quinta-feira, 1 de maio de 2025

831 - ENCONTREI O AMOR DA MINHA VIDA ...

 



Se não foi uma catrefa de anos andou lá perto. Neste momento de dor e introspecção enquanto o corpo lhe desce à terra dou por mim olhando em redor as gentes que o acompanham acreditando conhecê-lo, digo tê-lo conhecido melhor que a família, melhor que quaisquer amigos que teve, e teve bastantes …

 

Foram muitos anos, muitos meses, muitos dias, muitas horas lado a lado, partilhando trabalho e conversas, sonhos e promessas, razões, esperanças e, por que não dizê-lo, também desilusões. Eram mais de oito horas por dia se tivermos em conta que, muito antes de Abril e muito antes dos nossos vinte partilhámos diariamente e juntos centenas de almoços em quaisquer dos muitos e bons restaurantes desta cidade.

 

Nessa altura podia-se e sobrava dinheiro ao fim do mês. Partilhávamos tarefas numa multinacional derivada da Exide inglesa e os salários nivelados com os da capital, condiziam com a dimensão desse empório comercial com agências e fábricas por todo o mundo. Por esses anos, ainda que não fossemos propriamente qualificados, a empresa era-o, o país era-o, a economia era-o, sendo o escudo uma das moedas mais fortes e mais seguras do mundo. Fora da empresa poucos amigos partilhávamos, ele frequentava tertúlias intelectuais em grupelhos de esquerda, eu pontificava em tudo que estivesse ligado às motas e nelas percorri o Alentejo primeiro e, anos depois muito mundo europeu.

 

O serviço militar, que cumpri com galhardia, separar-nos-ia, porém o bambúrrio de Abril se encarregou de nos voltar a juntar. Ambos contribuímos para evitar que a África austral se tivesse transformado num novo Vietnam. Eu soube-o sempre, ele e uma maioria, nunca acreditaram no que quanto a esse aspecto da questão lhe dizia e, como milhares de outros nunca soube o que por lá esteve fazendo ou por que tal desiderato lhes aconteceu. Lembro com saudade um dia em que puxei dos galões e trouxe a Évora vários autocarros azulinho escuro cheios de marinheiros, quais gaivota em terra e que haviam de infestar a Praça do Geraldo e o Arcada. Parceiro em Évora nesse dia ? Ele ! Quem mais poderia ter sido ?

 

Não foi com ele que partilhei, partilhámos durante o PREC com Francisco Louçã numa casa cedida à UDP e pegada à taberna do Pinto, a feitura de cartazes gigantes ? Eram lençóis pintados à mão e gritando palavras de ordem de que a revolução se alimentava e aos quais nos dedicávamos com fervor e fé. Foram tempos em que cada dia trazia uma surpresa, ou era o agrário/latifundiário Mendonça que encomendara um Mercedes último modelo na Lagril e se recusava a recebê-lo por a matrícula ser PC qualquer coisa, ou era o Orvalho da Rainha do Sul a exigir recibos manuscritos e mal paridos em papel pardo p’ra dar contas aos camaradas, ou o Mário Leitão, um reaça de primeira entoando o vozeirão e em quem vi as primeiras atitudes democráticas e disposição para lutar por elas e pela legalidade nesse tempo caótico em que os fins justificavam os meios e todos atropelavam todos, menos o amigo Leitão, qual penedo ou sentinela vigilante denunciando arbitrariedades e fazendo-lhes frente pois não suportava atropelo atrás de atropelo numa democracia que de tal só tinha o nome e que eram o pão nosso de cada dia …

 

Voltando ao Mendonça, que como muitos era considerado reaccionário, agrário, latifundiário, num tempo em que não se podia ser lavrador inquiro-me hoje, hoje que tudo pertence aos espanhóis, que a agricultura virou intensiva/extensiva em campos a perder de vista e não emprega ninguém, que têm inclusivamente improvisadas pistas de aterragem de onde partem e onde chegam sem dar cavaco a ninguém em pequenas avionetas, já não são reaccionários, nem agrários, nem latifundiários ? Não ! Agora são investidores, agricultores, nossos donos e os donos disto tudo e quem leva daqui os lucros da terra deixando-nos as taças e os títulos dos jornais; Alentejo um dos maiores produtores de azeite do mundo ! Esquecendo que a terra, os olivais, o azeite, os alentejanos e os lucros tudo isso é dos espanhóis ! Digam-me lá se não somos um povinho ceguinho e ignorante como nunca tínhamos sido !?

 

Era assim, e nós olhando e pasmando com o à vontade e simplicidade com que se levantavam estandartes que às escondidas eram pisados e repisados para fazer valer quaisquer doutrinas para as quais nitidamente não estávamos preparados. Eça tivera de novo mais que razão, ainda tem, a democracia ficava-nos e fica-nos curta nas mangas, hoje nem a conseguimos envergar tão encolhida torcida, retorcida, tão pisada quão repisada ela está.

 


Foram muitos os anos que partilhámos naquela multinacional capitalista onde além de um bom vencimento dispúnhamos de condições de trabalho invejáveis e sobretudo de um ambiente laboral inigualável, todavia era tanta greve e tantas as tempestades que o país ia vivendo e atravessando que o maná acabou-se, a empresa não fechou como milhares de outras mas encolheu, tendo ficado reduzida a vinte por cento do que era… Metemos ao bolso chorudas indemnizações, as leis do trabalho vinham ainda do tempo de Salazar e, com, umas décadas de casa, como ambos tínhamos, saímos no mesmo dia, cada um de nós com uma pequena fortuna no bolso. Não sei se no bolso, pela época ainda não havia a moda das transferências bancárias, nem multibanco, acho que nos pagaram em cheque.

 

Eu acabara o curso por essa altura, um curso que em parte agradeço a esse meu amigo que “tapava” as minhas ausências quando ia às aulas. Eu ia á noite e aos fds dar um jeitinho no trabalho que por esse motivo deixara atrasado mas, no Font office foi ele quem durante cinco anos sempre me tapou e me salvou. Tenho noção de que me prestou um inigualável favor. Tive oportunidade de, por diversas vezes lho lembrar e lhe agradecer. 

 

Foram tempos felizes num ambiente de trabalho memorável sem as preocupações que hoje assaltam todos os jovens e menos jovens, a precariedade, a injustiça nas classificações de categorias profissionais, a incapacidade de se construir uma carreira, nada disso, nessa época as leis de trabalho eram poucas mas claras, fiáveis, defendiam efectivamente quem trabalhava não havendo patrão que não temesse a IGT, Inspecção Geral do Trabalho. É caso para dizer que democracia e direitos laborais eram coisas daquele tempo, agora qualquer trabalhador é um escravo sem valor, sem dormir, sem dinheiro que chegue até ao fim do mês, nem para viver mínima e dignamente qualquer dia chegará se é que para muita gente esse dia não chegou já…

 

Foram anos em que a vida fluía e se vivia, tão bem ou melhor que agora e com muito menos preocupações, menos sobressaltos e menos impostos para pagar. Esta democracia está a matar-nos, já não somos ninguém, já nada é nosso, a não ser essa enorme divida claro … Dizia eu que a vida fluía, e no entretanto, apaixonado casei-me, encontrei o amor da minha vida, já esse meu amigo não poderia dizer o mesmo ainda que tivesse igualmente casado poucos anos depois. A intimidade da nossa amizade permitia-nos conhecer as forças e fraquezas de cada um. Por vezes penso, e acredito piamente que o conhecia melhor que a família. Foram muitos anos, muitas horas, muitas conversas, muitos assuntos, muitas confidências, muitos almoços, muita confiança mútua, muita amizade.

 

Fomos felizes enquanto colegas e amigos desde aqueles tempos tumultuosos em que vivi uma paixão assolapada e conheci o amor da minha vida, casara-me, ele casou-se penso que sem paixão nem amor e, a julgar pelas suas atitudes e comportamentos tê-lo-ia feito por necessidade e tradição social. Em momento algum senti que houvesse amor na sua vida, e bem precisava, aliás, quem não precisa ? Ter sentido ter ele vivido um casamento sem amor terá sido para mim o facto relevante da vida desse meu amigo e colega que mais me marcou, quanto a ele não sei, sei apenas ter deixado de ir dormir a casa da avó ou da tia, ali á rua da Azaruja e ter passado a fazê-lo algures, nunca soube bem onde, só muito tardiamente tive de tal conhecimento.

 

Após a saída dessa multinacional capitalista onde fomos tão felizes a vida nunca mais lhe sorriu, o país afogava-se numa crise de que ainda não saiu, a instabilidade, a precariedade no emprego davam descaradamente os primeiros passos sorvendo-o para uma dança macabra da qual nunca mais logrou sair, facto do qual culpava amigos de longa data, bem na vida, com tachos ou lugares cativos em municípios, ministérios, direcções gerais e regionais, delegações, a quem culpava de só o verem e convidarem para comícios, manifestações e arruadas ignorando infantilmente a situação dele, as aflições dele, a ansiedade dele, a insegurança, o constrangimento familiar etc etc etc …

 

Rápida e facilmente tracei um paralelo entre a sua situação e o pensamento dela resultante e o meu próprio pai, engajado desde longa data mas desiludido nos últimos anos de vida, senão mesmo até falecer com as promessas de Abril, com os amanhãs em que nunca ouviu cantar, com a democracia por cumprir. Tenho a certeza absoluta, o meu querido amigo e colega não morreu esquerdista, morreu traído, arrependido, desiludido. Já quanto ao meu pai apostaria igualmente, que também mas, ao contrário desse meu querido amigo, essa foi confissão que nunca me fez, contudo levou-me a deduzir e concluir ter morrido revoltado com as mentiras de Abril, com os políticos que Abril pariu, com a corrupção generalizada, o atraso endémico, o seguidismo cego, a partidarite saloia, o amiguismo sem pudor.

 

Morreu sem conhecer o amor esse meu amigo, nem o amor nem a solidariedade, nem a coesão popular que tanta influência tiveram na sua vida. É este o meu diagnóstico e opinião formal e final. Só quem não privou com ele, quem não conheceu o calvário que atravessou por o mano mais velho, o mano economista, o mano com quem entre 75 e 7 ou 79 passara os sábados trabalhando as escritas das cooperativas da zona de Arraiolos e que, como as demais, faliriam todas poucos anos mais tarde.

 

Foi principalmente esse mano quem lhe dissipou a fortuna que recebera quando, no mesmíssimo dia em que abandonáramos os lugares na tal multinacional capitalista a troco de chorudos cheques. Estávamos no inicio dos anos noventa, os telemóveis apareciam e seduziam, o mano mais velho, conhecedor e com olho para o negócio juntou os outros dois irmãos, o do meio e o mais novo, o meu amigo, juntaram capitais e esforços tendo iniciado um investimento e aberto uma loja de telélés, acreditando em quem lhes terá dito ser Évora uma terra de futuro. Claro engano que deitaria por terra o sonho dos manos e esturraria a massa empatada na coisa. Sem maçaroca, aliás com as mãos cheias de maçaroca queimada, sem emprego certo, regular, estável, sólido, sobrevivendo na crista da onda da precariedade esse meu amigo ouviria das boas em casa… Sem culpa, sem culpa, porque o mano tinha razão, o negócio era de futuro, somente se enganou na cidade e zona em que lançou as redes, ou âncora, uma cidade sem vida, um Alentejo sem mercado, tivesse-o feito em Lisboa ou em Setúbal e os três manos estariam hoje ricos.

 


Em Évora só o atraso subsiste e vinga, o atraso e o passado, é uma terra sem presente e sem futuro. A história dos telemóveis foi várias vezes aflorada entre nós, sei que o meu amigo acabou por compreender as limitações que conduziram à falência da ideia e ao esturro de muita massa, sei também que acabou perdoando o mano, os manos, tão crentes e inocentes na coisa quanto ele. O pior terá sido o que passou em casa, o pior terá sido falta de compreensão e solidariedade de familiares e amigos, o pior terá sido o engano em que Abril se transformou, o pior terão sido as tais promessas que passados cinquenta anos continuam por cumprir e um povo ignorante como nunca fora e que ainda festeja com esperança o descalabro em que caiu acreditando sem razão para isso e esquecendo que cinquenta anos não são cinquenta meses, são uma vida, esquecendo que em cinquenta anos a China de Mao, atrasada, se guindou aos píncaros depois de ouvir Nixon e Kissinger em 1972, enquanto esta nação velha de quase 9 séculos nos mesmíssimos cinquenta anos se atolou num buraco do qual nunca mais ou mui tarde e dificilmente sairá.

 

Razões tiveram o meu amigo e o meu pai para partir, ou partirem desiludidos, eu idem, assim partirei, e vós ?

Ainda acreditais que este torrãozinho tem futuro ?

Deixai-me rir …..

Ou fugir para a ilha !!!!