Vejo-a há que anos atrás de um balcão. Como ela
muitas e muitos. Marquei- - a. Ter um olho de cada cor foi-lhe fatal. Dantes na
peixaria do hiper, depois na caixa, depois na recepção. Há uns quatro anos atrás na padaria
Moderna, posteriormente na pastelaria logo ali ao lado. No verão passado na
esplanada da praça do mercado, para o ano, bem, para o ano e para se entreter talvez voluntária numa Fundação qualquer.
A esta gente todo um mundo de oportunidades se lhes
abre. Esta pequena, esta jovem mulher dizem, tem uma licenciatura em sociologia, mas podia ser em quaisquer outras áreas. Há quem teime que terá também um mestrado.
E olha cabisbaixa entre duas bicas que avia a outras mulheres já com filhos e com a vida feita, já com passado e com futuro, serve-as
maquinalmente, os bolos maquinalmente, capaz de as servir mas incapaz de lhes sorrir.
E enquanto limpa as mesas afaga os cabelos de
crianças que nunca teve nem nunca terá. Terá mais algum canudo ? Boa pergunta, mas não
me atrevo a fazer-lha. Muita desta rapaziada sem futuro alimentou a ganância de outros, de gente sem escrúpulos, e tem um canudo. Ou mais. Não lhes deram nem lhes
venderam um futuro, um canudo sim. E promessas. E ilusões. E ao limpar as mesas
afaga cabelos a crianças como as que nunca teve e jamais terá...
Limpa-as mecanicamente, arruma as cadeiras
mecanicamente, e aquiesce aos pedidos da freguesia mecanicamente.
O velhote treme que treme na mesa do canto foi meu
professor tinha eu onze, doze, ou treze aninhos. Lembro-o bem, um colosso desempoeirado irradiando
empatia.
Agora sobrecarrega-a com pedidos e pedidos. Ela
aquiesce e serve. Serve-o como serve a todos, com servilismo mas sem sorrisos,
aquiescente e ausente.
Aposto que se dessem um giz ao velhinho ainda faria com três
traços e uma curva um desenho de espantar. Em tempos maravilhou-me. Há gente
que fala como ele desenhava. E ele com medo que lhe cortem, e cortam, cada vez
mais na reforma. Outros, donos do país da cidade, do futuro, de nós.
O Gaspar levantou-se da mesa e saiu sem pagar. Eu
pago. Eu pago tudo. Julgou que chegava aqui e punha todos a beber bicas e a sorrir. Não lhe
achei graça.
Por trás do balcão ela continua tirando bicas,
mecanicamente. Sem um sorriso. Com muita aquiescência mas sem mais que isso. Quem
lhe roubou o futuro desfez-lhe o sorriso. Sem crianças, nem loiras nem morenas
como as que lhe saltam em redor exigindo gelados. Nem se queixará que lhe
cortam na reforma. Nem terá reforma.
O Casas Velhas fechou a mercearia e veio namorar para
o café. Namora há mais anos que eu venho a este café todos os dias para a bica a meio
da manhã. Ela quer casar aposto. Ele faz ouvidos de mercador enquanto foge com o cu à
seringa.
A mocinha por trás do balcão sabe que o futuro já
foi.
O Casas Velhas também.
A mercearia sem clientes. A mercearia com cães. Ele
incapaz de cobrar essas dívidas, que já nem cabem no livro, a namorada
arrastando-o para o juízo final.
“ Não encontre defeitos, encontre soluções “ dizia
Henry Ford. Estas vidas não têm remendo, nem remédio. Este país não tem futuro,
esta gente, os outros, resolveu as suas vidas mas não arranjou soluções.
O meu antigo professor de desenho traçou,
gesticulando raivosamente, um desenho no ar. Aposto que era lindo e, no auge da
inspiração, quedou-se inerte sobre a mesa.
Ela não se assustou. Nem sorriu. Não reclamou. Nem
tossiu.
Ligou para o 112, depois limpou os cacos e o
entorneiro.
Mecanicamente, servilmente, como sempre.
Ele, aposto, não voltará a vituperar a reforma.
Nem os outros.
…