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quarta-feira, 17 de abril de 2019

599 - GANDA FESTA PÁ ! By Maria Luísa Baião * ...

Nós dois estivemos lá


Quando Abril chegou foi uma festa pá ! Na inocência dos meus dezassete anos não tinha precisamente consciência do que se festejava, mas como todo mundo estava em festa, como poderia eu ficar de parte ? E ainda por cima foi dia sem aulas ! Vocês imaginam a festa ?!

Sabia-se que no 16 de Março passado um bando de arruaceiros subversivos tinham feito uma tentativa de avanço sobre Lisboa no sentido de pôr em causa o governo “legitimo” da Nação, numa atitude clara de desestabilização da paz ordeira de que todo o povo comungava, tentativa aliás rapidamente controlada pelas forças da ordem.

Penso ter sido precisamente esse ênfase nas “forças da ordem” que veio colocar em desordem ou em desassossego o meu espírito. A confusão instalou-se em mim e então, como agora, enquanto não vejo as coisas deslindadas e claramente límpidas, não paro de questionar tudo e todos.

Desde quando os soldados foram considerados bando de arruaceiros subversivos ? Logo aí começaram as minhas dúvidas metódicas e depois achei imensa graça a uma palavra nova para mim, “subversivos”, motivo pelo qual de imediato simpatizei com eles.

Ninguém respeitou o recolher obrigatório em 25 de Abril, abandonámos alegremente as chatas aulas de lavoures dessa manhã e concentrámo-nos na escola em alarido, algumas de nós não percebendo de todo o que se passava. O simples facto de se ter transgredido a “ordem estabelecida” era motivo de regozijo para todas (os), mais a mais professoras e professores andavam numa roda-viva, até que nos concentrámos em volta de um rádio que alma anónima colocou alto e bom som no Polivalente da Gabriel Pereira.

Exemplo de campanha de alfabetização política

Vibrei, vibrámos pela primeira vez em uníssono ao som de Zeca Afonso. Alguém contou que a fanfarra percorria as ruas da cidade e todas ao molhe abandonámos a escola e procurámos a “festa”, mas não a encontrámos. E não a encontrámos porque a “festa” não tinha um lugar, a festa era em toda a parte e comungada por todos, a festa era a cidade inteira e quando pudemos ver as primeiras imagens da TV constatámos que a festa não era nossa, era de Portugal inteiro, c’a ganda festa pá ! E aprendi mais nesses dias que em tantos anos de vida ! Palavras novas como democracia, liberdade, igualdade, fraternidade e solidariedade. Vi lágrimas de emoção nos olhos das gentes e também eu cantei, gritei e chorei, pá ! De alegria pá ! Era a nossa festa pá !

E nos dias seguintes a festa continuou, chegou o Mário Soares, o Cunhal, Sérgio Godinho e George Moustaki, que estavam longe, para ajudarem à festa, todos cantaram “Avril au Portugal” e os cravos floriram na ponta das espingardas enquanto soldados deixavam de morrer longe na defesa do Portugal uno e pluricontinental que de um momento para o outro descobriu que não estava “orgulhosamente só”.

Fiquei rouca de tanta festa, sedenta de palavras, de significados novos, e não mais pararia a minha curiosidade, fiquei a saber ter direitos que até aí alguém guardara de mim, descobri ser gente e a minha opinião contava. Percebi que o certo estava errado e vice-versa, que Nixon e os americanos não eram os Anjos do Vietname, nem Israel o Santo do Médio Oriente. Conheci a opressão precisamente quando ma tiraram de cima, mas tomei consciência do modo e da forma como ela teimava em perseguir outros noutros cantos do mundo, no momento em que o sol começou a sorrir para todas nós.

E a imprensa! Que mudança ! Passou a dar gosto lê-la, posso dizer que foi aí que me viciei na leitura de jornais e revistas. Casei-me no ano seguinte ao da Revolução de Abril, claro que com o meu namorado, mentor e tutor para a área politica, casei-me portanto com o país ainda em festa, fiz do casamento uma partilha que já dura há vinte e seis anos e está longe de completada.

E como as interrogações não paravam de me assaltar e as dúvidas metódicas eram muitas, fui gradualmente resolvendo uma de cada vez, aplaquei a sede de saber procurando as respostas, estudando. Hoje assaltam-me outras, dizendo respeito a todas (os) nós e que em conjunto procuro resolver no seio desta sociedade democrática em que nos movemos e em que todos temos devemos contar com todos. Estou mais velha, a festa já me vai custando em certos aspectos, será por estarmos cansadas (os) que tudo se move agora tão devagar ?

Para mim continua, hoje e todos os dias enquanto Abril sorrir, serão para mim sempre dias de festa ! 
Nós dois estivemos na festa
* By Maria Luísa Baião, escrito terça-feira, ‎24‎ de ‎Abril‎ de ‎2001, ‏‎14:45h e publicado no DIÁRIO SUL, coluna KOTA DE MULHER nos dias seguintes.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

273 - O FADO DE DEODATA ....................................

                                

               Ela não imagina, mas quis a sorte, a sina, o destino ou o fado que Deodata tivesse nascido numa família numerosa, ainda que não houvesse necessidade de dividir uma sardinha por todos, nunca deixou de existir uma absurda competição pelos mimos prodigalizados numa parentela cujo existir lutava por uma sobrevivência digna. Era uma casa portuguesa com certeza, gente trabalhadora, amante do caldo verde e dos cortinados de chita às florzinhas. Muito provavelmente de um gato ou um cão, que comporiam ainda o quadro em cujo cenário seria desenhado igualmente um equino, preferencialmente em pose garbosa e de crina farta.

Naquela casa a felicidade nunca fora tanta que pudessem andar aos pontapés a ela, é certo que também não eram de temer nuvens negras no horizonte, mas comedimento e parcimónia, como a presunção e a água benta,  seriam os pratos do dia, e Deodata bem o sabia.

Neste ambiente familiar eram disputados quer os miminhos quer o colinho dos pais, já que um deles não seria muito atreito a manifestar exteriormente as suas emoções e afeições, facto que só avivava a disputa pelas graças disponíveis. Sorrateiramente a competição por elas entrava nas suas vidas e esses momentos Deodata passava-os atenta, para não perder a oportunidade e, se calhava uma irmã mais afoita ultrapassá-la no mister não se perdoava e ressentia-se, como se fosse traída, já que o fora nos seus propósitos.

Sem que o pressentisse esta disputa sub-reptícia instalar-se-ia insidiosa no mais fundo do seu ser. Detestava ser ultrapassada, abominava ver escapar-se-lhe por entre os dedos tudo que quer que augurasse e, secretamente alimentava animosidades que se faziam velhas contra quem lhe alterasse o rumo ao destino que traçara. Não gostava de perder nem a feijões. Deodata passou assim a ser senhora de si e de um cada vez mais perceptível e indisfarçável rancor, o qual crescia na razão directa da insegurança que passou a sentir, ou sentia, em cada situação vivida.  

Era um rancor amedrontado, ou antes um medo rancoroso, que tomou conta dela antes de ter conseguido determinar a vontade e o domínio de si mesma, medo e rancor que aos poucos fizeram dela, mulher linda e madura, uma pessoa temente e insegura, e de tal modo que, antes de pressentir o medo ela afivelava uma resposta automática cuja rigidez e dureza de conduta se encarregariam de, por ou para uma sua e muito antecipada protecção, colocar a milhas os mais afoitos, simpáticos, amáveis ou sorridentes que se atrevessem a chegar-lhe ao pé. Interrogo-me por vezes se Deodata terá inexplicavelmente sido muito amada, e posteriormente abandonada, trocada, resumindo, traída.

Primeiro com as irmãs. Instalou-se entre ela e elas a figura de Electra, anos mais tarde entre ela e os namorados que iam aparecendo foi a vez de Édipo. Seriam estes complexos que, ao invés de Cupido, ditariam a sorte das suas relações e o confinamento dos seus padrões, o chamar sobre ela as atenções, o fechar sobre si as soluções, e, a exemplo de Salazar, passar a professar religiosamente o mesmo “orgulhosamente só” que se em política dificilmente se compreenderia, agora constituía uma aberração incontornável que surpreendentemente parecia fazê-la feliz.

Poderia se junto dos especialistas insistisse, descobrir ou talvez ver diagnosticada uma psicose aguda ou profunda, somática, e ainda que o não entendesse era o sentir, seria a causa/efeito, explicaria ao menos aquele rancor assumido e colocado em prática que a alimentava e mantinha viva.

Essa psicopatia tornara-se parte de si própria, tornara-se um suplicio redentor e nem saberia dizer quando essa aversão se transmutara de amedrontada e medrosa em avassaladora, em imperiosa, em droga e doping que a mantinham viva e lhe satisfaziam ou amoleciam como um silício os desejos do corpo que, desse modo eram sublimados, amortecidos, e por sua vez reciclados em novas e renovadas investidas contra quem ousasse acercar-se de si, tornar-se mais próximo, quiçá mais intimo.

Resplandeciam, reverberavam nela as nervuras do ser e as veias do viver a cada recusa disparada com desdém, como se Deodata a cuspisse na face de outrém e fosse o alfa e o ómega dos seus dias agora, e não a compreensão ou aceitação do outro, mas a sua repulsão, o seu afastamento, como se nesse gesto pudesse estar contida toda a raiva de quando mimos e colo lhe não foram proporcionados, ou oferecidos, ou como se purificasse na fogueira todo o atrevido que num momento de paixão ou euforia lhe tivesse oferecido o coração.

Deodata ficou pra tia.

Será caso para dizer que nem por isso enxergava a estrada monótona e de uma só via em que se transformara a sua vida, uma estrada sem fim, sem árvores, poeirenta, seca, bafienta. Nem via nem ouvia quem se atrevesse a gritar-lhe a verdade, descobrir-lhe a verdade ou desmontar-lhe o artifício insidioso da falsidade erigida à monumentalidade ofuscante mas perigosa do escorpião a quem, todos o sabem, o frémito da morte corre nas veias, na natureza do sangue, na essência do ser, na genética.

Por isso lhe correm monocórdicos os dias, sem sobressaltos que autorizem o menor facto a descortinar-lhe horizontes diferentes, reclusa e vitima da sua couraça artificialmente impenetrável mas que, incapaz de despir, lhe atormenta as noites com o peso da insónia, soando como gota de água em torneira mal cerrada, cujo pingar se avoluma do leve toque de um sininho ao ribombar de um gongo roubando-lhe a paz, o sossego, o descanso, o sonhar, o esperançar, o devir.

Desejar-lhe-ei, um dia que calhe rezar na sua campa que descanse em paz. Mudar-lhe-ei as flores, a água bafienta das jarras, e semearei na sua campa rasa flores novas, rosas, cravos, crisântemos, gerânios, dálias, malmequeres, e verdura q.b.

Não esquecerei uma pequena lápide;

“Aqui jaz quem a teimosia guardou e o orgulho hasteou”.

Paz á sua alma.

R. I. P.