quinta-feira, 2 de maio de 2013

143 - O DÉFICE NÃO É NOSSO... by Luísa Baião* ...



Há amizades que há anos partilho com gosto, algumas das quais com quem passo mesmo fins-de-semana ou noitadas. Muitas delas nem darão por irem comigo para a cama, a última foi o meu amigo Filipe Luís.

Mas nem só com ele tenho desfrutado os meus pensamentos, Nicolau Santos, Victor Ramalho, Fernando Madrinha, Pedro Norton, Daniel Amaral, Daniel Oliveira, J. P. Coutinho, Jorge Fiel, António Barreto, Vasco Pulido Valente, Boaventura Sousa Santos, José Gil, Adriano Moreira, Mário Soares, Freitas do Amaral, Helena Roseta, Clara Pinto Correia e outras e outros tantos, (o Barroso abdicou, não o nosso mas o cunhado do Marofas) que à vez ou ao molho fazem parte de verdadeiras orgias mentais a que por vezes me dedico.
  
Claro que nem sabem que com eles durmo, mas que se saiba ao menos que não me tiram o sono, se não durmo é porque não quero, nunca porque me não deixem, pois é nessas horas de sossego para o corpo que entra em ebulição a mente, resolvendo os problemas que o simples facto de vivermos nos coloca.
  
Normalmente, porque a vida já me deu o que tinha a dar, e porque o filho está criado, não havendo ainda netos, são preocupações de índole social que me acodem não tendo a ver unicamente com a minha costela de autarca mas com todo o esqueleto da cidadã que sou, esqueleto ao qual, a julgar pelo caminho pisado, dentro em breve me verei reduzida.
  
Pois o meu amigo Filipe Luís teve o descaramento de afirmar, preto no branco, que o défice não é um problema do governo mas um problema nosso. Acredito que o défice seja de carne e osso como ele diz, mais de osso que de carne enfim, mas de carne e osso, tá bem, agora que seja um problema nosso, aí pára o baile.
  
Nosso na medida em que seremos nós a sofrê-lo, a pagá-lo, o que até nem deverá custar muito pois, que me lembre, há pelo menos trinta anos que ouço a mesma música, que pago défices, que pago o desgoverno dos outros.
  
Que ao menos fique bem claro, o défice é um problema nosso que os nossos queridos capatazes nos têm gentilmente vindo a atirar para o regaço ao longo de todos estes anos, que deveriam ter sido de esperança mas que afinal têm, isso sim, sido um encargo cada vez mais pesado. A nós não nos restará outra coisa que fazer o mesmo que sempre fizemos, pagar.
  
Mas o meu amigo Filipe Luís que me deixe chamar-lhes maus gestores, aldrabões, incompetentes, desonestos, fingidos, oportunistas, fascistas, floristas, istas istos e istas aquilo, pois coisa que nunca estiveram interessados em fazer, coisa tão simples como administrar o próprio quintal, já eu sei há muito tempo, nunca foram capazes.

 O que sempre foi feito, foi-o uma vez mais, agora de forma mais acutilante, todavia exemplificativa de quanto nos sobra em imaginação. Se já ninguém, ou poucos, pareciam ter gosto em trabalhar, empreender ou investir em Portugal, penso que de forma determinante, acredito que desta é que arrumámos esses líricos idealistas de vez.
  
Parece, e todos os analistas são unânimes, que desta é que se fez ou fará o que havia a fazer, porque a coisa nos vai pesar nos ombros durante muito tempo, como se tal não tivesse pesado sempre, ou sido feito sempre.

Cinicamente ainda há quem tema que este povo caia no desânimo ou na depressão, como se (eu incluída) não vivêssemos num psicodrama de longa duração e numa recessão mais velha ainda. Que o estado gasta, há muito, mais que o que devia, todas sabemos, que sempre gastou o que era nosso e não devia, sempre o soubemos, que vai gastar o pouco ou muito que tivermos, não o sabíamos, ficámos a sabê-lo agora.

Mas como confio no governo e em quem nos governa, passada a tempestade virá a bonança, pelo que ficarei à espera das medidas que finalmente permitam aos portugueses trabalhar, fazer coisas, singrar, medrar, inovar, evoluir, desenvolverem-se, enriquecerem, cultivarem-se, modernizarem-se, coisas que matem esta burocracia asfixiante, esta administração pública inoperante, já que as medidas por enquanto tomadas, atendendo ao cenário vivido, só poderão fazer com que parem por completo, de vez.





* publicado por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião em 30-5-2005, In Diário do Sul, Kota De Mulher, Évora.

terça-feira, 30 de abril de 2013

142 - Ó ABREU ABRE O CU QUE LÁ VOU EU !!...



 Após doença prolongada vim a saber. E realmente há uns meses que a sua pagina não dava sinal. Nem ele, a quem não via há um par de anos. Era bom tipo, a terra lhe seja leve. Tinha sido um bom amigo, daqueles desde a infância. Depois do caso dos cheques saiu daqui. Só nas férias o via. Bebíamos umas imperiais e dávamos dois dedos de conversa em que se colocava a escrita em dia e dizíamos mal de toda a gente menos de nós claro.

A vida fora-lhe um tormento. Não só desde o liceu. Primeiro por causa do nome e de todos o gozarem. Fechou-se. Tornou-se introvertido. Depois porque por um azar daqueles que só a divina ordem do caos explica se apaixonou pela mais extrovertida mulher que alguma vez vi ou conheci, a Dolores, mais conhecida, ainda hoje ela mesma o está sempre a lembrar, pela cabra de S. Mamede.

S. Mamede é uma pequena freguesia da cidade, toda a zona da ancestral mouraria, zona habitada especialmente por velhos e conservadores. A família dela era mestra nisso, e o pai, um conhecido e reconhecido professor primário, à antiga. Só Deus pode ter juntado duas almas tão díspares. O calado e introvertido Abreu (abre o cu que lá vou eu), hospedeiro de um parasitante complexo do tamanho da sé, e a Dolores, loira espampanante, extrovertida assumida e exagerada, cabeleireira, dada a exageros e a esturrar mesadas.

Conheceram-se no liceu, ele deve ter visto nela o contraponto a si mesmo, de quem não gostava. Sim o Abreu nunca escondera que não gostava dele mesmo. Era avesso a convívios, a novos conhecimentos e a amizades muito profundas (eu devia ser uma excepção). Dolores devia ter visto nele o lado que lhe faltava, ela que lhe era o reverso e já namorara todo o liceu, a escola de S. Gabriel e a dos padres. Não minto. Tanto assim era que quando o Abreu a pediu em casamento teve que ir ao beija-mão ou ter-lhe-iam rogado uma praga, os pais dela eram conservadores impenitentes, religiosos em primeiro grau, e antes mesmo de o Abreu ter acabado de formular o pedido já estava a ouvir da boca do velho um Deus vos abençoe meu filho, enquanto lhe passava o braço pelos ombros e o apertava contra si.

Dolores saiu de casa e a saúde do pai melhorou a olhos vistos, tendo ele vivido para conhecer a neta (foi minha aluna, parecia-se com a mãe, tinha o ar introvertido e macambúzio do pai, mas era muito inteligente e veio a tirar farmácia) e a ir à festa da sua formatura, isto quando toda a gente esperava que o velhote se finasse a qualquer minuto.

Coitado do Abreu. Fechou-se-lhe o cu. Era bom tipo. A próxima cerveja será bebida à sua lembrança. Isolava-se, mas fez carreira. Depois do liceu foi o único de nós que nada fez pela vida, mas esta sorriu-lhe. Até aos dezoito (e ao 25 de Abril) era ou fazia parte das milícias, um entretêm militar para jovens de que muitos faziam parte, uma espécie de mocidade portuguesa para crescidos. Com o 25 de Abril e a entrada na tropa foi-se arrastando e ficando. Afinal aquilo era o mesmo que a milícia, manobrar armas, conhecer armas, apresentar armas, tácticas e estratégias militares, infantaria e cavalaria, só que agora tinha um ordenado ao fim do mês.

A Dolores montou um salão de cabeleireira onde se cortavam mais casacas que cabelos e onde aprendeu a ter gostos caros. Esturrava cheques e jamais cuidou de saber se tinham cobertura ou não. Um dia o pai do Abreu, que lhos pagava, morreu, e os credores ficaram-lhe com o salão, a casa, o carro, mas deixaram-lhe a caderneta de cheques. Dolores refez a vida num ápice, e a crédito, que é como quem diz, a cheques, só que desta vez em Tomar, depois Castelo Branco, Viseu, Guarda, até que finalmente os bancos lhe recusaram novas cadernetas e a vida do Abreu, que pulava de quartel em quartel e só não conhecia as bases da marinha porque a Dolores detestava praia e areia, estabilizou.

Abreu mantinha uma página na net onde de três em três meses postava uma bosta, tinha os contactos e os mantinha com os amigos que, vim a saber, da cidade era eu e poucos mais, pois da juventude e de Évora eu era mesmo quase único. Vinha cá pelo S. João, raro sendo o verão em que não bebíamos umas imperiais e comíamos uma sardinhada a acompanhar, detestava os pimentões que eu adorava, tratava-me por Berto que era como eu era tratado desde a infância que repartíramos, e, o ano passado não aparecera e estranhara-lhe a ausência.

A nossa amizade, forjada desde a infância, nos bancos da escola, no liceu e um ano na Guiné, em Contabani, não era exemplar mas era sólida, eu era o único que não namorara a Dolores e dos poucos com quem ele se abria, bastaria que bebêssemos umas cervejas. Este S. João se falássemos de um amigo falecido tenho a certeza que diria já se lhe fechou o cu de vez coitado.

Nunca fez nada na vida e mesmo assim ou precisamente por isso finou-se como primeiro-sargento, bem condecorado e melhor medalhado.

Disseram-me que o funeral teve honras militares.

Coitado do Abreu. Fechou-se-lhe o cu de vez. Era bom tipo. A próxima cerveja será bebida à sua alma.


...

quinta-feira, 25 de abril de 2013

A MAIS VELHA ......................................


Vivo a correr, todas vós saberão porquê, vivo a prazo, segundo dizem com um machado pendente sobre mim, embora eu seja a primeira a não crer em tal.

Dei por mim, há algum tempo, atendendo com extrema solicitude a minha última doente externa, tão só porque apesar da sua avançada idade me confidenciava que nunca, nunca na vida estivera doente. Sabido é que em casos destes a doença se reveste de atenuantes ou agravantes que a psicologia saberá explicar muito bem, por experiência todas entenderão que para quem nunca padeceu do que quer que fosse, qualquer mazela assustará sobremaneira, especialmente se tidos em consideração os quase setenta anos e muita rijeza perante os quais me encontrava.

Entre mim e essa velhinha, após a solicitude exagerada com que a abordei depois dos primeiros tratamentos, criou-se uma intimidade inusual. Talvez por lhe ter dito que aquilo não era o fim do mundo, talvez pela sua imagem de velhinha, rija e sabida, sempre com a resposta na ponta da língua, talvez um pouco de tudo isso, a verdade é que nos aproximámos uma da outra. A páginas tantas, confessei-lhe que, mau grado a minha perspicácia em adivinhar a profissão da cada doente pelas sequelas e deformações profissionais a que uma longa vida de trabalho sempre conduz, com ela não o conseguira fazer, e que isso era importante e ajudaria na recuperação.

- Puta minha filha, fui puta.

E tão pronta me atirou a resposta que me deixou encavacada, sem fala, e momentaneamente incapaz de reagir.

– Então não se vê logo pelo que este corpinho passou ? Fui o céu para muitos minha querida, uma dor de cabeça para outros, mas jamais o inferno para quem quer que fosse.

E vendo-me incapaz de a abordar com o à vontade com que o vinha fazendo, falou sozinha, e quase acerto se afirmar que não o fez para mim, mas para muita gente que ao longo da sua vida a não quis escutar.

- Já passei por tudo, já me aconteceu de tudo, desde os tempos em que me obrigavam a ter casa aberta, até àqueles em que numa casa fechada tudo se fazia ás claras…

– Os homens minha filha, acredite-me, são do mais hipócrita e ingrato que aturei na vida.

– É casada minha querida ?

– Sim, respondi, e com um bom homem, vai para muitos anos, respondi.

– Não seja ingénua minha menina, não se importa que lhe chame menina pois não ?

– Claro que não, pois se tem idade para ser minha avó !

– Pois a menina não seja ingénua, não há homens bons, todos se julgam na razão, que sabem tudo, mandam em tudo, são todos iguais, e o seu, que Deus me perdoe, ou é artola ou também já as fez ! Ou está para fazer !

– Não creio, respondi, a senhora deve ter passado muito, e estar deveras magoada com o mundo, o meu marido não é do género.

– Magoada eu ? Não tenho razão de queixa, é certo que os mesmos homens que muito me deram muito me tiraram, os que me deixaram abrir portas foram os mesmos que as fecharam, é a roda da vida… Mas magoada não estou, nunca esperei nada de ninguém a não ser de mim, nunca contei com ninguém a não ser comigo.

 Verdade é que não tenho qualquer reforma, pudera, mas juntei algum pecúlio e não fora esta trabalheira em que estou metida já estaria no sul de França gozando os meus últimos dias. Gosto muito do sul de França, Nice, Marselha, conhece a menina o mercado das flores, Nice ? Que coisa mais linda !  O Mónaco ali tão perto ! O clima, que adoro, os cavalheiros tão correctos ! As madames lindíssimas ! Mas então, esta maleita e o apego ao rendimento mínimo que me deram têm-me pregado aqui...

– A senhora está a brincar comigo ! Com a sua idade e ainda alimenta sonhos desses, tão morosos de cumprir ?

– Nem morrerei sem os realizar minha filha ! Desde os meus vinte anos que passo férias com um cavalheiro francês, sempre o mesmo, tenho até lá uma casinha ! Morrer ? Quem quer pensar nisso ? Mostre-me a menina a sua mão, deixe-me ver as linhas do destino, nelas está tudo.

Fiquei então sabendo que vou viver muitos anos, que a vida me reserva surpresas bem agradáveis, que há um homem que gosta muito de mim e que tenho um coração muito grande onde há lugar de sobra para ele. Que mais poderia eu desejar ?


As nossas mãos e as nossas vidas são um mar de surpresas não acham ?  ...


In Diário do Sul, Kota De Mulher, – Évora,  por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião, publicado em Novembro / Dezembro de 2005



141 - OKAY, TUDO BEM, NADA A DIZER... Okay Alright , the night will be aurea, nothing left to say ...


                    Varias vezes o pai ameaçara inscrevê-la na fábrica. Pediria ao sobrinho que desse um jeitinho afim da catraia entrar a trabukar caso continuasse sem rendimento em contraponto ao esforço da família para a manter a estudar.

Lola sempre fizera ouvidos de mercador e mantivera afastado o grilo falante. O part-time na associação académica dava-lhe para o tabaco e os cafés, permitia-lhe salvo-conduto a todas as festas da faculdade e, um emprego, a vida adulta, a maternidade tinham tempo de chegar. Que esperassem.

Desde que nos poucos fds em que ia a casa não chegasse a cheirar a tabaco e a bagaço tudo correria pelo melhor. Quanto à voz grossa já se havia habituado a dar a desculpa da mudança de idade. No entanto ela sabia que aquela dor na garganta cedo ou tarde exigiria um médico. Até lá, keep calm, putas e vinho tinto como diz a malta.

Do curso de artes que frequentava na vetusta universidade de Évora na carismática cidade museu, Lola teimava sobretudo na vida boémia que as biografias dos famosos em geral acusam.

O verão e as férias no Allgarve prolongavam-se na cidade quente até ao verão seguinte. As aulas não lhe davam cuidados de maior, desde que fosse arrastando o cu pelas cadeiras e aparecendo aos profs de quando em vez a coisa iria. Um piscar de olhos e uma palavrinha atirada mansamente a algum mais renitente mete-lo-ia no carreiro, e se alguma noite o encontrasse num dos muitos bares onde tinha raízes na cidade, aproveitaria para um shot e dois dedos de conversa de treta que o prantassem de joelhos ante a sua beleza nórdica e a sua nada módica irreverência.

Pielas e bagaços dissipados nas vielas do burgo em cantorias de irmandade, umas canções trauteadas nos palcos de um ou outro bar para compor a mesada foram o tirocínio que o processo de Bolonha não exige mas Lola assimilou no respaldo dos anos de faculdade, cuja exigência porém não teve artes para aguentar até ao fim. A vocação falava mais alto e desde criança as artes a desafiavam, as artes e o pai, que ainda menina a acompanhava à viola.

             Não que a faculdade se lhe impusesse, ou ao mundo, pela sapiência dos seus pares, o que maior peso lhe conferia nos concerto das faculdades do país seria a traça e antiguidade da arquitectónica dos seus seculares edifícios, numa cidade património mundial e reconhecidamente detentora de um espólio e tradição que só Coimbra superaria. 

        A desgraça toca contudo e por vezes até à porta da criatura mais afortunada, a Lola acontecera-lhe ter retirado a título de empréstimo mas sem licença um saxofone caríssimo que a faculdade nunca lhe cederia mas que ela sub-repticiamente surripiava amiúde e sempre que com os seus gandulos conseguia um contrato para cantar, e tocar, num qualquer dos muitos e manhosos bares nocturnos da cidade.

Évora terá, por alto e em época de aulas e graças esta população flutuante, essencialmente estudantes, um pouco mais que cinquenta mil habitantes. Porém, mau grado a frenética vida nocturna, que a eles é dedicada e por eles economicamente animada e suportada, é uma cidade apagada, cara, sem vida para além destes focos juvenis, uma cidade sem industrias que não pontuais, com um comércio debilitado, moribundo, e que sobrevive sobretudo dos serviços.

A faculdade é o sustentáculo maior de uma economia paralela, subterrânea ou informal bem estruturada medindo meças a qualquer outro sector ou mister na cidade. Quartos, quartinhos, corredores, vãos de escada, garagens e logradouros, tudo serve para alugar a estudantes, sem recibo claro, que o Gaspar é um sovina.

Arrendamentos clandestinos e uma rede de bares, casas de pasto, tascas e tasquinhas imbricadas, entretecidas nas vielas estreitas, medievas, e a sua exploração a qualquer preço são o único contributo visível da faculdade para o enriquecimento da urbe, tudo o mais não passará jamais de boas intenções e loas académicas.

Neste caldo de cultura onde a “carrinha do Gregório” (serviço eborense suportado pela CEE, a pedido recolhe os estudantes ébrios que leva ao hospital ou a casa evitando que conduzam alcoolizados) parece ser a única actividade que nunca tem mãos a medir, neste caldo de cultura dizia eu, se desenvolveu a arte de Lola. 

            Acossada pela necessidade de repor o saxofone extraviado, vendeu por tuta-e-meia uma cassete com gravação sua, bêbeda, num bar da cidade, e a um adepto e fã fervoroso, desconfia-se que tb apaixonado. Como que por artes mágicas a cassete percorreu caminho que nem garrafa bem rolhada largada em alto mar. Acabou numa editora, foi ouvida, mereceu prémios.

Hoje não é já a faculdade a suportar estruturalmente Lola, é esta que renome dá à primeira. Não tardará que académicos à míngua de motivos que lhes justifiquem a existência e os salários que lhes pagamos, e na falta de melhor, a apontem como exemplo vivo do que de excelente a universidade produz. Esta mania da excelência  e o nosso proverbial porreiro pá irão acabar connosco mais cedo que tarde…

Dentro de poucos dias sábios dedicar-lhe-ão uma cátedra na escola das artes, em seu nome proferirão works e workshops, palestras, congressos, laudas.


Ou não fosse Évora uma cidade de Portugal….


Sou teu fã loirinha !! Não pares !!! J
                
 
https://www.youtube.com/watch?v=vLo4tFiTHkk


CRÉDITO CÃO * por Maria Luísa Baião ......................

         

             Ele abraçou-a como se fosse a única mulher do mundo, como se toda a sua vida se condensasse naquele momento de luminosa virtude e inocência, como se o seu destino dependesse da solidez daquele abraço, abraço que arrastava um implícito devir a que a sua consciência se entregava.

Ela, como a todas nós já sucedeu, deixou-se levar embalada por momentos de ilusão pura que juramos ser verdadeiros, sentiu-se a eleita, a escolhida, única. Retribuiu o abraço, deixou que a cabeça pendesse para trás, ofereceu-lhe o pescoço, de alva brancura, os lábios vermelhos rogando ternura, caminho que ele percorreu, para terminaram num longo beijo, dos tais que enquanto duram, temos tempo para pensar tudo e algo mais.

Abraçados caminharam, pisando a relva e arrastando os livros, num transe mágico a que a realidade a qualquer momento poria fim. Passaram-me ao lado, não deram por mim, fiquei ali sentada, pensando quanto toda aquela mágica ilusão é sempre pouca, por muito que, loucas, acreditemos ser total.

Sem que o quisesse o pensamento foi-me derivando para a sequência desse amor olhado, na exacta proporção em que, fundidos em suave sonho se me esfumavam da visão. E imagino que um do outro tirarão as forças que precisam, para neste vale de lágrimas vogarem, imagino que cada um deles ao outro dará forças para que os destinos se cumpram, os sonhos se concretizem, os pais os abençoem, as vidas se fundam e se cumpram os desígnios que os Deuses, num momento de lucidez ou brincadeira, (nunca sabemos a disposição dos Deuses, é imprevisível) quiserem dar aos seus destinos.

E fico a pensar como lhes chegará hoje por milagre, amor e uma cabana e como amanhã irão sacrificar-se para que a cabana tenha dois quartos no mínimo, garagem se possível, um quintal para umas flores que morrerão à míngua de tempo, água e cuidados pois as suas atenções serão monopolizadas pelos vencimentos das prestações, as febres dos meninos e a incerteza dos empregos temporários.

É uma pena, um desperdício, que a juventude não seja eterna, que homens maduros deitem ao mar os sonhos tão docemente abraçados em momentos do mais puro ilusionismo. É uma pena que homens maduros ceifem cerce as aspirações dessas crianças, por vezes prematuramente mães, pais, só porque ninguém lhes ensinou o B á bá do sexo, essa coisa e tal que faz de nós seres bons, maravilhosos, de encantar. É triste ver como nos empenhamos a fundo em criar dificuldades ao que devia ser fácil, preconceitos, intolerâncias, inveja, ignorância, tudo vale, tudo serve para que obriguemos esses jovens a cair no mundo real que nós criámos, um mundo em que para sonhos e ilusões não há lugar, um mundo em que o viver e o escravizar é similar.

Quem me dera, como eles ir vogando, no mar de sonhos de quem vive amando, mas não, há muito me acordaram, me chamaram crescida, e me usaram. Corre, corre, mulher se o queres ser, ver as crianças crescer, a casa ter, sorri, sorri sempre, sofre, sofre, porque ser crescido é sofrer.

Caminham juntos, a par e passo por enquanto, tecendo devaneios, repartindo anseios. Sonham, quebram amarras, repartem projectos e farras, não sabem, não podem saber ainda que o tempo se escoa, casa, família, nada enevoa o caminhar, nada o parece toldar. Acordarão um dia bruscamente, descobrirão que nesta terra não há gente, mas interesses, benesses, intendentes. Não verão tão próximo a casa prometida, a vida consentida, tudo porque num ai se foi a esperança prometida.

O balcão já fechou, o crédito jovem habitação encerrou, que mundo cão este em que eu estou...

* Escrito em Évora a 14 de Junho de 2002 por Maria Luísa Baião e publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna “Kota de Mulher”. 
(140A)


terça-feira, 16 de abril de 2013

140 - CATARSE, OU CATAR-SE ..................................


A história da Europa é pródiga em guerras, a última, que deixou destruído meio mundo e a quase totalidade dos países europeus começa a ficar esquecida.

Dessa em especial, Portugal safou-se, e, para mal dos nossos pecados, não abraçou a catarse colectiva que viria a fazer dos países reconstruídos da Europa central e ocidental o paraíso que foram, e ainda são, se comparados com o purgatório em que estamos atolados.

Esses países renasceram das cinzas, das cinzas e de um sofrimento atroz, qual Fénix redimida dos seus pecados. Nós, mais recentemente, atravessámos 38 anos de democracia, atravessámos mas não aprendemos nem aproveitámos.

Há cerca de sessenta e poucos anos falhámos o Plano Marshall, mas de há quase quatro décadas para cá falhámos todos os planos que nos prometeram e que nunca vimos cumpridos…

É pacificamente aceite entre nós que o melhor que os nossos democratas conseguiram foi atolar-nos num buraco sem fundo de onde os mesmos, sempre os mesmos, se escapam, escorregadios, como enguias entre os dedos.

Evidentemente a culpa não é só dos oportunistas a quem demos oportunidades, mais difícil é assumirmos que parte da culpa também cabe a cada um de nós individualmente. A propósito você já fez este ano, este mês, esta semana ou hoje mesmo o que devia por este país que é de todos ?

Esta arenga não vem a talhe de foice, isto anda tudo ligado, é terça feira, são dezoito horas, e em menos de quarenta e oito já me deparei com um funcionário público exemplar, que também os há e felizmente cada vez em maior número, e devo dizer-vos em abono da verdade que raramente perco a ocasião para ali mesmo no momento e perante o menos óbvio lhes agradecer a postura, a amabilidade, a simpatia e a disponibilidade.

Em contraponto hoje cedinho, logo pela manhã, choquei de frente com uma besta-quadrada, e claro, também não dei por perdido o meu tempo e atirei-lhe com o ignóbil desempenho à cara.

Das dez da manhã até agora meditei e arrefeci, não quis escrever este texto debaixo da emoção e da revolta que me causou a ignorante atitude de quem não me atendeu como devia.

Das minhas deambulações meditativas conclui que parece estarmos precisados da nossa própria catarse. Superado o conflito de 39 – - 45 sem destruição nem desgraça catártica, amodorrámos.

Temo que os tempos de desemprego maciço pobreza e fome que temos pela frente nos levem à redenção que tão longa paz e prosperidade levou aos outros países que aqui citei mas não a nós. Temo que seja necessário um tão desumano sofrimento para percebermos que todos somos em simultâneo responsáveis e culpados da difícil situação em que nos encontramos.

Um dos problemas de Portugal pós 25 de Abril foi a existência, até hoje mantida, de quatro portugais, o Portugal socialista, o social democrata, o comunista e o cristão democrata... Ora enquanto não aceitarmos as nossas diferenças e diferentes interesses, enquanto democraticamente não delimitarmos a possibilidade de acção de cada um, e enquanto cada um não funcionar como parte de um todo, nunca seremos um país. E quem diz um país diz uma cidade.

Será necessário o sacrifício de 50.000 funcionários públicos para aceitarmos as nossas culpas e nos redimirmos ? Eu sei que há muitas culpas e ainda mais culpados, eu sei que há muitos caminhos e muitas mais opções, mas isso não me desvia um milímetro da arenga que pretendo impingir-vos, a responsabilidade de cada um de nós no estado em que todos nos encontramos.

E você funcionário público que hoje, como sempre, cultiva uma atitude reactiva ? Já se compenetrou que está a contribuir para o desemprego da sua classe e para o de milhares de portugueses ?  

Espero que já tenha vociferado contra este texto e contra mim todo o fel da sua alma e pare para pensar, estamos no mesmo barco, se você não me ajudar a mim como posso ajudá-lo a si ?

Quer vir para o meu lugar ?

Quer trocar de actividade comigo ?  

E promete passar a ter uma atitude proactiva ?

Ou ficamos cada macaco no seu galho e macaco não empata macaco como amigo não empata amigo ??  

Medite…

Eu prantei aqui as minhas meditações…

Deixe aqui as suas, deixe aqui o seu comentário.

Mas sob anonimato não por favor.

Tenha coragem a assuma-se, ao menos todos saberemos claramente quem tem e quem não tem culpas no estado desgraçado a que nos alcandorámos… 

:)


sábado, 13 de abril de 2013

139 - Seara ao Vento ...


Debalde tentei
Descansar 
Adormecer
Na noite voguei sonhando
Teus cabelos soltos
Qual seara ondulando
Sorriso alargado
Brilho nos olhos
Deux pommes de terre
Peau blanche
Um sinal de trânsito
Um triângulo invertido
Um cone
Sinalizando perigo, 
Ou clamando atenção
Cheiro a pistáchio
Sabor a morango
Uma criança lambendo um gelado
Tempestade 
Turbilhão
Um sonho divino, um desejo
Eu miúdo sorvendo os lábios
O esforço supremo, um esgar
Um corpo tombando para o lado
Uma dádiva
Um sorriso
Finalmente o sono
:)
<3

sábado, 9 de março de 2013

138 - POSESSION / OBSESSION .........



Nunca antes, mas desde aquele dia sim, para mim foi o final, não aguentaria mais tanta indiferença


- será pecado o beijo ?

e questionava-se permanentemente numa blandícia matreira, mole, que me exasperava, quando eu, tantas vezes, sim amor tu mereces, eu compreendo-te, eu trato disso

enquanto o masoquismo, como vicio que a animava e a que eu fechava os olhos, tomava conta dela e, se tinha que ser ao menos fosse eu, que não era sádico, pois se por um lado evitava a queda da sua loucura nas mãos de um qualquer, ou que assim viesse a sofrer, ao menos fosse comigo que, arvorando um racionalismo compreensivo e paternalista mas simultaneamente soez, me vingava

vingava-me do será pecado o beijo que me travava as investidas sempre que, mais carinhoso e terno, procurava despertar nela interesse algum ou mesmo mínimo pelo baldaquino que em sua honra instalara na enorme sala de que fizera quarto

- nasci no pecado, sou filha do pecado

afiançava-me ela ajoelhada, de mãos postas, nos raros momentos em que algo ou alguma coisa a tomava, submetendo-a, num transe, hipnótico, não sei, do qual só se libertava se sossegada com o meu

- sim, sim amor eu trato disso, tu mereces e eu compreendo-te,

e a tomava, num sadismo que ela exigia fosse cumprido religiosa e ritualmente, após o que se acalmava, sossegava, até novamente exigir ser possuída por mim demoniacamente numa  perversão voluptuosa e lúgubre

- perdoa meu Deus perdoa em mim os pecados do homem eu que sou filha de pecadora e nasci e vivi em pecado perdoa Senhora perdoa Pai, em nome do Pai do Filho do Espírito Santo esta minha penitência, que cada sacrifício meu  aplaque os tumultos da minha existência e desta negra alma

ámen

e enquanto este transe lúbrico, de mãos fechadas num fervor desmesurado e lascivo sobre as enormes contas de rosário de um terço levado aos lábios minuto a minuto nos intervalos dos murmúrios me forçava, para aplacar a sua ânsia libidinosa e voraz a tomá-la, a possui-la quase ou como se a violasse e do estupro fizesse consequência para o seu sacrifício, a sua penitência, durante o que ela, em atitude e oração ofertava aos seus deuses ou demónios imaginários a expiação e imolação apaziguadoras da perturbação da suja alma

numa parede a xilogravura de Jesus, noutra, provavelmente do mesmo artista, uma invocando Nossa Senhora das Dores, à cabeceira uma cruz, nua, numa mesinha de cabeceira, e sempre à mão, o terço com incrustações de prata, na outra mesinha uma foto do noivo, falecido numa picada em Timor, vitíma de uma mina terrorista e pela morte do qual se culpava visto lhe ter sido infiel enquanto ele no mato, sobretudo por, descontados os fusos horários, nada a demover da certeza de ele ter morrido no exacto momento em que ela, nos antípodas, lançava um grito de lascívia numa pensão do Beato, perdida de amores por um boletineiro da Marconi, que a fez sentir-se impura e, para todo o sempre e ainda hoje se questionar

- será pecado o beijo ?

enquanto fazia de mim exorcista dos pecados de que não a culpava nem me cabia a mim expiar mas num turbilhão me arrastaram para o seu mundo imaginário e concentracionário, um mundo em que dor e castigo se conjugavam como atrozes carrascos e algozes de um amor luciferino que na ideia dela terá sido culpado pelo bizarro fim do noivo e de idílico noivado

- mete, tudo, todo, mete todo sem dor nem piedade, não mereço viver, força, à bruta, mete de repente, enfia tudo de uma vez, não pares, arranca-me os cabelos, castiga-me às tuas mãos, queima-me as entranhas, incendeia -me a boca a garganta, Senhor, expio os meus pecados Senhor, que o meu padecer purifique a minha alma e que nossa Senhora das Dores me encurte a vida e me alivie o sofrimento, quero morrer

e sentindo-se impura enforcava-se com o terço, enrolava-o nos seios ou enfiava-o entre as pernas ampliando a dor e o castigo e arrastando-me a mim nas mágoas duma expiação em que fazia de carrasco e de exorcista, eu, para quem o mundo girava já tão ao contrário que naquela tarde não me contive e no exacto momento em que ela gania debaixo de mim qual fêmea acossada pelo cio, lancei mão do pesado crucifixo na parede, ergui-o bem alto para que a pancada na nuca fosse fulminante e coincidente com a milésima de segundo em que o orgasmo me acometesse, e já pressentia na minha cara o esgar vingativo de um incubo sádico quando

uma aparição ante meus olhos tomou forma e ante mim, um incréu, se materializou uma Nossa Senhora de Fátima ou das Dores cuja luz me cegou e cujo braço susteve quando já em movimento descendente a estocada, e ainda hoje recordo o seu sorriso sereno, calmo, de pura paz, emanando um poder de sedução que me travou o golpe e envergonhou de tão ignomiosa acção

soltou um grito e libertou-se de mim, cruzou os braços sobre o rosto e ouvi-lhe num murmúrio perdão perdão perdão Deus Pai, enquanto enterrava a cabeça entre os joelhos e se encolhia a um canto

depositei com inacreditável tranquilidade e superstição o crucifixo sobre a cama, como que arrependido do brutal gesto que nos desgraçaria

mas o destino não marcara aquela hora, endireitei-me, respirei fundo para recuperar a serenidade e o domínio de mim, olhei à esquerda e à direita as xilogravuras nas paredes e jurei a mim mesmo enterrar ali os delírios selvagens que preenchiam os vazios da minha alma e nunca mais, até hoje, arranquei cabelos violei ou sovei quem quer que fosse,

olhei-a uma ultima vez, pareceu-me a incarnação do diabo
ela cegava-me, mas esqueci-a

olhei-a pelo espelho, tomava a bica a meu lado na Pérola da Sé, magra, sumida no hábito de freira, não a via há muito mais de trinta anos, não me reconheceu ou fingiu não me ver,  fiquei-lhe  agradecido, esquecera-a, esquecera-me de mim

hoje sei, o amor só medra noutras galáxias

ela fora a minha cocaína… 







sábado, 2 de fevereiro de 2013

137 - E QUANTOS ANOS VÃO ? … By Luísa Baião *



Vi-o ontem mesmo. Acabadinho de chegar de Havana e ainda com aquela cor morena ensaboada que só Cuba impregna na pele. Aliás a efusão do encontro foi mais para meu marido, de quem é amigo, que eu saiba de tempos anteriores ao meu nascimento. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Não estava ébrio, não estavam para ser mais correcta, mas aquele ar bronzeado, o ar feliz e alegre de quem ainda teima em prolongar umas férias que adivinho maravilhosas, fizeram-me lembrar as noites calientes do Malecon, as cubanas e cubanos despidos de preconceitos, orgulhosos da sua cor, ébrios de vida, vidas vividas numa ilha paradisíaca.

 Naquela ilha, naquele passeio à beira-mar, caída a noite os nativos não escondem antes nos mostram porque é o beijo a parte mais importante de uma relação física entre dois seres. Porque é o beijo maravilhoso, como interage com o corpo do outro, umas vezes subrepticiamente outras podendo significar um mergulho no abismo da volúpia, quase uma viagem sem volta.

 Naquela ilha se aprende porque depois do amor, em nossos lábios pétalas de todos os matizes se agitam orvalhadas como brisa suspensa da delicadeza, por transitarmos em contramão pela fragilidade do outro. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Também ele esse recém-chegado meu amigo, amigo de meu marido, cheirava ainda à névoa do mar das Antilhas, mar que naquele passeio, no Malecon, nos salpica.

 Não será por acaso que Cuba é considerada a pérola do Caribe. Ali naquele passeio dei uma vez por mim completamente encharcada, após ter admirado religiosamente uma gigantesca pintura mural do “Che” deixando-se vislumbrar numa das antigas casas coloniais que embelezam a cidade. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Visitei cafés e ali provei do melhor, quase tão bom como o nosso Delta. Ali me deleitei com um charuto indígena que me enrolou os sentidos, sentidos que recuperaria numa instituição cubana que dá pelo nome de Cabaret Tropicana.

 E naquela ilha vi o mundo antes de mim, a época colonial espanhola, o Palácio do Governador, salvo erro e omissão agora o Museu de Arte Colonial, também vi o não menos célebre e polémico Museu da Revolução, carros de há cinquenta anos e um operário tomado de súbita emoção por ter constatado assombrado que tudo naquela mesa, garrafa, prato, facalhão, era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção, como teria dito Vinícius de Moraes.

 Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira. E claro, como não poderia ter deixado de ser visitei, visitámos na irreverência da idade La Bodeguita D’el Médio, sim essa a tal do Hemingway a quem igualmente erigiram um Museu. Resultado, uma ressaca só curada na Isla de la Juventud, a penitência auto imposta de atravessar acordada a Província de Pinar del Rio toda ela considerada património mundial pela Unesco, com final e recolhimento obrigatório no Convento de Stª Clara.

  Ali recuámos no tempo, visitámos a ilha do Papagaio, famosa por ter sido retiro e quartel-general de gente tão famosa como os piratas Francis Drake e Henry Morgan e, como se não bastasse tanta fama, ainda se diz ter sido essa ilha a inspiradora de Robert Louis Stevenson's em “ A Ilha do Tesouro”. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 No regresso, navegámos não no mesmo mas num outro Granma, por Bayamo, Baracoa. E num Cadilac descapotável dos anos cinquenta cortejámos Trinidad e Santiago de Cuba.

 Após tanta agitação o regresso foi mais moderado, há lembranças que não podemos arriscar serem maculadas com palavras, lembranças que uma atenção aproximada demais poderia danificar. Depois das festas, depois dos passeios, instala-se-nos no íntimo, quase sempre, um silêncio de museu. 

Toleram-se apenas os ruídos mais profundos que o silêncio, nada de barulhos excessivos, nada que incomode o suficiente, nada que invada os mistérios de cada um, é proibido tocar o sagrado de cada uma, para não profanar, p’ra não quebrar, p’ra que a magia e os recuerdos durem por muitos e muitos séculos.

 Esse nosso amigo perceberá tudo isto antes de lhe ter passado o bronze. A vida não é um poema de domingo. 


By Maria Luísa Baião, redigido na ‎quinta-feira, ‎28‎ de ‎Julho‎ de ‎2005, e muito provavelmente publicado no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER nos dias ou semana seguinte.

 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

136 - PELO SIM, PELO NÃO..............




Ali estavam de novo naquela grande cidade. Raiana, diziam. Nunca como desta vez ela se sentira perdida, não fosse a companhia da mãe e da madrinha e de imediato teria feito marcha - atrás.
Tudo porque o Natal, na serra, lhe havia trocado as voltas. A agência de viagens garantira férias inolvidáveis.
Inolvidáveis.
Pois pois.
Até há algum tempo tinham na realidade sido inesquecíveis, depois, repentinamente, tudo mudara de figura e os sonhos virado pesadelo.
Nunca lhe ocorrera que tal poderia acontecer.
Doces recordações provocavam-lhe agora severos amargos de boca.
Esfumaram-se os sonhos e esfumou-se ele mal soube dos motivos de tanta aflição.
Nunca aquela cidade lhe parecera soturna, inóspita. As montras, que dantes percorria calma e demoradamente com um misto de alegria pelas compras antecipadas e prodigalizadas, não eram desta vez sequer olhadas.
Desta vez nem compras nem caramelos. Estava ali para cumprir uma decisão e só isso interessava. Só isso bastava. E sobrava.
Londres estava fora das suas capacidades. Além disso a dificuldade que todas experimentavam na língua contribuíra em muito para que essa metrópole de gentes, liberdades e democracia acabasse atirada para terceira possibilidade.
Fosse outro o motivo e não desdenharia, um fim-de-semana, ou dois ou três dias que fossem, seriam bastantes para trazer muito que contar.
O caso agora era diferente. Nem a ida a Badajoz era passeio, nem o motivo acarretava outras preocupações que não fossem esconder e calar.
Conhecera-o nas últimas férias.
O Natal, a serra, a paisagem, o ambiente, o ar de festa vivido.
Acreditara ter encontrado o homem dos seus sonhos. Fora um idílio curto mas arrebatador. Cheio de promessas, de planos prenhes de futuro e de vida.
Trocaram fotos e números de telefone, sorrisos, e-mail’s e odores, fluidos e amores.
Bruscamente tudo se toldara.
Telefones sempre inactivos, o correio electrónico sem dar sinal de vida, as promessas escoando por um buraco negro maior que a mentira em que acreditara.
Porquê?
Ela bem sabia porquê.
Contudo, não podia ter ficado calada. Não podia ter escondido.
O motivo era demasiado óbvio e sério para não ser partilhado, todavia o resultado, de todo inesperado, tinha sido o que ela menos intuíra e premeditara.
À primeira cai qualquer, à segunda só quem quer.
Quem a mandara ser tão parva assim ?
A madrinha bem lhe dissera para ter cautela pois que há devaneios que somente dissabores carreiam. Só agora via plenamente todo o alcance do sonho volvido pesadelo e que alimentara com o seu próprio calor, o seu próprio crer.
E a rua que procuravam e com a qual não davam ! Estavam ficando exasperadas. A hora marcada a aproximar-se e sem saberem se estavam perto se longe. A cidade um labirinto. Qual formigueiro em aceso alvoroço.
A rua ? Onde fica o raio da rua ? E a Clínica ! Onde está o raio da clínica ?
Perguntem a essa senhora !
Aqui não posso parar !
Ai Deus no que eu me meti !
A madrinha criticara-a, não se evoca o nome do Senhor em vão.
A mãe, mais complacente e compreendendo a sua angústia perdoara-lhe. Perdoara-lhe tudo. Afinal estavam ali também por vontade sua.
Finalmente a rua ! O número indicado !
Mesmo em cima da hora !
Tudo foi feito num ápice mas profissionalmente. Como que a correr. Mas com todas as condições possíveis e imagináveis. Segurança, assepsia, apoio psíquico.
Sem dor, sem par, sem igual.
Eram horas de voltar. Já ali não faziam nada. Não tinham ido a compras, ademais todas tinha que estar em Évora ao anoitecer.
Um dos muitos movimentos defensores do “sim à vida”, de que faziam parte e do qual era a alma que o animava reclamava a sua presença.
Não podia faltar.
Não podia desiludir ninguém.
Abetardas, estorninhos, cegonhas, linces e morcegos eram também com ela.
Amava os animais.
Pelo sim pelo não atestaram o depósito do automóvel que estava a meio, não fossem ficar pelo caminho, até porque a gasolina, tudo, era ali muito mais acessível e barato. 

Fonte :  Maria Luisa Figueiredo Nunes PB - Verão - 2002