Encontrava-se muito debotada já, os anos comeram-lhe
o viço das cores e a rigidez do papel. Se me descuidasse certamente a veria
esboroar-se nos meus dedos, e, no rebordo, as estrelinhas quase se não viam, e
decerto nem palpitariam.
Violeta não estava habituada ao trânsito. De onde
viéramos somente um ou outro carro, e unicamente lá de quando em vez. Diariamente
apenas a carreira, e mesmo essa nem subia à vila, era apanhada no Telheiro.
As cheias da Pardiela e da Palheta descarregavam nos
cotovelos das margens toneladas de areia fina. Parecia passada no coador, e as
camionetas do Baúto afadigavam-se a carretá-la p’rá cidade. Na terra arenosa os
rastos deixavam uma esteira, na estrada nova, covas.
Banhando-se na noite a menina Bárbara, surgida ante
mim ao luar, era nívea, imaculada. Exorcizava a canícula e lavava-se no mesmo
tanque onde a mirara chorando o noivo, morto nas primeiras mortes de África, e
onde soltara as lágrimas que tanto me impressionaram. Encolhi-me entre as
vinhas e logo ali a jurei mais bonita que Nossa Senhora em azul da pagela que a
D. Feverónia, minha catequista, me dera, e que eu olhava sempre com paixão ao entrar na igreja de Stª Maria das Dores. (ver texto 132, Titanic).
Teriam sido os buracos ? O carro vinha aos ésses,
depois foi dito em sua defesa que por causa disso e p'lo encandeamento. O senhor, de
chapéu preto, como o carro, óculos de lentes grossas e fato cinzento riscado
retorquiu com o meu pai mas Violeta jazia morta e bem morta na berma daquela estrada amaldiçoada.
A pagela devia ter quase a minha idade, e em Nossa
senhora das Dores vi as feições da menina Bárbara. Ou o contrário. Há que
respeitar tempos e lugares, sobretudo se divinais. Depois de a ver banhar-se no
tanque da quinta, por muitos anos não haveria de esquecê-la. Encolhi-me entre as
vinhas e desde aí sempre a jurei mais bonita que a Nossa Senhora em azul na
pagela que a D. Feverónia me dera e eu olhava com paixão.
Comprado aos vinte e nove de Setembro do ano da graça
de mil novecentos e sessenta e três na Livraria Arcádia, ao Chiado, em Lisboa. E por baixo a
assinatura de meu pai, por essa época tenente de Lanceiros ao Quartel da Guarda
de Corpo, na Ajuda. Eu herdara esse dicionário e atirara-o para a estante,
junto a outros, há cerca de dez anos. Mais precisamente no ano em que o paizinho
morreu. Hoje, ao abri-lo deixei cair, inadvertidamente, a pagela de Nossa Senhora.
Mais parecida agora com a menina Bárbara que alguma vez o fora na minha mente.
O senhor, de chapéu preto, óculos de lentes grossas e
fato cinzento riscado arengava embezerrado. O meu pai, embestado. Acho que
chorei a Violeta. O papá pegou-lhe ao colo, chamou-me e escolhemos um ermo
florido e com sombra na chapada da ribeira. A cadela, pouco habituada ao
trânsito, ao aperceber-se do carro encolhera-se na berma oposta da estrada. Meu
pai, temente, chamou-a para perto de si. Foi a desgraça, Violeta mal teve tempo
de abanar o rabo e, de olhos vivos, avançara para o paizinho. Um baque surdo
prostrou-a no meio da estrada. Em mim um grito lancinante, o papá soltou um merda ! O único que em toda a sua longa vida lhe ouvi.
Apesar da beleza dos campos e da caçada prometer esse dia ficaria por ali. Violeta foi enterrada junto com um ramo de flores silvestres
na encosta mais solarenga daquele lugar.
O papá, fiel à tradição de Lanceiros, ordenou-me sentido !
Colocou a caçadeira à cara, cerrou os dentes e largou uma compungida salva de honra de dois tiros.
Dispersar !
Dispersei. Cerimonial cumprido.
Depois da Violeta tivemos o Rin Tin Tin.Igualmente bom caçador mas não tão belo quão Violeta, que era cor de cobre.
Apesar da beleza e da natureza diáfana das memórias,
beleza para mim é a pele alva, o loiro d’oiro dos cabelos, um corpo áureo e de
olhos verdes ao luar, um manto azul celeste cuja beleza me ficou terna e
eternamente gravada no espírito.
Uma pagela descorada, um lugar e um tempo
divinais.
Rosáceas em catedrais.
Ainda hoje, quando nisto penso, por mim dou ternamente
deslumbrado.
Siderado.