segunda-feira, 17 de março de 2025

829 - FOI AUMENTADO ? E PAGARAM-LHE EM MOEDAS ? NOTA-SE ....

                        


Nesses tempos os animais falavam, havia carreiras de autocarros bem pensadas, eficientes, baratas e rápidas, pelo que era normal os ditos andarem sempre lotados em especial nos picos do verão e do inverno.

 

Uma curiosidade que hoje nos parece absurda, os autocarros desses recuados tempos tinham mais lugares em pé que sentados, sendo comum em dias de chuva, a história de hoje teve lugar num desses dias tenebrosos e as gentes iam acomodadas como sardinhas em lata.


Aperto daqui aperto dali, balanço aqui balanço acolá ou acoli, se eu já ia colado aos vidros traseiros do autocarro, um balanço maior, um apertão valente, uma lomba, uma cova maior e, entalado entre a janela e ela ficara praticamente espalmado.

 

O aperto não fora desagradável de todo, a senhora, de costas para mim, entre trinta a quarenta anos exalava um perfume etéreo, leve e muito agradável que ainda hoje recordo pois o sorvi toda a viagem inspirando-o às golfadas.



Aconchegava-a uma saia casaco de malha leve, conjunto tão harmonioso quão as formas que deixava perceber, dando sentido à sua agradável presença.

 

Consciente ou inconscientemente mas não ingenuamente eu desejava outra e outra lomba, outra cova ou outro tombo que de novo me proporcionasse o ensejo de voltar a sentir-lhe as formas harmoniosas e arredondadas que lhe eram próprias quando, de forma inesperada tal desiderato me surpreende pois ela, talvez buscando contrariar ou contrabalançar o movimento irregular e inesperado do veículo, atirando-a ora para a frente ora para trás ora para os lados. Em mim encontrara talvez a âncora que lhe proporcionasse segurança, não sei.



Sei sim que não se faz isto a um jovem em plena adolescência, não lembro bem a idade exacta que teia na altura nem lembro bem todo o episódio, tão marcante foi para mim, lembro sim ter-me apercebido que a coisa passara a propositada e que, se me era agradável também lho seria a ela pois dei por mim evocando mentalmente a velha anedota de quem teria visto aumentado o vencimento e sido o mesmo pago em numerário com um rolo de moedas…

 

Era inevitável que este tipo de pensamento tivesse acontecido pois se eu lhe sentia as formas de modo tão claro era evidente que ela desfrutaria da mesma sensação, o que fez com que jamais tivesse virado a face à esquerda ou à direita, pelo que apesar da intimidade que consciente, conspícua, deliberada e cumplicemente partilhávamos não me foi possível ver o seu rosto, saber quem seria, se tão ruborizada quanto eu. 



Em boa verdade nem sei a razão dessa minha curiosidade, eu estava intimidado quanto baste, sentia-me inibido, talvez mesmo envergonhado, enterrado ou soterrado em timidez mas, tanto quanto ela explorando maliciosamente a oportunidade surgida pelo que a viagem de vinte minutos, toda ela uma montanha russa em que sexualidade e erotismo nos cegaram, a ambos dever ter parecido nesse dia ter demorado horas ou apenas cinco minutos. 




Ainda hoje é contraditório na minha memória este tema do instante, do tempo, da demora ou da duração que a coisa teve ou levou a processar-se, a consumar-se. Assaltavam-me em simultâneo mil pensamentos, mil perguntas pra as quais não encontrava respostas, sei somente que, enquanto pensava uma sensação de clímax me tomou, tomando as rédeas de mim fazendo-me esquecer de sair na paragem habitual.

 

No problema, o fim da carreira / linha estava próximo e era meu desejo ver-lhe a face, saber quem era ela, de quem se tratava, por quê esta curiosidade nem eu sabia, mas queria satisfazê-la. Queria mas não consegui, a senhorita saiu de tropeção mal o autocarro abriu as portas tendo atalhado entre a multidão que ainda preenchia o espaço.



Não a vi, não a fiquei conhecendo, pelo que nunca a reconheci apesar das muitas viagens que repeti naquela carreira e horário, houvesse ou não motivo válido para a apanhar. Ruborizados ambos, de pudor á flor da pele, terminámos a nossa agradável e inconsequente aventura sem a troca de um sorriso, agradecimento ou cumprimento, sem sabermos se voltaríamos a ver-nos, e não voltámos. 




A vida tem por vezes episódios destes, curiosos, surpreendentes, irrepetíveis, tantas vezes inexplicáveis porém prenhes de um significado nebuloso que, apesar disso não se desvanecem e duram e perduram na memória toda uma vida. 




Quem seria ela ?

Felicidade, são os meus votos.