocado o
outro, para que ficassem mui idênticos. Um calvário, só quem passa e vive essas
coisas ou as presencia por dentro saberá quanto custam, em sofrimento, em dor, um
peito, o outro, depois o mamilo, tira dum mete no outro, segue-se o tatuar da
auréola, acertar a cor e o tamanho, tudo custa, tudo tem custos e faz rombos
especialmente na auto-estima da paciente, inda que compreensivelmente sempre
tivesse feito notar que me bastaria um, afinal aquele onde eu costumava
agarrar-me ficara, ela era a mesma pessoa, a mesma companheira, não tinha para
mim menos valor por isso e bla bla bla…
Conversa
da treta digo eu hoje com acerto, por pouco ou nada ter conseguido quanto a consolação, a
Dr.ª Maria A. e o silicone falaram mais alto e fizeram mais por ela que todo o
meu paleio, e a verdade é que escolhera para reconstrução um par igual ao dela
mas também igualzinho ao do dente de marfim. Por isso o guardei, além de que
tudo que lembrasse seios não devia andar por ali à vista dela, que tanto chorara
pelos seus. Passei a valorá-los mais, aos seios, a ter mais cuidado com eles, a
dedicar-lhes mais atenção, hoje sei haver gostos para tudo e para todos os
gostos, não devem por isso as mulheres lamentar tê-los pequenos ou grandes, ou
vice-versa, a beleza não está no tamanho, e como diria o velho Azekel, está no momento, está em
tê-los, em chaamar-lhes seus, por isso as suas estatuetas se vendiam tão bem, fosse
qual fosse o tamanho e o comprimento dos seios que apresentassem.
Há
gostos para tudo e havia-as para todos os gostos, o milagre está na nossa
mente, na nossa psico, na nossa sensibilidade, no nosso tacto, na nossa mão, o
milagre está no amor, no beijo, na boca, nos lábios, na sensualidade, no escuro
do quarto, no pensamento, na ocasião, no desejo, na satisfação, todo este
mistério não é afinal mais misterioso que a pancada, a tara ou a mania com as
almofadas da cama, uns gostam delas altas e bem cheias, outros baixas e quase
vazias, há até quem durma sem almofada nenhuma.
Gostos
não se discutem.