segunda-feira, 22 de julho de 2013

153 - MEXERICO À LA PLAGE .............



É justo o Justo. Para mim tem sido. Já a mãezinha que Deus tem gostava dele apesar de não muito falador, não muito simpático e, se quero ser sincera, nada prestável.

Tantos anos de vizinhança no prédio e nunca foi capaz de um deixe D. Emilia que eu levo, eu ajudo, ou deixe estar que não me incomoda estou de saída e largo ali no contentor.

Na verdade nem um olhar mais demorado ou um sorriso esboçado. A má fama que o homem tinha no prédio não era de todo desmerecida não.

Parece outro agora. Todo salamaleques para aqui e para ali, todo mesuras, todo ai não me toques, embora pessoalmente não tenha razão de queixa que a mim não deixa ele cair no chão não !

Quem o viu e quem o vê. Mas andou muito em baixo quando da morte da D. Bárbara, coitado.

Dava pena. Para ser sincera dava pena. Está bem que não era homem que suscitasse simpatias mas sempre bem escanhoado, sempre bem aprumado, um homem que dava gosto ver. Não que alguma vez tivesse pensado nele Deus me livre que sempre fui uma mulher recta.

Mas doeu-me quando depois da D. Bárbara o vi tão atormentado, até mais baixo me parecia o raio do homem. Arrastando os pés, uma ou duas vezes me pareceu que de combalido até os pés arrastava, o Senhor tenha piedade.

Foi numa dessas ocasiões que nem sei como foi que eu, sempre tão recatada, me não contive e lhe atirei um: – Então senhor Roberto, a vida não pára meu vizinho, tem que arranjar forças !

E não é que arranjou ?

Agora mesmo antes da D. Lurdes chegar largou a toalha deu uma corrida e entrou na água que nem peixe e pôs-se ao largo com meia dúzia de braçadas ! Não lhe perdoo é a areia que me largou em cima com a arrancada à Carlos Sá, quando voltar vai ouvi-las vai que eu não sou a D. Bárbara.

Mas contava-lhe eu aquilo foi fogo no rabo do homem. Não sei se levou a sério ou não o que lhe disse mas a verdade é que arrebitou.

O que sei é que desde aí nunca mais esqueceu um bom dia D. Emilia, passadas duas ou três semanas já era Mila para cá e para lá, e deixe que eu levo, ora essa eu carrego, e foi assim que me acudiu à torneira que pingava há anos e me punha os nervos em franja que o meu Álvaro é a coisa mais desleixada que eu já vi, era, que agora até me arrepio só de pensar no estupor do homem e nos anos que o aturei.

Já a mãezinha que Deus tem não gostava dele, apesar de muito falador e muito simpático.

Há coisas que a gente não vê logo não é ?

Nem sei onde é que eu tinha a cabeça.

O Roberto é muito diferente. O outro nunca, pelo menos que eu me lembre, e o Roberto agora é Milinha a toda a hora Milinha isto Milinha aquilo que ás vezes até tenho medo que o santo e bom do homem me gaste o nome.

Mas foi assim, depois da mãezinha falecer.

Já reparara que era jeitoso quando do pingo da torneira, depois calhou o frigorifico ter parado de fazer gelo, e o meu Álvaro que nunca estava em casa quando fazia falta, um dia quando mudava a lâmpada ao candeeiro da mesinha de cabeceira sentiu-se mal, eu aflita D. Roberto não me assuste, senhor Roberto vou-lhe buscar um copo de água deite-se aqui que é o meu lado que eu já lhe trago a água, não faça mais esforço por amor de Deus e deixe-se ficar tapado vizinho Roberto que não há problemas, o Álvaro só vem na sexta feira foi para a Bélgica levar uma carga, ainda me lembro como se fosse hoje, era segunda feira de Carnaval e sexta feira logo de manhãzinha o Roberto pegou nas coisas dele e foi só atravessar o piso para o lado dele, levava outras cores, nunca mais perdeu aquelas cores nunca mais uma aflição daquelas, era qualquer coisa de tensão baixa, ou alta, faz medicação diária mas nunca mais uma crise, nunca mais falta de ar nem uma ameaça de desmaio, e aquelas cores que lhe vê desde que as ganhou que as não perdeu e é isto, uma corrida um mergulho umas braçadas e parece que tem menos vinte anos, ao Álvaro já não suportava o hálito a bagaceira ordinária, a esse a crise arrumou de vez, primeiro foram as prestações do camião a ficar por pagar depois o andar, um dia cheguei a casa e tinha vendido a mobília, passadas semanas os fiadores ficaram-lhe com o andar, nunca mais vi o camião na rua e o que me valeu foi o Roberto, deixa lá Milinha deita-te aqui que é o meu lado, olhe filha para mim esta crise foi uma oportunidade e apesar de tudo e daqueles bandidos do governo a reforma dele tem-se aguentado malgrado os cortes, estamos ali naquela vivenda da marginal, alugámos um quartito duas semanitas e olhe ele vem aí desculpe tenho que me arranjar que ele marcou mesa na marisqueira e detesta que o façam esperar quando mete cerveja e sapateira.



… 

sexta-feira, 19 de julho de 2013

152 - FILIGRANA .................................



Afastei-me gradualmente e sem fazer ondas. Afivelei o melhor sorriso e lancei o mais terno e prometedor olhar

Não fora caminhar como atleta em corda bamba ou em arame filigrana e jamais me teria dado ao cuidado, todavia a verdade é esta diplomacia a que as considerações obrigam e nada mais a fazer, é um dever que me cumpre

Compreendam 

           Nos mesmos nós me vi muitas vezes enleado

Por isso as pinças, os pezinhos de lã com que trato do assunto 

De luvas de pelica sublinho, reforçando o melindre da questão

Claro que a desejo…
Claro que se eu pudesse…
Porque quando ela me acicata o desejo de…
O meu eu racional desce às profundezas e...

                              Só quero ter-te
só queria ter-te
ajoelhar-me perante ti
e também beber-te
afundar-me no teu cálice
embriagar-me de ti
dar-me
ter-te
possuir-te
na embriaguez do desejo
no mar da tua beleza
gozar-te a maturidade imanente
acalmar-me em ti
fruir-te
enlouquecer
até que bem dentro de ti
bem no fundo de ti
perder-me

Adoro-te

  Ah ! Se num minuto eu ! Se eu pudesse ser mosca, abelha, borboleta, abelhão, protão, electrão, átomo, quasar, e vogar no tempo e no espaço qual raio de luz, sol, luar, se pudesse, dir-te-ia…

Sim, as coisas que eu diria…

Podendo, o que não te diria eu…

Que esses olhos, esse olhar, esses cabelos, sorriso, beiços avermelhados, aveludados, a orelha, o lóbulo, nuca pescoço a pele macia, de pêssego, a língua que me espreita da comissura dos lábios, a íris disparando promessas vagas prenhes de intenções, de enleios, nós, para atar e desatar e tu madura quando eu no apogeu, e se não agora quando, se a vida é isto mesmo, um mar de enganos em que nos queremos banhar, e isto um sonho em que temo embarcar, acordar, porque eu, porque sim, porque não, uma vez que me enredaste e mais não vejo que dois fortes motivos, duas forçosas razões para te querer, e hoje sei que sim,  é por isso, e é por tudo e por nada, e outras explicações não preciso nem dou, pois que se não é visível, que eu, tão certinho e cheio de rumos e certezas ande fora de mim e sem bússola, que a vida é isto mesmo, um mar de enganos, um sonho de que acordar não quero, e se não agora quando, se eu já nem sei se no apogeu se no perigeu, e se me confundem as órbitas no buraco negro em que por ti, por tua causa fui sugado, e agora esta corda bamba, este arame de filigrana em que caí de um céu todo ele sorrisos promessas e se não fosse esta diplomacia a que me sinto obrigado atiraria ao chão a merda das luvas de pelica, cagar-me-ia nas pinças e no melindre da questão, nesta e de qualquer outra questão, pegaria em ti e em mim e adeus até um dia ou nunca mais que eu fui viver, quero que todos vocês, o que mais quero é que doravante todos você se vão foder !!!

Apetecia-me abraçar-te
encostar a cabeça no teu ombro
esquecer o tempo
fechar os olhos
sentir nas faces o teu cabelo
no peito o teu coração batendo
no pescoço o teu bafo quente
o teu hálito fresco
o teu perfume
os teus lábios
a tua boca
a tua língua

sugar-te a saliva como quem suga a esperança
deleitar-me nela
deleitar-me em ti
contigo
amar-te
ter-te
viver
:) :)
<3

domingo, 14 de julho de 2013

151 - PURO ÓCIO ..................................



Debaixo do sol matinal de que o toldo me resguarda passam, mirando-me com cupidez, amigos, desamigos e desconhecidos conhecidos.

A cerveja, viva, liberta bolhinhas no copo, a torrada exala um odor a forno de lenha, a manteiga derretida e eu, apesar dos dedos enxutos, inconscientemente lambo-os.

Vejo, ao longe, aproximar-se a vidente do segundo em frente. Andar majestático, hierático, para a idade está boa a velha.

Todos parecem olhar com inveja os copos que bebo, ignoram os tombos que dei, dou e certamente darei. Foram eles quem aqui me trouxe. Foi com eles que cresci, foi com eles que aprendi. O ar narcísico que vêem em mim não é nada disso. Sou terrível e uma besta quando quero, mas também, e na generalidade, uma pessoa de bem, em paz comigo mesmo, tolhendo a pacatez serena deste dia solarengo de fim da primavera, uma sexta feira radiosa e de sol, de promessas, antecâmara do sempre tão desejado fim de semana.

A Esplanada enche-se, ao fundo o mar, as velas de uma fragata, pescadores, gaivotas.

Ali está o Dr. Afonso, que foi meu professor e depois meu colega, acusa falta de ar há que anos e a garrafa que traz pendurada da cintura nunca mais se esgota.

É esta inefável mas taciturna solicitude que placidamente reflectida pelo meu rosto torna apetecível o estado de alma que transmito. Custei a chegar aqui. O domínio da mente e do corpo é cousa morosa de lograr, exige batalhas, quedas e derrotas, sendo de queda em queda e de derrota em derrota que se chega à vitória final.

Vejo cada vez mais ciganos Nunca se viram tantos ciganos. Nem tantos pedintes, nem tanta miséria. É a crise. Três ciganitos ranhosos e famintos entram à pida. Pago-lhes gelados, atrapalhados não sabem como abri-los. Nunca devem ter comido nenhum.

Um ego pleno, assim me definiria. Uma auto estima burilada, torneada a golpes de cinzel neste corpo sofrido, acabada, sólida, construída passo a passo, em segurança, por mim forjada em anos e anos de aprendizagem por tentativas e erros, erros também sim !

Aquela matrona parece muto mais velha que o marido, sem meias, já nem tem pernas para tal.

Tenho para mim não passar de um ignorante sábio, ou um sábio ignorante. Conhece-te a ti mesmo manda o preceito, e conheço-me. Ninguém conhece melhor que eu as minhas qualidades e defeitos. As primeiras, que deixo fluir em mim para que vocês vejam, as segundas que escondo e combato quando calha mas escondo sempre.

O vendedor de automóveis agora vende pastilhas elásticas e repara as máquinas de meter moedinha em que sai sempre um prémio. É a crise. O calor pegou as pastilhas umas nas outras. 

Espartano, comedido, sensato e sabidinho são facetas minhas que vos mostro, ou não, conforme a musica que me dão, por vezes desatino, e desatino vulgarmente, às vezes acerto o passo.

Sou asceta sem ser estilita, não me desvio um passo do meu rumo, a voragem dos dias, o quotidiano, não me submergem, nem me aceleram o passo. Olho o mundo, sou espectador, mais que actor.

Apareceu o Carlinhos V.V. Que terá feito ao cabelo ? O vento tudo leva não é Carlos ? Abraço.

Daí advém esta pacata placidez que em mim observais.

Por isso te sentes segura de mim, em mim, e das minhas certezas, quantas vezes tiradas a pulso de um mar de dúvidas, arrancadas, resgatadas, salvadas, salvas.  (escolhe a forma mais correcta).

O Peres não me viu. Entrou com a mulher e nem me viu. Quando com ela fica “inteiriçado”, sempre que vem com ela fica como se um zombie, é feia ela, nunca foi bonita.

O sol ergue-se, daqui a pouco a prumo, como o girassol rodo na sombra do toldo, a cerveja morre no copo em minutos por isso uma atrás da outra, a sede, o calor, o fastio, bebo-a de um trago, dou um estalo com a língua no céu da boca, um dedo no ar e o rapaz sabe que deve trazer outra.

Dessedento-me sentado, espectador.

Puro ócio

Invejem-me

sexta-feira, 12 de julho de 2013

150 - VIOLETA NO TRÂNSITO ..........




Encontrava-se muito debotada já, os anos comeram-lhe o viço das cores e a rigidez do papel. Se me descuidasse certamente a veria esboroar-se nos meus dedos, e, no rebordo, as estrelinhas quase se não viam, e decerto nem palpitariam.

Violeta não estava habituada ao trânsito. De onde viéramos somente um ou outro carro, e unicamente lá de quando em vez. Diariamente apenas a carreira, e mesmo essa nem subia à vila, era apanhada no Telheiro.

As cheias da Pardiela e da Palheta descarregavam nos cotovelos das margens toneladas de areia fina. Parecia passada no coador, e as camionetas do Baúto afadigavam-se a carretá-la p’rá cidade. Na terra arenosa os rastos deixavam uma esteira, na estrada nova, covas. 

Banhando-se na noite a menina Bárbara, surgida ante mim ao luar, era nívea, imaculada. Exorcizava a canícula e lavava-se no mesmo tanque onde a mirara chorando o noivo, morto nas primeiras mortes de África, e onde soltara as lágrimas que tanto me impressionaram. Encolhi-me entre as vinhas e logo ali a jurei mais bonita que Nossa Senhora em azul da pagela que a D. Feverónia, minha catequista, me dera, e que eu olhava sempre com paixão ao entrar na igreja de Stª Maria das Dores. (ver texto 132, Titanic).

Teriam sido os buracos ? O carro vinha aos ésses, depois foi dito em sua defesa que por causa disso e p'lo encandeamento. O senhor, de chapéu preto, como o carro, óculos de lentes grossas e fato cinzento riscado retorquiu com o meu pai mas Violeta jazia morta e bem morta na berma daquela estrada amaldiçoada.

A pagela devia ter quase a minha idade, e em Nossa senhora das Dores vi as feições da menina Bárbara. Ou o contrário. Há que respeitar tempos e lugares, sobretudo se divinais. Depois de a ver banhar-se no tanque da quinta, por muitos anos não haveria de esquecê-la. Encolhi-me entre as vinhas e desde aí sempre a jurei mais bonita que a Nossa Senhora em azul na pagela que a D. Feverónia me dera e eu olhava com paixão.

Comprado aos vinte e nove de Setembro do ano da graça de mil novecentos e sessenta e três na Livraria Arcádia, ao Chiado, em Lisboa. E por baixo a assinatura de meu pai, por essa época tenente de Lanceiros ao Quartel da Guarda de Corpo, na Ajuda. Eu herdara esse dicionário e atirara-o para a estante, junto a outros, há cerca de dez anos. Mais precisamente no ano em que o paizinho morreu. Hoje, ao abri-lo deixei cair, inadvertidamente, a pagela de Nossa Senhora. Mais parecida agora com a menina Bárbara que alguma vez o fora na minha mente.

O senhor, de chapéu preto, óculos de lentes grossas e fato cinzento riscado arengava embezerrado. O meu pai, embestado. Acho que chorei a Violeta. O papá pegou-lhe ao colo, chamou-me e escolhemos um ermo florido e com sombra na chapada da ribeira. A cadela, pouco habituada ao trânsito, ao aperceber-se do carro encolhera-se na berma oposta da estrada. Meu pai, temente, chamou-a para perto de si. Foi a desgraça, Violeta mal teve tempo de abanar o rabo e, de olhos vivos, avançara para o paizinho. Um baque surdo prostrou-a no meio da estrada. Em mim um grito lancinante, o papá soltou um merda ! O único que em toda a sua longa vida lhe ouvi.

Apesar da beleza dos campos e da caçada prometer esse dia ficaria por ali. Violeta foi enterrada junto com um ramo de flores silvestres na encosta mais solarenga daquele lugar. 

           O papá, fiel à tradição de Lanceiros, ordenou-me sentido ! 

          Colocou a caçadeira à cara, cerrou os dentes e largou uma compungida salva de honra de dois tiros. 

            Dispersar ! 

            Dispersei. Cerimonial cumprido. 

          Depois da Violeta tivemos o Rin Tin Tin.Igualmente bom caçador mas não tão belo quão Violeta, que era cor de cobre.

Apesar da beleza e da natureza diáfana das memórias, beleza para mim é a pele alva, o loiro d’oiro dos cabelos, um corpo áureo e de olhos verdes ao luar, um manto azul celeste cuja beleza me ficou terna e eternamente gravada no espírito. 

          
Uma pagela descorada, um lugar e um tempo divinais.

Rosáceas em catedrais.

Ainda hoje, quando nisto penso, por mim dou ternamente deslumbrado. 

           
Siderado.







149 - NO FUTURE .................................


Vejo-a há que anos atrás de um balcão. Como ela muitas e muitos. Marquei- - a. Ter um olho de cada cor foi-lhe fatal. Dantes na peixaria do hiper, depois na caixa, depois na recepção. Há uns quatro anos atrás na padaria Moderna, posteriormente na pastelaria logo ali ao lado. No verão passado na esplanada da praça do mercado, para o ano, bem, para o ano e para se entreter talvez voluntária numa Fundação qualquer.

A esta gente todo um mundo de oportunidades se lhes abre. Esta pequena, esta jovem mulher dizem, tem uma licenciatura em sociologia, mas podia ser em quaisquer outras áreas. Há quem teime que terá também um mestrado. 

E olha cabisbaixa entre duas bicas que avia a outras mulheres já com filhos e com a vida feita, já com passado e com futuro, serve-as maquinalmente, os bolos maquinalmente, capaz de as servir mas incapaz de lhes sorrir.

E enquanto limpa as mesas afaga os cabelos de crianças que nunca teve nem nunca terá. Terá mais algum canudo ? Boa pergunta, mas não me atrevo a fazer-lha. Muita desta rapaziada sem futuro alimentou a ganância de outros, de gente sem escrúpulos, e tem um canudo. Ou mais. Não lhes deram nem lhes venderam um futuro, um canudo sim. E promessas. E ilusões. E ao limpar as mesas afaga cabelos a crianças como as que nunca teve e jamais terá...

Limpa-as mecanicamente, arruma as cadeiras mecanicamente, e aquiesce aos pedidos da freguesia mecanicamente.

O velhote treme que treme na mesa do canto foi meu professor tinha eu onze, doze, ou treze aninhos. Lembro-o bem, um colosso desempoeirado irradiando empatia.

Agora sobrecarrega-a com pedidos e pedidos. Ela aquiesce e serve. Serve-o como serve a todos, com servilismo mas sem sorrisos, aquiescente e ausente.

Aposto que se dessem um giz ao velhinho ainda faria com três traços e uma curva um desenho de espantar. Em tempos maravilhou-me. Há gente que fala como ele desenhava. E ele com medo que lhe cortem, e cortam, cada vez mais na reforma. Outros, donos do país da cidade, do futuro, de nós.

O Gaspar levantou-se da mesa e saiu sem pagar. Eu pago. Eu pago tudo. Julgou que chegava aqui e punha todos a beber bicas e a sorrir. Não lhe achei graça.

Por trás do balcão ela continua tirando bicas, mecanicamente. Sem um sorriso. Com muita aquiescência mas sem mais que isso. Quem lhe roubou o futuro desfez-lhe o sorriso. Sem crianças, nem loiras nem morenas como as que lhe saltam em redor exigindo gelados. Nem se queixará que lhe cortam na reforma. Nem terá reforma.

O Casas Velhas fechou a mercearia e veio namorar para o café. Namora há mais anos que eu venho a este café todos os dias para a bica a meio da manhã. Ela quer casar aposto. Ele faz ouvidos de mercador enquanto foge com o cu à seringa.

A mocinha por trás do balcão sabe que o futuro já foi.
O Casas Velhas também.

A mercearia sem clientes. A mercearia com cães. Ele incapaz de cobrar essas dívidas, que já nem cabem no livro, a namorada arrastando-o para o juízo final.

“ Não encontre defeitos, encontre soluções “ dizia Henry Ford. Estas vidas não têm remendo, nem remédio. Este país não tem futuro, esta gente, os outros, resolveu as suas vidas mas não arranjou soluções.

O meu antigo professor de desenho traçou, gesticulando raivosamente, um desenho no ar. Aposto que era lindo e, no auge da inspiração, quedou-se inerte sobre a mesa.

Ela não se assustou. Nem sorriu. Não reclamou. Nem tossiu.
Ligou para o 112, depois limpou os cacos e o entorneiro.
Mecanicamente, servilmente, como sempre.

Ele, aposto, não voltará a vituperar a reforma.

Nem os outros.
 


            

segunda-feira, 1 de julho de 2013

148 - PATERNALISMOS .......................


 Bateu a porta, sentou-se ao volante, deu à ignição e ficou ali, assim, olhar parado, fixo no nada, lá longe.
Sorriu.
E o sorriso ficou-lhe pendurado no rosto uma eternidade, diria mesmo que sorriu dentro do sorriso que já tinha porque os olhos se mexeram.
Às mulheres não podemos, nem devemos possuir de qualquer maneira, nem sequer do mesmo modo. Não há duas iguais.
Há as docinhas, meiguinhas, sofridas, mal tratadas, violentadas, combalidas inseguras, arrastando egos esvaziados, indecisas, a requererem atenção, preparação e paciência, uma dedicação extrema e um cuidado redobrado. Detestam ímpetos e esquemas improvisados.
A vida já lhes deu a dobrar a cicuta desse cálice. Temem o gesto repentino, o modo brusco, a palavra impensada ou em tom elevado, como temem um olhar acusador.
São mulheres que perderam a sexualidade, se é que alguma vez a tiveram, objecto que se sentiram de sultões indecorosos.
Pareceu-me cansado. Cansado mas feliz. Tão feliz que arrancou sonhando e logo ali ia abalroando outro carro. Nem parou, provavelmente nem deu por tal, o outro condutor, repentinamente parado, batia com a mão na testa, pasmado. Explicito.
Apaga a luz sendo ela tímida. Querendo tudo, todo, acabar, chegar ao fim, abandona precipitações palavras e gestos irreflectidos. Não lhe olhes a nudez por mais divinal que seja. Mantém o recato, dá-lhe tempo espaço e segurança. Deixa que a sensualidade lhe emirja natural e placidamente.
Apaga a luz e não a olhes nos olhos, nem de forma desafiadora, sê paciente e comedido. Uma coisa de cada vez. A nada a obrigues, deixa tudo fluir naturalmente, ao menos que assim pareça ser. A mãe natureza não nos fez todos iguais. Temperatura a mais fará hormonas estalar e saltitar como pipocas no tacho. Permite-lhe que marque o ritmo, ela agradecerá.
E a ti que diferença fará uma semana, um mês, qual a pressa ? Estás de empreitada ? Vai com vagar, com calma. Keep calm que Roma e Pavia não se fizeram num dia.
Não mais de dez minutos volvidos sobre o quase acidente uma ruiva abandona o prédio em frente. No rosto um sorriso, na mão uma mala Louis Vuitton, o cabelo tratado, lindo e volumoso.
O sorriso denunciou-a, um sorriso igualmente pendurado no rosto, diria mesmo que um sorriso tão grande que mais parecia um sorriso dentro de outro sorriso,  os olhos brilhando, mexendo.
Ter uma mulher é fácil. Vencer a timidez é de artista. Saber vencer é de gente grande. Estabiliza filho, estabiliza…
Nas fitas do cinema de réprise do meu bairro quando miúdo, as mulheres não se conquistavam. Tomavam-se. Não se aguardava a sua dádiva, a sua entrega, o galã submetia-as pela sedução, e tomava-as. Gozava-as. Usava-as.
A maralha exultava.
Uma vez houve que uma cena entre um padre jovial, armado de supina beatitude, alto, todo ele sorrisos, e as freiras e beatas que enxameavam a igreja da freguesia que nem vos conto. As beatas...
Bem, o melhor é contar-vos depois, não são elas a razão desta arenga…
Claramente nada escapa às regras e o cinema não é excepção, evoluiu. Hoje faz-se amor com mulheres desinibidas, loiras ou morenas mas seguras de si, e sabendo o que querem.
Usam malas Louis Vuitton, viajam na British Airways, usam tampões OB, Evax , Tampax e shampoos que dão volume.
São lume. 
Especialmente se maduras fazem o meu género e, ao vê-las na fita encolhia-me na poltrona, mordiscava as unhas e abafava as risadas.
São lume !
Durante anos e anos não falhei as sessões de sexta – feira !
Avançam para as câmaras de peito ufano, grandes decotes, parecendo o Titanic sulcando as águas antes do desastre, sem taras, sem complexos, sem medos. Há mulheres de quem o melhor é fugir, mas não destas...
Sorrisos sobre sorrisos, olhos brilhando, mexendo.
Com mulheres assim que pensa em preocupações ?
É tudo naturél !
Vem a bola e força !
Ah ! Já me esquecia daquela história das beatas !
Bem, deixa ver se me lembro porque a história das beatas sempre me deu para rir cada vez que a conto. Quando a vivi a vontade de rir foi nenhuma é certo, mas ao contá-la, não me sustenho e o riso atrapalha-me até a voz.
Na época a malta descalçava-se para jogar à bola não fosse uma biqueirada mal dada rebentar a biqueira (desculpem-me a redundância) à bota. A ser assim era sova garantida.
Jogávamos num terreiro ao lado do convento, atravessado por vereda marcada por quem buscava a cidade torneando a porta grande e a principal entrada nas muralhas. A vereda encurtava caminho.
Chutada a bola com mais força sumira-se nos arbustos por baixo da janela do convento. Eu caminhava descalço, pé ante pé.
Bem, a verdade é que não a vi, e como a não vi, inadvertidamente pisei-a e queimei-me ! Dei um urro e abalei dali a ganir.
Que esperavam ?
Ainda hoje tenho a marca da queimadela.

P’rá semana é a final !
E não podemos deixar o Bº. de Stº. António vencer !
Não posso !

                 

domingo, 23 de junho de 2013

147 - O BAR DO PAULO * por Maria Luísa Baião ......



A nossa vida é feita de pequenas recordações, guardadas ou remetidas para cantos esconsos da memória, tão esconsos que só um pé-de-vento poderá, em certas ocasiões, levantá-las da poeira acumulada.

Tenho crónicas elaboradas de supetão, escritas debaixo da emotividade do momento, não é, infelizmente, o caso desta.

A crónica de hoje leva-me já dois meses talvez, e algum choradinho à mistura. Tem sido dificílimo para mim aceitar a realidade, com a qual sonho, porque pertence ao passado, e está em vias de não ter lugar no futuro, a não ser no remoto lugar para onde atiramos as lembranças.

Quando universitária frequentava muito o "bar do Paulo", nessa altura o ponto de encontro de gente mais informal, pois não quero dizer selecta. O bar tinha um ambiente acolhedor, e comedido, apesar de estar sempre a rebentar pelas costuras.

Tirando esse ambiente familiar e anti depressivo, nada tinha de especial, a não ser o Paulo, tão especial que fazia parte da mobília. Ainda hoje não sei o que tinha esse bar, sempre apinhado, sobretudo de gente carente de afectos, talvez por não ser da terra e por cá passar temporadas demasiado longas.       

Tinha ar condicionado, mas não funcionava, e, num tempo em que os telemóveis ainda estavam para nascer, tinha telefone, mas estava sempre ocupado, música ambiente também havia, pura e simplesmente a que ao Paulo agradava, cerveja muita, inda que nem sempre fresca, bebidas de um leque muito pouco ousado e umas flores constantemente renovadas e sempre murchas nas jarras, a par com cinzeiros abarrotando de beatas que largavam um fétido cheiro e completavam o cenário. Nunca se saía com vontade de voltar, nunca nos afastávamos mais que um fim de semana.

Acabado o curso cada uma desandou, deu rumo à vida se o não tinha já, como no meu caso. A festa de despedida foi no Paulo, e dele nos despedimos também.

Passaram-se anos, nem sei se o bar continuou do Paulo, tão farto estava de nos aturar. Ao certo apenas que passado pouco tempo tinha fechado, nunca soube porquê.

 Passei na ruela há uns dois meses, toda a casa estava em obras, meio demolida meio recuperada. Ninguém sabia do Paulo, que sim, que em tempos ali tinha funcionado um bar, sim, já há muitos anos, a vizinha Alzira era desse tempo, lembrar-se ia… de quando a ruela era um rodopio onde ninguém sossegava. Agora estranha, tem saudades das pequenas, da sua irreverência, e do Paulo, que se havia tornado para ela um filho, que tomara o lugar de um outro Paulo, o filho que lhe morrera em África. Para aquela Mãe, foi como se tivesse chorado duas vezes a mesma perda, sentido duas vezes a mesma dor.

Alzira perdera dois filhos, um em África e outro nos braços, o primeiro sangue do seu sangue, o segundo adoptara-o, e não lhe pusera Paulo porque ele já o era, como Mãe lhe chamou quando, com uma leucemia, de um dia para o outro lhe morreu nos braços.

Chorou enquanto mo contou, e não pude deixar de chorar com ela.

Só agora percebi o que tinha o bar de tão especial, quando tanto lhe faltava e mais ainda deixava a desejar. O Paulo era especial, irradiava dele uma humanidade que somente agora percebi, só agora entendi porque todas tão bem nos sentíamos naquele bar, no bar dele.

Sou e sempre fui fisioterapeuta, tal como o Paulo sempre preferi as pessoas, nunca fui capaz de me desligar delas. As pessoas primeiro, por isso assisto agora, extasiada, ao rasgar de avenidas e perspectivas novas na nossa cidade, que, como um ser, respirará melhor no futuro, dará às suas gentes desafogo, mas as obras naquela ruela, no bar do Paulo, estão a dilacerar-me o coração, a arrancar bocados de mim, a despojar-me do passado, a matar-me aos poucos.

Cidades são como gentes, para que umas se renovem outras têm que morrer, para que se rasguem estradas e mentes, outras terão que ceder, mas gentes não são cidades, porque tenho então que sofrer ?
  

* In Diário do Sul, Kota De Mulher, – por Maria Luísa Baião, publicado verão de 2004

sábado, 25 de maio de 2013

146 - REQUIEM ................................

     
Parece que a coisa não foi bem como a pintaram. Para evitar o escândalo e que a viúva passasse pela vergonha abafaram a verdade. Naturalmente que em Viseu toda a gente terá sabido, mas os ecos que chegaram até mim só traziam a parte boa, se é que fechar o cu tem alguma coisa de bom, as partes gagas somente agora, mais precisamente na noite de quinta feira as vim a saber.   (Ver texto 142, Ó Abreu …)

Não gosto de ir a funerais, nem sequer a velórios, mas atendendo a que era na capela de S. Torcato, a única que tem sempre lugares de estacionamento sem problemas, lá fui. A Lídia finara-se. Estava a malta toda. O marido, as amigas da Lídia e as amigas do marido, o Teles. Má peça o Teles, choroso, depressa esqueceu as lágrimas que em vida fez verter à Lídia.

Mas estou a desviar-me do que interessa.

Entre um copo e outro, a agência Boavida, Funerais e Trasladações Ldª  montara a um canto da capela uma boa mesa, os presentes iam rodando, enchendo a boca e tragando uns goles enquanto a meia voz enalteciam as virtudes da Lídia, que fizera felizes no mínimo metade dos ali presentes, e as patifarias do marido, agora viúvo, que fazia felizes uma boa parte das amigas da Lídia.

Lá pelas três da manhã os burburinhos acalmaram-se, ficou mais fácil chegar à mesa, à volta da qual a malta se juntou, copos plásticos na mão, tchim tchim, brindes para aqui e para ali, às tantas já se brindava a tudo, até à Lídia, que havia de gostar e teria decerto emitido um dos seus sorrisos acompanhado de um gemido e um arfar de peito, coisa que ninguém fazia como ela. Era boa tipa. Deus lhe tenha a alma em descanso.

Nascera em Viseu, ela e o marido, e foi por isso que fiquei sabendo como se tinha finado o Abreu. Afinal não morrera como um passarinho, bem pelo contrário, como um passarão. Parece que no regresso a casa e entre esta e o quartel o sargento Abreu costumava parar coisa de uma hora, mais minuto menos minuto, numa daquelas torres de dez andares das “Construções Lamego“, em visita apressada a uma primeiro-cabo lá do regimento e que era algarvia.

Naquela tarde o elevador terá parado entre o oitavo e o nono andares deixando apenas uma abertura de dois palmos por onde se pensa que o Abreu terá metido a cabeça pedindo socorro, farto que estaria do encarceramento no fatídico elevador. Cansado de gritar, provavelmente enfiou a cabeça naquela nesga, possivelmente com o fito de se guindar dali para fora.

Parece que a nosso cabo não deu pela coisa senão quando lhe levaram a cabeça do Abreu indagando se se trataria do marido. Nesse momento a algarvia deu um grito lancinante e caiu para o lado, desmaiada, no chão, enquanto um estrondo ensurdecedor dava conta que o traiçoeiro elevador caíra pelo fosso do prédio arrastando o que restava do Abreu.

Há horas felizes, mas também muito más horas, terá pensado o Abreu, se é que teve tempo para pensar alguma coisa antes de ser decepado pelo movimento de arranque do elevador. Foi uma morte que caiu muito mal ao Teles, que também era amizade do Abreu e de igual forma tivera um arranjinho naquele prédio, confidenciou-me o Ramires quando o Teles saíra a sugar um cigarrito. Lá terá o Teles pensado para com os seus botões que terminara com a Hermínia na hora certa. O elevador, veio a saber-se muito depois, ia no quinto ano sem qualquer manutenção, pelo que primeiro se desfiara e posteriormente se partira um dos cabos de aço que o sustinham.

Da nossa primeiro-cabo nunca mais ninguém soube dar noticias. Dizem as más-línguas que passou à disponibilidade, ou à reserva. De quem ninguém me disse. Bebi mais um trago, enchi a boca de torresmos e fui ruminar meditações sobre as imprevisibilidades desta vida para a cabeceira da Lídia. 

            Afivelara um fácies sereno, a sua placidez acalmou-me e, ou por isso ou devido ao tinto da Bairrada, adormeci.



sexta-feira, 17 de maio de 2013

145 - WATER POWER PLANT ..........


  
Haniko viera do Japão. Roliça, cerca de trinta e tal anos, dela não podia dizer ser propriamente bonita, em compensação era simpática. Distinguia-a o facto de, ao contrário do restante grupo japonês, não surgir nunca carregada do diversificado e sofisticado equipamento made in Japan, o que a tornava única. Nesse aspecto, os seus, mais que as suas compatriotas, pareciam autênticas montras ambulantes, sobretudo no que tocava a material áudio e vídeo.

Gostava dela, e nesse grupo nacionalista étnico e cultural era quase a única com que mantinha esporádicas conversas. (por vezes vestiam de forma tão extravagante como no carnaval do Rio).

Nunca percebi qual a razão pela qual apresentava uma cara de permanente assombro ou deslumbramento, lembrei-me mesmo de mim quando, em petiz, visitei Lisboa pela primeira vez. Tudo me punha de boca aberta, os eléctricos de dois andares, os boletineiros da Marconi ziguezagueando a cem à hora por entre o denso e intenso tráfego da capital na urgência dos telegramas que o barulho das motos anunciava à distância, a calma dos mastodontes pastando plácidamente ancorados no Tejo ou a maravilha dos esquentadores se, em casa do meu mano me deliciava com um duche quente.

Para Haniko tudo parecia surpresa mas, naquele dia ela não era caso raro de estupefacção. Na verdade eu estava há dois dias preocupado, não havia notícias do grupo de Water Power Plant, (Estação de Tratamento e Distribuição de Água) onde os japoneses se incluíam, sabia-se que tinha havido bombardeamentos fortíssimos na sua zona de acantonamento, e preocupava-me o facto do seu sítio ficar a alguma proximidade de uma refinaria.

Os métodos cirúrgicos de bombardeamento a que todos os dias assistia levavam-me a acreditar na eventualidade de não terem sido atingidos mesmo que a refinaria o fosse, contudo uma refinaria atingida é por si só uma bomba autêntica, explode, arde, jorra e expande os efeitos do desastre numa zona considerável, daí o meu temor por ela e por eles. Sabía a cidade cortada por combates, talvez a sua ausência se devesse ao facto de se encontrarem bloqueados, talvez.

Quando apareceram foi uma festa, todos se apresentaram ilesos, mas foi festa a que depressa dei cobro ao saber das razões que alimentaram as minhas aflições.

Não me dou com confusões, sobretudo se alimentadas por dois ou três idiomas diferentes e por vezes simultâneos, ou se, mesmo em inglês, o palavreado corre com alguma celeridade. Por isso logo que tive oportunidade, indaguei junto de Haniko o que se passara, a sua cara de ponto de interrogação estava mais acentuada que nunca, a tensão arterial pulsava-lhe ainda nas veias como nunca vira em ninguém, e tive que a acalmar antes que começasse a falar, até porque à velocidade com que se exprimia não conseguia entendê-la.

Por fim lá consegui percebê-la e perceber o que se havia passado. The Water Power Plant tinha sido alvo de violento ataque e tomada dois dias atrás pelos americanos. Não sendo uma instalação militar, tinha, como muitas outras instalações do género, incluindo o sítio onde eu estava acantonado, uma guarnição militar que a defendesse, instalações para esses militares, uma ambulância, um carro de bombeiros e, como por toda a cidade, abrigos cavados no chão ou levantados com sacos de areia para protecção de soldados ou  civis e milicianos.

Haniko não conseguiu lembrar-se do que fazia o resto do grupo, ela encontrava-se meio deitada na relva, apreciando o cair da noite e da humidade, o lusco-fusco molhando as águas do Tigre que passava relativamente perto. Repentinamente sentira um barulho surdo nas suas costas, virou-se e deu de frente com helicópteros surgidos não sabe de onde, rasando os edifícios e metralhando tudo indiscriminadamente. Foram apenas escassos segundos ou minutos, o ruído ensurdeceu-a, o espanto petrificou-a, à sua volta tudo era feito em bocados, tudo explodia, tudo se desmoronava, tudo gritava, tudo fugia desordenadamente, era, segundo ela mesma, o caos tomando forma.

Não saiu do lugar, nem se salvou por milagre. O que lhe pareceu um ataque indiscriminado não o foi, os alvos atingidos, exclusivamente militares e instalações afectas aos mesmos deixaram perceber por parte do atacante um conhecimento pormenorizado do local.

De qualquer modo foi uma chacina, de terra ninguém teve tempo para dar um tiro sequer, enquanto os helicópteros, pairando no ar e apesar da escuridão que, alheia ao negro desígnio dessa noite se ia instalando, pareciam ter olho de lince para tudo que se mexesse e estivesse no alcance da sua mira.

O grupo passou o resto da noite recolhendo cadáveres, acudindo a feridos e soterrados em comunhão com a população local e auxilio entretanto chegado. Sem que se tivessem apercebido tropas terrestres americanas surgiram do escuro, tomaram conta da área sem impedirem a remoção de mortos ou o transporte de feridos, como se nada fosse com eles, como se estivessem ali há muito.

Os meus amigos do voluntariado da Paz cumpriram a missão humanitária a que se entregavam sem interferências, apenas foram impedidos de abandonar o sítio senão ao fim de dois dias e de algum controle, tendo sido remetidos para o Hotel Palestina com ordens para não regressarem ao local, agora nas mãos de novos “proprietários” e pertinentes defensores.

Não testemunharei os depoimentos de cada um, que foram do inacreditável ao pasmo completo. Houve quem se tivesse vomitado, quem tivesse desmaiado mal viu sangue derramado, quem tivesse ficado paralisado com a violência do ataque, e até quem tivesse conseguido manter o sangue frio e prestar de imediato uma ajuda que outros foram por reacções diversas incapazes de prestar.

Haniko não ficou mais aliviada depois de mo contar, desatou num pranto insolúvel arrastando-me consigo. Nenhum de nós estava preparado para o que se nos deparava. A guerra dói mesmo quando não é nossa. Cabisbaixos nos calámos, esquecer aquele e tantos outros momentos que sangravam como o escoar de areia em ampulheta era impossível. Tentou dormir, mas tal não era permitido, a mente recusava apagar imagens de terror gravadas a sangue, e a quente, acabei por lhe dar três ou quatro dos “Pepsamar” que ainda me restavam para se acalmar mas não chegaram a fazer efeito.

Somente voltei a vê-la em Amã passados alguns dias, ainda com a mesma cara de interrogação, com um olhar vazio que penso não lhe irá passar tão depressa.

Desta vez não chorou no meu ombro, as convulsões não a deixaram, fechámos a porta do quarto envergonhados por tudo aquilo que passáramos, e de novo nos encontrámos, sós. 


Humberto Baião in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad " - Ed NossoFuturo - 2005 - ISBN 972-9060-31-2





sábado, 11 de maio de 2013

144 - ESCARAVELHOS E BATATAS…


                 Uma das minhas amizades destas lides julga-se um anjo. Não que isso me incomode, nada mesmo, pelo contrário, até gostava que fosse, e certamente não eu exclusivamente, mas todos que beneficiássemos da protecção das suas asas miraculosas.

Cada um tem a pancada que quer, ou pode, ou lhe calhou em sina. A nós nos cabe aturá-la, aguentá-la ou sacudi-la ...

Sucedeu que um texto meu lhe não agradou e largou-me um desafio, como as vacas largam bostas, de um tema à sua escolha.

Não quero imaginar tudo que pensou enquanto lia esse texto que achou abominável, aquele que tanto a impressionou e lhe desagradou. Aliás, desagradou a mais gente e acabei por retirá-lo.

É preciso ser mazinha pensei eu perante o seu desafio, coisa que sobre ela jamais me ocorrera, mas como não gostou aceitei-lhe a prerrogativa de escolher um a seu jeito, de sua livre vontade, e a seu gosto, ao que ela inteligentemente (?), a vingança é sempre terrível, respondeu com o repto para que eu escrevinhasse sobre “a importância do escaravelho no cultivo da batata”.

Sorri, eu sei, mas ela não parece ter-se apercebido, que a qualquer texto se dá a volta como entendermos. A aposta não estava ganha á partida mas não era difícil. A batata será importante pelo menos para ela, para os entendidos nem tanto, ou nem por isso, não passa de um tubérculo perene, sendo um dos vegetais mais usados em todo o mundo, e também um daqueles com que se enganam os parvos e fazem fortunas, pois dá dinheiro fácil, imaginem o valor de um quilo de batatas fritas em pacote, um dinheirão !

E nem o muito gasto em ginásios encolherá às consumidoras o tal pneu uma vez adquirido. De tão grande riqueza, a batata, é alimento humano há mais de 7000 anos por ser rica em amido e é nas suas plantações que surgem os besouros ou escaravelhos mais conhecidos por coleópteros, que se caracterizam por poderem voar e possuir um par de asas, os élitros.

Existem mais de 350.000 espécies no mundo, sendo estes insectos o grupo animal mais diverso que existe de entre os que melhor conhecemos. A Joaninha, os besouros, ou escaravelhos, os vaga-lume ou pirilampos, o gorgulho e o rola-bosta, sim, esse mesmo, o rola-bosta, ou escaravelho da merda, fazem dele parte.

Mas estou a desviar-me do meu fito, já que esses insectos, nas suas variadas fases de vida, se transformam ou comutam, de larvas a mariposas, não olvidando o intermédio de crisálidas.

A minha desafiadora amiga não será uma mariposa, mas julga-se um anjo e os anjos têm asas, durante muito tempo a sua presença fez-me sentir como quem sente a Primavera e quase diariamente “poisava” no meu perfil, e em tantos outros decerto, o que era uma alegria, ver a marca da sua pose.

Não a conheço, aliás nunca a vi ou conheci, mas imagino-a crisálida presa na sua espécie e ávida desses voos que desferia como se a vida lhe desse um dia apenas de alegria. Foi-se, nem sei se por, como as borboletas de verdade, a vida lhe ser curta e a condição tão breve quanto a tolerância.

Deixou-me saudades e, hoje, que a Primavera já vai entrada, com saudade a lembro em cada borboleta que vejo, e em cada volteio com que me rodeiam a relembro e imagino, será ela ?

Não sei, nunca saberei, ficou-me contudo a doce lembrança dos seus voos e a doce sensação deixada cada vez que, como um anjo, no meu perfil poisava.
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