Nesses
tempos os animais falavam, havia carreiras de autocarros bem pensadas,
eficientes, baratas e rápidas, pelo que era normal os ditos andarem sempre
lotados em especial nos picos do verão e do inverno.
Uma
curiosidade que hoje nos parece absurda, os autocarros desses recuados tempos
tinham mais lugares em pé que sentados, sendo comum em dias de chuva, a
história de hoje teve lugar num desses dias tenebrosos e as gentes iam
acomodadas como sardinhas em lata.
Aperto
daqui aperto dali, balanço aqui balanço acolá ou acoli, se eu já ia colado aos
vidros traseiros do autocarro, um balanço maior, um apertão valente, uma lomba,
uma cova maior e, entalado entre a janela e ela ficara praticamente espalmado.
O aperto
não fora desagradável de todo, a senhora, de costas para mim, entre trinta a
quarenta anos exalava um perfume etéreo, leve e muito agradável que ainda hoje
recordo pois o sorvi toda a viagem inspirando-o às golfadas.
Aconchegava-a
uma saia casaco de malha leve, conjunto tão harmonioso quão as formas que
deixava perceber, dando sentido à sua agradável presença.
Consciente
ou inconscientemente mas não ingenuamente eu desejava outra e outra lomba,
outra cova ou outro tombo que de novo me proporcionasse o ensejo de voltar a
sentir-lhe as formas harmoniosas e arredondadas que lhe eram próprias quando,
de forma inesperada tal desiderato me surpreende pois ela, talvez buscando
contrariar ou contrabalançar o movimento irregular e inesperado do veículo,
atirando-a ora para a frente ora para trás ora para os lados. Em mim encontrara
talvez a âncora que lhe proporcionasse segurança, não sei.
Sei sim
que não se faz isto a um jovem em plena adolescência, não lembro bem a idade
exacta que teia na altura nem lembro bem todo o episódio, tão marcante foi para
mim, lembro sim ter-me apercebido que a coisa passara a propositada e que, se
me era agradável também lho seria a ela pois dei por mim evocando mentalmente a
velha anedota de quem teria visto aumentado o vencimento e sido o mesmo pago em
numerário com um rolo de moedas…
Era
inevitável que este tipo de pensamento tivesse acontecido pois se eu lhe sentia
as formas de modo tão claro era evidente que ela desfrutaria da mesma sensação,
o que fez com que jamais tivesse virado a face à esquerda ou à direita, pelo
que apesar da intimidade que consciente, conspícua, deliberada e cumplicemente
partilhávamos não me foi possível ver o seu rosto, saber quem seria, se tão
ruborizada quanto eu.
Em boa
verdade nem sei a razão dessa minha curiosidade, eu estava intimidado quanto
baste, sentia-me inibido, talvez mesmo envergonhado, enterrado ou soterrado em
timidez mas, tanto quanto ela explorando maliciosamente a oportunidade surgida
pelo que a viagem de vinte minutos, toda ela uma montanha russa em que
sexualidade e erotismo nos cegaram, a ambos dever ter parecido nesse dia ter
demorado horas ou apenas cinco minutos.
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Ainda hoje
é contraditório na minha memória este tema do instante, do tempo, da demora ou
da duração que a coisa teve ou levou a processar-se, a consumar-se.
Assaltavam-me em simultâneo mil pensamentos, mil perguntas pra as quais não
encontrava respostas, sei somente que, enquanto pensava uma sensação de clímax
me tomou, tomando as rédeas de mim fazendo-me esquecer de sair na paragem
habitual.
No
problema, o fim da carreira / linha estava próximo e era meu desejo ver-lhe a
face, saber quem era ela, de quem se tratava, por quê esta curiosidade nem eu
sabia, mas queria satisfazê-la. Queria mas não consegui, a senhorita saiu de
tropeção mal o autocarro abriu as portas tendo atalhado entre a multidão que
ainda preenchia o espaço.
Não a vi, não
a fiquei conhecendo, pelo que nunca a reconheci apesar das muitas viagens que
repeti naquela carreira e horário, houvesse ou não motivo válido para a
apanhar. Ruborizados ambos, de pudor á flor da pele, terminámos a nossa
agradável e inconsequente aventura sem a troca de um sorriso, agradecimento ou
cumprimento, sem sabermos se voltaríamos a ver-nos, e não voltámos.
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A vida tem
por vezes episódios destes, curiosos, surpreendentes, irrepetíveis, tantas
vezes inexplicáveis porém prenhes de um significado nebuloso que, apesar disso
não se desvanecem e duram e perduram na memória toda uma vida.
Quem seria
ela ?
Felicidade,
são os meus votos.