ÉVORA, CIDADE FANTASMA - UMA IDEIA
DE CIDADE
Texto nº 4 (de 12) e publicado
no Diário do Sul em 14-08-2000
“O
que caracteriza a cidade contemporânea é a sua desintegração. Não é pública, no
modo clássico, não é doméstica, não é religiosa. É uma cidade fragmentada,
caótica, dispersa, a que falta uma figura própria, “a alma”…
O coração da cidade está hoje desintegrado, continuamos a pensar que os locais
de reunião pública, praças, passeios, cafés, onde as pessoas podem encontrar-se
e falar são coisas do passado, mas devem ter lugar nas nossas cidades” *
Muitas
são as definições de cidade, curiosa a que se segue, de Ortega y Gasset, para
quem cidade por excelência é a cidade latina, mediterrânica, clássica, onde “o
elemento fundamental é a praça, local de conversa, eloquência, política. Em
rigor a urbe clássica não deveria ter casas, mas apenas fachadas, necessárias para
delimitar uma praça. A cidade clássica nasce do instinto oposto ao doméstico. Edifica-se
casa para se estar nela, funda-se a cidade para se sair de casa e reunir-se com
os outros, que também saíram de suas casas” **
O
imaginário de Ortega y Gasset move-se dentro da cidade política, onde se conversa, onde os
contactos predominam, e onde a praça é o lugar de tertúlia da cidade, de tertúlia
política. Este
tipo de cidade, loquaz, conversadora, tem muito que ver com o desenvolvimento
da vida citadina, e na medida em que diminua a loquacidade, declina o exercício
da cidadania, na esteira da pólis e da ágora gregas.
As
cidades anglo-saxónicas, caladas, reservadas, têm em vida doméstica o que lhes
falta em vida civil. Os anglo-saxónicos fecham-se em casa, nos bares ou pubs,
onde alegre e salutarmente convivem, são o contraste entre cidades domésticas e
cidades públicas, como a nossa era.
Na
cidade muçulmana no existe a praça como elemento de relação pública, a função
da praça é exercida por um pátio na casa, o espaço privativo, ou na mesquita,
nesta última não se trata de política, mas sim de religião, de meditação, não é
um espaço público como nós latinos o entendemos. Na
civilização muçulmana o único lugar que adquire vida é o mercado, alcaçaria ou
bazar, que satisfaz necessidades públicas mas meramente funcionais. A cidade
muçulmana baseia-se na vida privada, a anglo-saxónica é doméstica, a latina é
pública.
Aos
eborenses de hoje tiraram a praça, ou as praças, tiraram esplanadas e cafés,
(café Arcada e café Portugal), tiraram pontos de encontro e de tertúlia, deram-lhes
em troca Malagueiras, tornaram-nos abúlicos, coarctaram-lhes a participação,
deram-lhes lugares para comícios cuja moda foi bem passageira, foi isso que
fizeram com a Praça Joaquim António de Aguiar, e com a Praça do Geraldo (ou do Giraldo, há meses com candeeiros no tabuleiro que nem funcionam e sem bancos para
nos sentarmos), foi como se nos tivessem tirado a alma. Que nos
deram em troca ? Uma cidade despovoada quando a noite chega, onde durante o dia
é impossível circular ou estacionar, uma cidade de onde só nos apetece fugir. Que
correu mal ? Por que temos numa cidade tão pequena os males das grandes
metrópoles e não as suas vantagens ?
“A
cidade é uma linguagem de direitos e deveres” *** Por que
temos só deveres ? Quem nos roubou os direitos ? Ainda estamos a tempo de
evitar o crescimento e as transformações incongruentes ou males maiores, apesar da cidade ser constituída por áreas congestionadas e zonas diluídas
pelo campo, não existe nela a vida de relação, nem pode existir, ou por asfixia
o por dispersão… O homem sofre nela tantos e tão diferentes estímulos que acaba
por se encontrar totalmente desintegrado” *
A apatia
dos eborenses em relação à sua participação cívica pode muito bem radicar
nestes pressupostos, os eborenses encontram-se, não se reúnem, falam, não
comentam, observam, não analisam, registam, não criticam, sobrevivem, não vivem. Acomodaram-se
à situação, não reagem, não agem, não interagem.
Tudo lhes passa ao lado como
se nada lhes dissesse respeito, habituados que estão a ninguém lhes pedir
opinião. De tudo se alheiam, não compreendem já quais os seus direitos. Alguém
faz, alguém manda fazer, não sabem quem ou porquê, nem importa quem ou o quê,
consta que são sempre os mesmos, por isso a cidade não é “linguagem”, mas um
complexo divórcio há muito consumado.
“A
composição urbana refere-se a critérios de decisão de ordem estética e
funcional, não pode ser abordada sem uma sólida cultura arquitectónica,
histórica e política, privilegiando os aspectos técnicos, sociais e económicos”
****
“O urbanista
hoje terá que deixar de ser um especialista que impõe soluções em nome da sua
competência, para se tornar uma espécie de animador cultural, social,
encarregado de liderar o debate e favorecer a emergência de consensos, envolver
as populações, conquistadas pela razão dos seus argumentos” ****
Neste
caso, o exemplo do modo como foi conduzido o processo do Aterro Municipal é
claramente elucidativo do muito que há a aprender...
Na
próxima crónica um mergulho nos meandros que poderão estar na origem do crónico
subdesenvolvimento de Évora, crónico mas típico, tão típico que qualquer dia
colocam um eborense ao lado dos Meninos da Graça, para inglês ver.
***** ATENÇÃO !!
NESTA SÉRIE TODOS OS TEXTOS TÊM VINTE ANOS !!!!!
MAS ESTÃO ACTUALISSÍMOS ....
Texto escrito em 29 do 6 de
2000, e publicado no Diário do Sul em 14-08-2000.
* Fernando Chueca Goitia in “Breve
História Do Urbanismo”, Presença
** in “The
Writings Of Josep Lluis Sert”
(Arquitecto e Urbanista)
*** Leonor Coutinho in “Seminário
A Política Das Cidades”, 2/97
**** Jean Paul Lacaze in “A Cidade De Urbanismo” , Instituto Piaget