Nós dois estivemos lá |
Quando Abril chegou
foi uma festa pá ! Na inocência dos meus dezassete anos não tinha precisamente
consciência do que se festejava, mas como todo mundo estava em festa, como
poderia eu ficar de parte ? E ainda por cima foi dia sem aulas ! Vocês
imaginam a festa ?!
Sabia-se que no 16 de
Março passado um bando de arruaceiros subversivos tinham feito uma tentativa de
avanço sobre Lisboa no sentido de pôr em causa o governo “legitimo” da Nação,
numa atitude clara de desestabilização da paz ordeira de que todo o povo
comungava, tentativa aliás rapidamente controlada pelas forças da ordem.
Penso ter sido
precisamente esse ênfase nas “forças da ordem” que veio colocar em desordem ou
em desassossego o meu espírito. A confusão instalou-se em mim e então, como
agora, enquanto não vejo as coisas deslindadas e claramente límpidas, não paro
de questionar tudo e todos.
Desde quando os soldados
foram considerados bando de arruaceiros
subversivos ? Logo aí começaram as minhas dúvidas metódicas e depois achei
imensa graça a uma palavra nova para mim, “subversivos”,
motivo pelo qual de imediato simpatizei com eles.
Ninguém respeitou o
recolher obrigatório em 25 de Abril, abandonámos alegremente as chatas aulas de
lavoures dessa manhã e concentrámo-nos na escola em alarido, algumas de nós não
percebendo de todo o que se passava. O simples facto de se ter transgredido a “ordem estabelecida” era motivo de
regozijo para todas (os), mais a mais professoras e professores andavam numa roda-viva,
até que nos concentrámos em volta de um rádio que alma anónima colocou alto e
bom som no Polivalente da Gabriel Pereira.
Exemplo de campanha de alfabetização política |
Vibrei, vibrámos pela
primeira vez em uníssono ao som de Zeca Afonso. Alguém contou que a fanfarra
percorria as ruas da cidade e todas ao molhe abandonámos a escola e procurámos
a “festa”, mas não a encontrámos. E não a encontrámos porque a “festa” não
tinha um lugar, a festa era em toda a parte e comungada por todos, a festa era
a cidade inteira e quando pudemos ver as primeiras imagens da TV constatámos
que a festa não era nossa, era de Portugal inteiro, c’a ganda festa pá ! E
aprendi mais nesses dias que em tantos anos de vida ! Palavras novas como
democracia, liberdade, igualdade, fraternidade e solidariedade. Vi lágrimas de
emoção nos olhos das gentes e também eu cantei, gritei e chorei, pá ! De alegria
pá ! Era a nossa festa pá !
E nos dias seguintes
a festa continuou, chegou o Mário Soares, o Cunhal, Sérgio Godinho e George
Moustaki, que estavam longe, para ajudarem à festa, todos cantaram “Avril au
Portugal” e os cravos floriram na ponta das espingardas enquanto soldados
deixavam de morrer longe na defesa do Portugal uno e pluricontinental que de um
momento para o outro descobriu que não estava “orgulhosamente só”.
Fiquei rouca de tanta
festa, sedenta de palavras, de significados novos, e não mais pararia a minha
curiosidade, fiquei a saber ter direitos que até aí alguém guardara de mim,
descobri ser gente e a minha opinião contava. Percebi que o certo estava errado
e vice-versa, que Nixon e os americanos não eram os Anjos do Vietname, nem
Israel o Santo do Médio Oriente. Conheci a opressão precisamente quando ma
tiraram de cima, mas tomei consciência do modo e da forma como ela teimava em
perseguir outros noutros cantos do mundo, no momento em que o sol começou a
sorrir para todas nós.
E a imprensa! Que
mudança ! Passou a dar gosto lê-la, posso dizer que foi aí que me viciei na
leitura de jornais e revistas. Casei-me no ano seguinte ao da Revolução de
Abril, claro que com o meu namorado, mentor e tutor para a área politica,
casei-me portanto com o país ainda em festa, fiz do casamento uma partilha que
já dura há vinte e seis anos e está longe de completada.
E como as
interrogações não paravam de me assaltar e as dúvidas metódicas eram muitas,
fui gradualmente resolvendo uma de cada vez, aplaquei a sede de saber procurando
as respostas, estudando. Hoje assaltam-me outras, dizendo respeito a todas (os)
nós e que em conjunto procuro resolver no seio desta sociedade democrática em
que nos movemos e em que todos temos devemos contar com todos. Estou mais
velha, a festa já me vai custando em certos aspectos, será por estarmos
cansadas (os) que tudo se move agora tão devagar ?
Para mim continua,
hoje e todos os dias enquanto Abril sorrir, serão para mim sempre dias de festa
!
Nós dois estivemos na festa |