Nunca antes, mas desde aquele dia sim, para mim foi o
final, não aguentaria mais tanta indiferença
- será pecado o beijo ?
e questionava-se permanentemente numa blandícia
matreira, mole, que me exasperava, quando eu, tantas vezes, sim amor tu
mereces, eu compreendo-te, eu trato disso
enquanto o masoquismo, como vicio que a animava e a
que eu fechava os olhos, tomava conta dela e, se tinha que ser ao menos fosse
eu, que não era sádico, pois se por um lado evitava a queda da sua loucura nas
mãos de um qualquer, ou que assim viesse a sofrer, ao menos fosse comigo que,
arvorando um racionalismo compreensivo e paternalista mas simultaneamente soez,
me vingava
vingava-me do será pecado o beijo que me travava as
investidas sempre que, mais carinhoso e terno, procurava despertar nela
interesse algum ou mesmo mínimo pelo baldaquino que em sua honra instalara na
enorme sala de que fizera quarto
- nasci no pecado, sou filha do pecado
afiançava-me ela ajoelhada, de mãos postas, nos raros
momentos em que algo ou alguma coisa a tomava, submetendo-a, num transe,
hipnótico, não sei, do qual só se libertava se sossegada com o meu
- sim, sim amor eu trato disso, tu mereces e eu
compreendo-te,
e a tomava, num sadismo que ela exigia fosse
cumprido religiosa e ritualmente, após o que se acalmava, sossegava, até
novamente exigir ser possuída por mim demoniacamente numa perversão voluptuosa e lúgubre
- perdoa meu Deus perdoa em mim os pecados do homem
eu que sou filha de pecadora e nasci e vivi em pecado perdoa Senhora perdoa Pai,
em nome do Pai do Filho do Espírito Santo esta minha penitência, que cada
sacrifício meu aplaque os tumultos da
minha existência e desta negra alma
ámen
e enquanto este transe lúbrico, de mãos fechadas num
fervor desmesurado e lascivo sobre as enormes contas de rosário de um terço
levado aos lábios minuto a minuto nos intervalos dos murmúrios me forçava, para
aplacar a sua ânsia libidinosa e voraz a tomá-la, a possui-la quase ou como se
a violasse e do estupro fizesse consequência para o seu sacrifício, a sua
penitência, durante o que ela, em atitude e oração ofertava aos seus deuses ou
demónios imaginários a expiação e imolação apaziguadoras da perturbação da suja alma
numa parede a xilogravura de Jesus, noutra,
provavelmente do mesmo artista, uma invocando Nossa Senhora das Dores, à
cabeceira uma cruz, nua, numa mesinha de cabeceira, e sempre à mão, o terço com
incrustações de prata, na outra mesinha uma foto do noivo, falecido numa picada
em Timor, vitíma de uma mina terrorista e pela morte do qual se culpava visto
lhe ter sido infiel enquanto ele no mato, sobretudo por, descontados os fusos
horários, nada a demover da certeza de ele ter morrido no exacto momento em que
ela, nos antípodas, lançava um grito de lascívia numa pensão do Beato, perdida
de amores por um boletineiro da Marconi, que a fez sentir-se impura e, para todo o sempre
e ainda hoje se questionar
- será pecado o beijo ?
enquanto fazia de mim exorcista dos pecados de que
não a culpava nem me cabia a mim expiar mas num turbilhão me arrastaram para o
seu mundo imaginário e concentracionário, um mundo em que dor e castigo se
conjugavam como atrozes carrascos e algozes de um amor luciferino que na ideia
dela terá sido culpado pelo bizarro fim do noivo e de idílico noivado
- mete, tudo, todo, mete todo sem dor nem piedade,
não mereço viver, força, à bruta, mete de repente, enfia tudo de uma vez, não
pares, arranca-me os cabelos, castiga-me às tuas mãos, queima-me as entranhas, incendeia
-me a boca a garganta, Senhor, expio os meus pecados Senhor, que o meu padecer purifique
a minha alma e que nossa Senhora das Dores me encurte a vida e me alivie o
sofrimento, quero morrer
e sentindo-se impura enforcava-se com o terço,
enrolava-o nos seios ou enfiava-o entre as pernas ampliando a dor e o castigo e
arrastando-me a mim nas mágoas duma expiação em que fazia de carrasco e de
exorcista, eu, para quem o mundo girava já tão ao contrário que naquela tarde
não me contive e no exacto momento em que ela gania debaixo de mim qual fêmea
acossada pelo cio, lancei mão do pesado crucifixo na parede, ergui-o bem alto
para que a pancada na nuca fosse fulminante e coincidente com a milésima de
segundo em que o orgasmo me acometesse, e já pressentia na minha cara o esgar
vingativo de um incubo sádico quando
uma aparição ante meus olhos tomou forma e ante mim, um
incréu, se materializou uma Nossa Senhora de Fátima ou das Dores cuja luz me
cegou e cujo braço susteve quando já em movimento descendente a estocada, e
ainda hoje recordo o seu sorriso sereno, calmo, de pura paz, emanando um poder
de sedução que me travou o golpe e envergonhou de tão ignomiosa acção
soltou um grito e libertou-se de mim, cruzou os
braços sobre o rosto e ouvi-lhe num murmúrio perdão perdão perdão Deus Pai,
enquanto enterrava a cabeça entre os joelhos e se encolhia a um canto
depositei com inacreditável tranquilidade e superstição
o crucifixo sobre a cama, como que arrependido do brutal gesto que nos desgraçaria
mas o destino não marcara aquela hora, endireitei-me, respirei fundo para recuperar a serenidade e o domínio de mim, olhei à esquerda e à direita as xilogravuras nas paredes e jurei a mim mesmo enterrar ali os delírios selvagens que preenchiam os vazios da minha alma e nunca mais, até hoje, arranquei cabelos violei ou sovei quem quer que fosse,
mas o destino não marcara aquela hora, endireitei-me, respirei fundo para recuperar a serenidade e o domínio de mim, olhei à esquerda e à direita as xilogravuras nas paredes e jurei a mim mesmo enterrar ali os delírios selvagens que preenchiam os vazios da minha alma e nunca mais, até hoje, arranquei cabelos violei ou sovei quem quer que fosse,
olhei-a uma ultima vez, pareceu-me a incarnação do
diabo
ela cegava-me, mas esqueci-a
olhei-a pelo espelho, tomava a bica a meu lado na
Pérola da Sé, magra, sumida no hábito de freira, não a via há muito mais de
trinta anos, não me reconheceu ou fingiu não me ver, fiquei-lhe
agradecido, esquecera-a, esquecera-me de mim
hoje sei, o amor só medra noutras galáxias
ela fora a minha cocaína…
…