Vivo
a correr, todas vós saberão porquê, vivo a prazo, segundo dizem com um machado
pendente sobre mim, embora eu seja a primeira a não crer em tal.
Dei
por mim, há algum tempo, atendendo com extrema solicitude a minha última doente
externa, tão só porque apesar da sua avançada idade me confidenciava que nunca,
nunca na vida estivera doente. Sabido é que em casos destes a doença se reveste
de atenuantes ou agravantes que a psicologia saberá explicar muito bem, por
experiência todas entenderão que para quem nunca padeceu do que quer que fosse,
qualquer mazela assustará sobremaneira, especialmente se tidos em consideração
os quase setenta anos e muita rijeza perante os quais me encontrava.
Entre
mim e essa velhinha, após a solicitude exagerada com que a abordei depois dos
primeiros tratamentos, criou-se uma intimidade inusual. Talvez por lhe ter dito
que aquilo não era o fim do mundo, talvez pela sua imagem de velhinha, rija e
sabida, sempre com a resposta na ponta da língua, talvez um pouco de tudo isso,
a verdade é que nos aproximámos uma da outra. A páginas tantas, confessei-lhe
que, mau grado a minha perspicácia em adivinhar a profissão da cada doente
pelas sequelas e deformações profissionais a que uma longa vida de trabalho
sempre conduz, com ela não o conseguira fazer, e que isso era importante e
ajudaria na recuperação.
-
Puta minha filha, fui puta.
E
tão pronta me atirou a resposta que me deixou encavacada, sem fala, e
momentaneamente incapaz de reagir.
–
Então não se vê logo pelo que este corpinho passou ? Fui o céu para muitos
minha querida, uma dor de cabeça para outros, mas jamais o inferno para quem
quer que fosse.
E
vendo-me incapaz de a abordar com o à vontade com que o vinha fazendo, falou
sozinha, e quase acerto se afirmar que não o fez para mim, mas para muita gente
que ao longo da sua vida a não quis escutar.
- Já
passei por tudo, já me aconteceu de tudo, desde os tempos em que me obrigavam a
ter casa aberta, até àqueles em que numa casa fechada tudo se fazia ás claras…
– Os
homens minha filha, acredite-me, são do mais hipócrita e ingrato que aturei na
vida.
– É
casada minha querida ?
–
Sim, respondi, e com um bom homem, vai para muitos anos, respondi.
–
Não seja ingénua minha menina, não se importa que lhe chame menina pois não ?
–
Claro que não, pois se tem idade para ser minha avó !
–
Pois a menina não seja ingénua, não há homens bons, todos se julgam na razão,
que sabem tudo, mandam em tudo, são todos iguais, e o seu, que Deus me perdoe,
ou é artola ou também já as fez ! Ou está para fazer !
–
Não creio, respondi, a senhora deve ter passado muito, e estar deveras magoada
com o mundo, o meu marido não é do género.
–
Magoada eu ? Não tenho razão de queixa, é certo que os mesmos homens que muito
me deram muito me tiraram, os que me deixaram abrir portas foram os mesmos que
as fecharam, é a roda da vida… Mas magoada não estou, nunca esperei nada de
ninguém a não ser de mim, nunca contei com ninguém a não ser comigo.
Verdade é que não tenho qualquer
reforma, pudera, mas juntei algum pecúlio e não fora esta trabalheira em que estou
metida já estaria no sul de França gozando os meus últimos dias. Gosto muito do
sul de França, Nice, Marselha, conhece a menina o mercado das flores, Nice ?
Que coisa mais linda ! O Mónaco ali tão
perto ! O clima, que adoro, os cavalheiros tão correctos ! As madames
lindíssimas ! Mas então, esta maleita e o apego ao rendimento mínimo que me
deram têm-me pregado aqui...
– A
senhora está a brincar comigo ! Com a sua idade e ainda alimenta sonhos desses,
tão morosos de cumprir ?
–
Nem morrerei sem os realizar minha filha ! Desde os meus vinte anos que passo
férias com um cavalheiro francês, sempre o mesmo, tenho até lá uma casinha ! Morrer ? Quem quer pensar nisso ? Mostre-me a menina a sua mão, deixe-me ver as
linhas do destino, nelas está tudo.
Fiquei
então sabendo que vou viver muitos anos, que a vida me reserva surpresas bem
agradáveis, que há um homem que gosta muito de mim e que tenho um coração muito
grande onde há lugar de sobra para ele. Que mais poderia eu desejar ?
As
nossas mãos e as nossas vidas são um mar de surpresas não acham ? ...
In Diário do Sul,
Kota De Mulher, – Évora, por Maria Luísa Figueiredo Nunes Palma Baião,
publicado em Novembro / Dezembro de 2005