sábado, 16 de agosto de 2025

839 - HOJE SERIA MAIS UM DIA ESPECIAL ...

 


Hoje seria um dia especial, mais um entre tantos tão diferentes e tão iguais. Eu acordaria cedo, e calado iria em bicos dos pés, à sorrelfa, tirar a bandeja da despensa p’ra te levar o pequeno almoço à acama pois como dizia hoje seria um dia especial.

 

Farias anos e, como era habitual, a festa começaria ainda antes do acordar. Prolongar-se-ia até ao anoitecer. Lembro-me que algumas vezes, poucas, jantámos no Fialho, ao qual passámos a dar cada vez menos importância, importante eras só tu, e por ser um dia especial, era um dia fora do baralho e somente a alegria transbordante dos teus olhos vivos é digna de ser lembrada.

 

Era o teu dia, era um dia nosso, era um dia muito especial do nascer ao deitar, e era assim por assim o querermos. Era também um dia de balanço e não houve um único em que não tivéssemos saído a ganhar. Tu fazias de donzela, e eras bela acredita, eu de pajem, de cavalheiro, e ainda guardo no roupeiro uma cartola e um chapéu de coco, sim dois, apenas por tu adorares Churchill e os chapéus que ele usava. E a boina colorida que tanto nos alegrou e te permitiu nessa noite não te teres perdido de mim no mar de gente que, como nós, acudira ao concerto e ao fogo de artificio ? Calhou estarmos em Barcelona nesse dia e, inda que já nem recorde qual o aniversário festejado, o dia jamais o esqueci e ainda guardo essa boina com o amor dum escoteiro.


Depois as coisas começaram a correr menos bem e abandonámos as loucuras, era tempo de dedicação e tu não só exigias como merecias toda a minha atenção.

 

Hoje fui ao jardim de manhã, como fôramos em tantas manhãs, já não existe a banca onde na praça tomávamos a bica antes do passeio em redor dos cisnes, nem a banca nem a senhora, apenas na minha imaginação ela, tu, nós, o jardim, os patinhos, os cisnes, os pombos, e esta saudade que mata.

 

Passeio-me pela casa, ora de cartola ora de chapéu de coco, ajusto na estante da sala algum livro cuja lombada esteja mais saída ou uma foto que não esteja direita, repito o que tu farias e tantas vezes fizeste na minha frente, adivinhava-te os passos, as maneiras, os trejeitos, agora repito-os num ritual inútil pois o que foi foi, e não voltará a ser, a mesma água não passa por baixo das pontes duas vezes, resta-me este caudal de lembranças, resta-me viver sozinho este 16 de Agosto como vivi a meia dúzia deles que o antecederam. Continuo sozinho, ninguém se aventura a ocupar o teu lugar, deixaste a fasquia tão alta que não há quem se atreva, nem sequer tente superá-la. A verdade é que subiras aos céus com o vagar duma chama que lentamente se extingue e eu senti que Deus te chamara para te poupar sofrimentos desnecessários, foi assim que vi então essa dolorosa partida. Fi-lo com imensa dor, nunca eu conhecera dor tão lancinante e não estava preparado, para fazer o luto, demorei imenso a ultrapassar esse choque, a dor da tua partida.

Tiveste tempo para deixar entre todos nós e especialmente em mim a tua marca, nunca conheci dor tão lancinante, nunca até te ter perdido me apercebera quão importante para mim era a tua presença. Certamente terá chegado para ti o tempo e a hora de nova viagem e somente muito tarde eu me tenha apercebido disso, olhando enquanto caminho numa desolada tarde como aquela em que partiste, diminuindo a passada, apurando a atenção, parecendo ouvir o sussurro do vento trazendo-me a tua voz, desculpa Berto, estava na hora de partir para outra, sinto o apelo do meu signo, a coragem do Leão, outros mistérios me esperam.

 

É por entre os espinhos do silêncio que caminho, lembrando-te, concentrado nas memórias de ti qual porto de abrigo e nas quais me refugio, habituado a que aí encontrasse a abundância pois sempre colhera do que semearas, sempre fora bafejado p’la felicidade enquanto viveste e agora o silêncio, somente o silêncio e estas constantes lembranças de ti.

 

Nunca deixo de pensar quão frutuosa foi a tua vida, cumpriste o teu papel, saíste de cena no silêncio outonal com o dever cumprido, apesar de tudo obrigado meu amor. No céu és agora mais uma estrela, por isso te recordarei em cada aniversário, nem só neles, mas em cada dia que passa te recordo com carinho, a ti que sempre recusaste a tristeza, a rendição, a renúncia, o declínio, a resignação. Jamais te esquecerei meu amor, recordarei sempre aquele dia em que foste incensada e me foi concedido o privilégio de ver-te subir aos céus.

 


Algo renascerá das cinzas, tenhamos esperança, após a tempestade sempre sempre sobreveio a bonança, a esperança, a última a morrer, é dar-lhe tempo e a esperança virá, a esperança e o amor voltarão a abrir, a florir a esperança tem mel e quando vier virá p’ra ficar por isso a cama vou mandar alargar, prantar dourados, construir um dossel para acolher a esperança porque ela é mel.

 

Recordar-te-ei sempre com amor, ternura, carinho, doçura, adeus meu amor de sempre, adeus meu amor eterno.

               Adeus meu amor de sempre, adeus meu amor eterno.