Agora
nada. Agora de novo uma simples parede alta que fora alva como quase todas na
cidade mas não então, então, nesse dia radioso uma trupe afadigava-se desenhando
nela e pintando-a, uns por baixo outros por cima, uns de lado outros pendurados
ou encavalitados em escadas e escadotes, crianças na relva aos pinotes, e o
paredão volvendo tela, pintura, picture, celebração, recordação.
Recordo
bem esse domingo do verão quente de 75, esse feliz 6 de Julho, recordo bem o
dia e o lugar, lembro menos mal a azáfama sem igual, um cravo, uma ceifeira,
gentes, soldados, uma visão, crentes, alarido, festa, liberdade, e tu ponderando
a avaliação, olhando-me, mirando-me de cima abaixo, sopesando-me e sorrindo irónica
ou matreira, de qualquer maneira ponderando, avaliando, não o mural mas a mim
mesmo, a mim e à minha atitude, firmemente tomada e tornada perante ti questão
moral.
Aqui se fez história |
Apaixonarmo-nos
é quedarmo-nos, submetermo-nos, sujeitarmo-nos esperançados a uma qualquer ponderação, a quaisquer criteriosas avaliações, cedermos, arriscarmos, e eu esperando expectante, temente, duvidando no momento do
julgamento da tua habitual razoabilidade, medroso de que esse teu racionalismo
me julgasse mal, receoso que, o que tanto em ti gabava me ditasse uma má sorte
sem igual.
Enervado olhava e comentava o mural, o porte das gentes exortadas, o garbo da ação
concertada que os gentios procuravam eternizar, tornar imortal pintando-a na
pedra como havia feito o homem das cavernas, homem que eu me sentia julgando as
pernas tremer, buscando um lugar onde sentar- me, onde nos sentarmos, contudo não o lobrigando.
Hoje
e muitos outros dias precisei e precisarei sentar-me perto de ti recordando-te
e não soube nem saberei onde nem como, talvez asneira essa tua ideia da doação
do corpo à ciência, não há uma campa onde me dirigir, que limpar e florir, não
há uma urna com cinzas para adorar e ante a qual ajoelhar, somente uma lembrança
tua, uma memória tua, uma recordação tua. Mas quem ousava contrariar-te ?
De mãos dadas passámos aquele arco |
Por
isso eu aqui, percorrendo à mesma hora o mesmo caminho que trilhámos de mãos dadas
tanto nos momentos felizes como nos mais cruciantes das nossas vidas, ou
deverei dizer da nossa vida visto ter sido ali que oficialmente essa vida
começou ? Ou não foi ali que tu oficialmente me aprovaste ? Deambulo por aqui
muitas vezes, desço do jardim Diana onde sempre nos demorámos e percorro a passo
lento este percurso até a Igreja do Espírito Santo, dela guino para as Portas
de Moura, Jardim do Bacalhau e última paragem antes que na noite soassem as
doze badaladas, antes disso estarias no Farrobo, na Travessa da Viola e em casa
da avó Joaquina, sem perder o tino nem o sapatinho, sem coches de abóbora e sem
que se visse um único ratinho.
O muro agora tornando ao antes da festa |
Naquele
dia, no dia do julgamento o passeio foi a horas vivas e vivaças, estando as
gentes pintando o mural naquele muro, naquele enorme paredão. Viçosas em seu
redor as flores, a relva, e tu cuja vida prometia alegria e a companhia
felicidade eterna.
Recordar-te
enquanto marcho é o que me resta para preencher o vazio em que me deixaste. A
horas certas tenho percorrido sozinho em passo lento os mesmos caminhos por nós
tantas vezes palmilhados. Por vezes Nau, pironilha, Gabriel Pereira, Bombeiros,
pironilha, Nau, outras vezes vice-versa, para lá e para cá, em amena conversa
comigo mesmo e tu, sempre presente, tanto mais presente quão te sinto ausente,
ausente em parte incerta sendo isso que me atormenta e desconcerta.
Ainda visíveis restos do mural de antanho |
E
enquanto as gentes pintavam de cores garridas o muro, o mural, tu julgavas-me e
eu temia me julgasses mal. Afinal durámos mais que o muro, digo mais que o mural,
cuja longa vida cedo se extinguiu e hoje de novo uma velha e esquecida parede,
talvez até novo acontecimento a convocar e dela faça de novo tela, ou um outro
casal de namorados debaixo dela passe e se contemple, se julgue e se prometa
como nós prometemos;
- Até
que a morte nos separe.
e separou, abalaste, e eu
para aqui estou gerindo o vazio que me deixaste, chorando-te mais que lembrando-te,
sentindo por ti mais desejo que saudade.
Acompanhar-te
todos estes anos não foi consolo amor, foi dádiva dos céus que os céus
traindo-me cedo me roubaram. Deambular é sina minha. Não consigo, não voltei a
encontrar o meu lugar querida, o mundo parece-me outro sem ti e todos os
lugares me surgem novos, desconhecidos, assustadores.
São
temores amor, são só temores, são só horrores, pesadelos, dias, noites, uma
tristeza sem fim.
Enquanto gentes pintavam um garrido mural, tu julgavas-me... |